Sociedade

OTIMISTA REGIONAL
É OTÁRIO REGIONAL

  DANIEL LIMA - 04/11/2025

Vou mostrar logo abaixo uma análise que escrevi há 25 anos,  em novembro de 2000,  para a revista de papel LivreMercado, antecessora deste CapitalSocial. O material poderia condensar algumas razões do ceticismo sobre tudo que se relaciona ao futuro do Grande ABC. O que separa o passado otimista do presente compulsoriamente desconfiado é a própria história deste século na região. Um século de postergações, enganações e abusos festejados pelos bandidos sociais. 

É arrematada idiotice ser mesmo que restritivamente otimista quando se trata desse território partido e repartido em sete pedaços. A diferença entre ser otimista com moderação e sinceridade e ser otimista dissimulado, sabendo que o fingimento dá o tom, é que o primeiro modelo não causa arrependimento, enquanto o segundo, deliberadamente matreiro, quando não orquestrado, deveria tirar o sono dos pecadores.

Escrevo a propósito da decepção por ter sido otimista no passado. Não há como neutralizar o sentimento quando, numa checagem na linha do tempo, como o fiz ontem à noite para ter o produto que o leitor vai acompanhar agora, caí na real de que o melhor remédio contra a insônia do arrependimento é não flexibilizar o realismo. E não flexibilizar o realismo significa, nesse caso, enfrentar a situação regional com pessimismo muito além do moderado. Essa é a melhor vacina de combate ao desencanto futuro.  

PESSIMISTA INFORMADO

Meu conselho aos leitores é que sejam praticantes de uma redundância, como integrantes da camada de pessimistas bem-informados para, quem sabe, o futuro mesmo decepcionante, não se configure ainda mais sombrio. Difícil mesmo, reconheço, é ser pessimista bem-informado. Há preferência nacional pelo otimismo enganador, enganado ou negociado.

Costumo dizer que os maiores erros que cometi como jornalista estão inseridos no enredo do otimismo de torcedor organizado que às vezes me acometia mas que há muito tempo joguei na lata do lixo da desesperança.

Os leitores que não me acompanham desde muito tempo podem avaliar meu trabalho mais cáustico (como o apresentado ontem, comparando Santo André e Diadema numa série especial) como alguma frustração fora do terreno de jogo do jornalismo.

Mal sabem esses leitores apressados em julgamentos morais que sou um divisor de águas impressionante, entre o pessoal, de Daniel José de Lima, e o profissional, de Daniel Lima. Tanto sou que sofro muito com isso.

Um dia conto o dilema que me aflige por ter a capacidade de separar uma coisa da outra. Há sempre situações em que é impossível manter a distância entre minhas duas porções existenciais. Todo o mundo tem direito a fraquezas emocionais diante de desafios psicanalíticos – é disso que se trata.

TUDO CONTROLADO

Respiro desencanto na maioria dos casos de noticiários que envolvem os municípios da região e a região como um todo. Faço observações rápidas porque a experiência joga a meu favor. Coloco o material em dois compartimentos certeiros, sem pestanejar. Ou se trata de assessoria de imprensa em forma de jornalismo, o que virou peste em todo o País com a fragilidade da mídia em tempos de aparelhinhos portáteis insuperáveis, ou então o noticiário está descolado do entranhamento de dados que deem sustentação às informações.

Traduzindo o que pretendo dizer: o jornalismo do dia a dia regional está vinculado fortemente às fontes oficiais que dizem o que bem entendem e veem tudo publicado como massa única em diferentes plataformas de informações. Também há casos de voos solos dessas mesmas publicações. Nesse caso, o oficialismo está disfarçado de reportagem autônoma. Há vínculo explícito ou implícito nas duas modalidades mais usuais.  As Prefeituras do Grande ABC são uma constelação de felicidade. Menos nas manchetes obrigatoriamente relacionadas a demandas sociais e econômicas,  impossíveis de esconder. É uma esquizofrenia infernal.

CIDADANIA INFORMATIVA

A tradução de tudo o que observo no jornalismo regional em diversas plataformas é que está em operação há muito tempo uma inescapável bifurcação de duplo efeito negativo. Primeiro, a informação adocicada de varejismos administrativos públicos. Segundo, o distanciamento permanente de informação essencial à formação de mentalidades sociais individuais e coletivas com força moral e técnica para reagir à realidade econômica e social sufocada pela ocupação da fanfarra triunfalista.

Sinceramente, não vejo na região, em qualquer plataforma de comunicação, um exemplar sequer de jornalismo que resista às contraindicações impostas pela cidadania informativa.  

Integram essa persecução crítica supostas práticas profiláticas em forma de direcionamento permanente a determinados alvos por razões que vão muito além do jornalismo baseado em dados comprovados. E dados comprovados não são na maioria dos casos dados de interesseiros nas denúncias, gente que espetaculariza eventuais irregularidades. Jornalismo de robustez ética não subestabelece denúncias em tratados claramente vinculados a reciprocidades ou perseguição a qualquer custo.

Segue a análise de 25 anos atrás, quando o ambiente regional parecia e era de fato muito mais compatível com os desafios que se apresentavam para este século. O que temos hoje é um ambiente que, paradoxalmente, não permite aos independentes e lúcidos que   ao menos se deem permissão a construir projeção minimamente otimista, porque agora, esse sentimento, soaria mesmo como coisa de otário. No passado, havia uma certa lógica para se acreditar no futuro. Agora, há um passado em forma de presente que recomenda cuidados extremos. Bastam otimistas de aluguel. 

 

Um cinturão vermelho

de integração?

 DANIEL LIMA - 05/11/2000

O resultado mais significativo das eleições de outubro para o Grande ABC não está vinculado apenas ao fortalecimento político do cinturão vermelho representado pelo PT, que aumentou sua cota com cinco dos sete prefeitos depois que Oswaldo Dias bateu Leonel Damo em Mauá e José de Filippi Júnior superou José Augusto da Silva Ramos em Diadema. Tradicionalmente isolada do jogo político-administrativo da Grande São Paulo e tratada como periferia da periferia, a região pode beneficiar-se da sinergia doutrinária e administrativa do Partido dos Trabalhadores.

Diferentemente dos demais modelos de instituições político-partidárias que participam do jogo democrático no País, o PT é o que, juízo de valor à parte, mais se aproxima do que se poderia chamar de clube associativo, cujos membros se interrelacionam em defesa dos ideais programáticos. Outros partidos, todos sabem, são realmente partidos: dividem-se em várias partes que raramente se comunicam e praticam uma colcha de retalhos de propostas e ações que lembram esses times de peladas de final de semana na praia. 

Resta saber até que ponto o amálgama que liga os integrantes do PT dos mais diferentes municípios em que se enraizou no Executivo será traduzido em ações produtivas para o Grande ABC. O Consórcio de Prefeitos e a Câmara Regional vivem momentos delicados na região. Praticamente foram desativados neste ano eleitoral. A expectativa é de que não só a intersecção seja reconstruída como também seus ideais rompam fronteiras e cheguem pelo menos até a Capital, onde Marta Suplicy derrotou Paulo Maluf. Guarulhos, onde venceu o também petista Elói Pietá, está menos próximo do entrelaçamento socioeconômico da região. 

Um exemplo positivo do que poderá representar a vitória de Marta Suplicy para o Grande ABC é a possibilidade de a Capital envolver-se mais no projeto Eixo Tamanduatehy que o prefeito Celso Daniel lançou há dois anos. A proposta de revitalização econômica e social de extensa área territorial de Santo André que foi abatida pela deserção industrial ficou geograficamente ilhada porque não contou com sinergia da Prefeitura de São Caetano, do petebista Luiz Tortorello, e nem com a Prefeitura de São Paulo, de Celso Pitta. Esses municípios também sofreram os efeitos da descentralização industrial e contam com imensas áreas degradadas no corredor da Avenida dos Estados e seu entorno. 

EXPANSÃO DO EIXO

O fato de São Caetano estar entre Santo André e São Paulo não significa que o Eixo Tamanduatehy deixe de ser expandido territorialmente e potencializado como área planejada de investimentos. Por mais que seja adversário dos petistas, o petebista Luiz Tortorello não correria o risco de isolar São Caetano, sob pena de comprometer a qualidade de vida de seus moradores depois da constatação (veja matéria nesta edição) de que o potencial de consumo local sofreu queda de 30% nos últimos 10 anos. 

O Eixo Tamanduatehy é apenas um dos muitos exemplos de benefícios mútuos que podem favorecer o Grande ABC e a Capital se os administradores públicos olharem muito além dos limites geográficos. Verdade seja dita, o PT tem essa prática como espécie de dogma. Graves problemas urbanos ligados ao sistema viário, água, saneamento, saúde, educação e segurança, entre tantos outros a assolar os municípios mais importantes da Grande São Paulo e que a criação formal da Região Metropolitana há 30 anos não conseguiu resolver, poderão ser tratados de forma diferente agora que o Grande ABC e a Capital estão tingidos de vermelho.  A metropolização dos problemas exige respostas igualmente metropolitanas. 

A afinidade entre a nova prefeita de São Paulo e os petistas eleitos no Grande ABC, todos representantes da ala mais moderada do Partido dos Trabalhadores, estimula projeções de que parcerias intermunicipais tendem a se consolidar. Até porque não faltarão armadilhas para o PT desgastar-se e tornar a vitória de outubro fracasso de outubros próximos. Em menor ou maior grau, os prefeitos petistas vão administrar municípios que estão economicamente com a corda no pescoço e que terão, como os demais, a Lei de Responsabilidade Fiscal para aplacar eventuais ímpetos populistas. Racionalizar os recursos públicos é uma das terapias indicadas para quem não quiser conhecer o inferno astral das urnas, porque as demandas sociais são avalanches permanentes na Grande São Paulo de profundas perdas econômicas nos últimos 20 anos. 

O fato é que jamais, em toda a história política da Grande São Paulo, um partido com as características especiais do PT teve a oportunidade de transformar votos em complementaridade administrativa. A teimosia de tratar os municípios do Grande ABC como ilhas só foi amenizada nos últimos quatro anos com o ressurgimento do Consórcio de Prefeitos e a instalação da Câmara Regional. Entretanto, os movimentos foram tímidos diante das necessidades econômicas e sociais de uma região fortemente impactada pela globalização. Principalmente porque os administradores públicos, tanto os petistas quanto Maurício Soares e Luiz Tortorello, ainda não se dedicaram para valer a transformar as secretarias de Desenvolvimento Econômico em ponta-de-lança na recuperação de uma região que perdeu o viço com a guerra fiscal e uma série de contraindicações microeconômicas. O viés ideológico que ainda permeia grande parte dos administradores públicos brasileiros, pouco suscetíveis às nuances capitalistas e entregues a monocórdios discursos voltados para as agruras sociais, é uma das explicações mais simplificadas para o terceiro-mundismo do País.

O que se apresenta para novos quatro anos com a onda vermelha, agora sob o ponto de vista de integração administrativa, é melhor do que a encomenda. Além da força quase hegemônica do PT na região, ainda se tem a possibilidade de contar com o suporte da Capital tão avassaladoramente influente nos destinos regionais. Tradicionalmente à reboque do comando econômico e cultural de São Paulo, a ponto de carregar o estigma de Gata Borralheira em contraposição à Cinderela paulistana, ao Grande ABC se oferece oportunidade histórica de reverter um jogo que lhe foi sempre desfavorável e transformar a Capital paulista em aliada estratégica.  

A dúvida que se coloca é sobre a possibilidade de o Grande ABC continuar na penumbra do empreendedorismo; isto é, o capital continuar a ser tratado como artigo de segunda classe e que nem de longe se compara, sob a ótica da administração pública, às sequelas sociais sacramentadas por erros históricos tanto dos Executivos e dos Legislativos locais quanto do governo do Estado e da União. Se é verdade que o PT e demais partidos de esquerda têm mantido um diferencial reconhecidamente respeitado em relação aos chamados partidos conservadores, no caso o trato de recursos públicos com muito mais seriedade, também é inquestionável que na maioria de seus governos falta intimidade com o empreendedorismo privado.  

DIADEMA DIVIDIDA

Diadema é o exemplo mais emblemático disso. Primeiro Município dirigido pelo PT, Diadema se transformou em quase 20 anos de administração de esquerda em caso de dupla face. O lado saudável de ferramentas públicas garantiu a construção de uma cidade minimamente habitável no lugar de um território até então pavoroso, embora os índices de criminalidade sejam estúpidos. O lado comprometedor é que o empreendedorismo local jamais contou com suporte logístico da Prefeitura. Pior: geralmente foi discriminado e estigmatizado como elemento usurpador da sociedade. Uma dicotomia que já não tem tanta força, porque se percebeu que sem desenvolvimento econômico não há desenvolvimento social prolongado.  

Como democracia pressupõe pressões e contrapressões, espera-se que os partidos supostamente conservadores que têm representação fragmentada no Grande ABC finalmente caiam na real e aprendam com o exercício de coletivismo programático e operacional do Partido dos Trabalhadores. Afinal, não há nada mais preocupante no horizonte político-institucional da região do que a possibilidade do monopólio avassalador de uma agremiação que, por mais que tenha ganhado maturidade ao longo de derrotas sucessivas, não pode praticar sozinha o jogo democrático. Até porque, democracia pressupõe mais protagonistas, sob o risco de desaparecer.

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