Sociedade

SOCIEDADE SERVIL
E DESORGANIZADA

  DANIEL LIMA - 20/10/2025

Os leitores precisam dedicar atenção especial para compreenderem o que segue. E também para entenderem que o Grande ABC de quase três milhões de habitantes precisará de milagre institucional para amenizar as dores econômicas e sociais. Sem regionalidade e, pior que isso, com forte fluxo de mandonismo territorialista acrescido de saudosismo dos movimentos separatistas do século passado, temos uma tempestade perfeita. E vamos pagar caro por tudo isso. Aliás, já estamos pagando. Basta ver a queda extraordinária do PIB e de tantos outros indicadores, sociais, econômicos e públicos neste século.

Leio tudo que se passa no Grande ABC com sofreguidão. E isso me custa um terço do tempo disponível à leitura de tudo que encontro no dia a dia. O que consumo de leitura sobre o Grande ABC é uma obrigação profissional. Na maioria dos casos não é nada satisfatório. O varejismo fastfoodiano toma conta do pedaço. Abdicar de leituras com valor agregado em todos os sentidos, inclusive de estilo, é o preço que pago como regionalista em extinção. Aliás, dia desses vou escrever sobre isso. Sobre regionalidade. Não vejo uma alma sequer perambulando sistematicamente por esse mundo de fantasia. Sou um idiota juramentado.

SALVE ADEMIR MEDICI

Uma exceção do tempo que leio, de forma positiva, sobre tudo que envolve o Grande ABC, é a página de memórias do meu amigo Ademir Medici, velho companheiro de lutas. Ele cuida da construção do passado. No meu caso, me ocupo com a previsão geralmente fundamentada do futuro.

Ele, Ademir Medici, não lança mão de alquimias. No meu caso, não uso cartomancia. Nos damos bem dentro e fora de campo porque sei que Ademir Medici é fiel aos acontecimentos do passado. E ele sabe que sou intransigente quanto às linhas do que sempre chega em forma do amanhã.

Tenho lido muito Ademir Médici na propagação do movimento dos autonomistas ou emancipacionistas, como ele chama as intervenções que dividiram o Grande ABC em sete partes. Nos damos tão bem que tomo a liberdade de descartar como indumentária político-social daquele período as duas definições propagadas. Para mim, tratou-se de separatismo aquela conta de padaria de dividir o território regional. Não coloco em dúvida os propósitos que caracterizaram aquela divisão. Certamente, entretanto,  havia camada estritamente político-eleitoral. E mesmo assim, nesse caso, também não desclassificaria as lideranças. 

GRANDE SÃO PAULO

Admitir essa vertente de poder não significa que afrouxo os estragos. Naquele tempo,  organizações internacionais pós-guerra foram fundadas para tornar o fragmentado coletivamente prospero.  Os separatistas do Grande ABC deixaram de observar os movimentos geopolíticos de então. Não viveram diretamente os danos da Guerra Mundial.

Pois a caminho de quase um século de repartidas que dilapidaram a integralidade físico-geográfica e cultural do Grande ABC, eis que remanescentes daquele movimento seguem mobilizados aqui e ali. Leio na página de Ademir Medici que se programa para o ano que vem um encontro de lideranças separatistas da Região Metropolitana de São Paulo.

Confesso que não tenho a menor ideia do que era a Grande São Paulo antes de movimentos assemelhados aos do Grande ABC. Da Região Metropolitana de São Paulo que temos conheço um bocadinho. São inúmeros os estudos. Mostrei recentemente, entre outros resultados, que o PIB do Grande ABC é o quarto PIB desse amplo território de 39 municípios. Perde para a Capital, peça central da engenharia geoeconômica, perde para a Grande Oeste, que tem Osasco e Barueri e mais cinco municípios, e perde também para a Região Norte, com a liderança de Guarulhos.

DUAS REALIDADES

O circuito do Rodoanel provocou uma revolução econômica na Grande São Paulo. Só as autoridades públicas do Grande ABC não sabem disso. Ou sabem e nada fazem. Ainda tem gente na praça que jura por todos os juros que temos competitividade imbatível porque portos e aeroportos estariam próximos. Jamais estiveram tão distantes. Eles, os incultos, confundem as coisas. Vão pela geografia ao invés de acordarem para a logística. Já escrevemos muito sobre isso. Mas os despreparados sempre aparecem para dar palpites infelizes.

Há pelo menos dois tipos de movimentos separatistas que dominaram a Região Metropolitana de São Paulo. O que deu certo ou caminha nesse sentido porque era mesmo a melhor pedida. E o que deu errado porque se cometeu o pecado da ingenuidade em confronto com a competitividade.

Os movimentos que deram certo não têm nada a ver com as especificidades do Grande ABC. Eram territórios municipais sem conexões semelhantes a que temos. Conurbação, ou seja, a ausência de divisas territoriais na prática, muito além da cartografia, torna os sete municípios da região estruturalmente  endereço único com  realidades naturais de ocupação demográfica desordenada.

GRANDE BURRADA

Não há, portanto, termos de comparação, numa análise simples como essa, mas não simplória, para traçar uma linha de coerência que transfira o conceito de separatismo ou algo semelhante de forma linear. A divisão do Grande ABC em sete partes foi uma burrada sem tamanho. Aliás, com o tamanho dos sete municípios que o compõe. Já escrevi muito sobre os estragos causados.

O que quero mesmo nesse texto é lamentar o passado mal construído e o presente que se constrói. Somamos ao separatismo autofágico o territorialismo disfarçado de região que não tem nada a ver com regionalidade. Vou explicar.

Territorialismo é um processo político-administrativo entre os poderes públicos municipais cujos titulares dos cargos se organizam a pretexto de alcançarem a regionalidade mas de fato não pensam em outra coisa senão fortalecerem exércitos próprios.

Quanto mais unidos como dominantes do ambiente político-eleitoral, com medidas que se cruzam e se retroalimentam, mais os territorialistas colocam a escanteio eventuais opositores. O movimento está acima de distintivos partidários. Territorialismo é o municipalismo monolítico mantido por grupos de interesse que se conectam com a vizinhança em tudo que permita e possibilita aumentar o poder de fogo no próprio município.

Temáticas que possam provocar divisões são jogadas no lixo pelos territorialistas. O Clube dos Prefeitos com o grupamento atual é a sede do movimento, mas o Clube dos Prefeitos é tão ruim de desempenho que os territorialistas se viram para manter a integração informalmente. O Clube dos Prefeitos é apenas e tão somente um pretexto institucional para disfarçar os objetivos particulares e grupais.

CONEXÃO NOCIVA

Como se percebe, então, temos um espaço regional com duas vertentes. De um lado os representantes dos separatistas a cultivar a memória das lideranças que se foram fisicamente, mas deixaram um legado a ser cultivado permanentemente. De outro lado, temos os territorialistas que se utilizam da região como arena de pactos imperialistas.

O que não temos é regionalidade, que não tem nada a ver com região. Região é um agrupamento de municípios locais sem interatividade sistemática. Pior que isso: dada as caracterizas locais, região é um amontado de organizações redundantes, municipalistas e conflitivas que si. As regras do jogo são ditadas em cada Município.

Regionalidade é outra história. Resumidamente, seria o estágio máximo de maturidade dos gestores e sociedade dos sete municípios. Caso se tornasse realidade, ou tenha sido realidade em algum período substantivo, tudo se apresentaria tão extraordinário que os sete municípios pareceriam inexistentes. Os separatistas teriam, portanto, sufocados.

PRIMEIRO CENTENÁRIO

Na série “Barcaça da Catequese e o Gataborralheirismo”, Regionalidade é um dos eixos relevantes a ser esmiuçado. Gostaria imensamente de, por volta de 2050, quando deverei completar meu primeiro centenário de vida, esmiuçar nesse computador tudo que escrevi sobre regionalidade e variantes. Ficaria feliz se quebrasse a cara. Mas não acredito um tiquinho nisso.

Há 35 anos, quando lancei a revista LivreMercado, por mais que tenha sido ácido sobre a situação que vivíamos, e sobre o futuro que nos aguardava, acabei superado pelos fatos que se revelariam mais graves.

Somente os idiotas contumazes, figuras abjetas que têm sempre uma frase feita de estupidez, desprezam o passado como fonte de inspiração e prospecção. Ainda ontem comecei a preparar o ajuntamento num único arquivo dos 29 ensaios de articulistas convidados pela Editora LivreMercado para projetarem o futuro do Grande ABC. “Nosso Século XXI”, primeira edição, foi lançado em dezembro de 2001. O Clube Atlético Aramaçan recebeu três mil convidados. Em 2007, na segunda edição, com 36 articulistas, o Teatro Municipal de Santo André ficou lotado.

Tenho pensado muito o que fazer com os insumos da primeira edição. Sei que ontem botei tudo no mesmo espaço digital informal. Somam quase 600 mil caracteres. Ainda estou estudando o que fazer com aquelas preciosidades. Ideias não faltam. O que falta é ambiente institucional que incentive o incremento de iniciativas que resistam a boicotes. Sim, resistam a boicotes.

FORA DE CONTROLE

Muitos mandachuvas e mandachuvinhas não têm interesse em que o Grande ABC se mobilize. Diferentemente, portanto,  dos anos 1990, quando o Fórum da Cidadania ajudou a botar fogo na canjica que resultou na reativação do moribundo Clube dos Prefeitos, na criação da Agencia de Desenvolvimento Econômico e no lançamento da Câmara Regional.

A regionalidade do Grande ABC num nível mesmo que modesto, mas provocador, deveria ser prioridade do Clube dos Prefeitos. Sonho com o dia em que o Clube dos Prefeitos saia do marasmo e, entre muitas medidas, promova com parceiros cursos de regionalidade. Sei que não será fácil definir as linhas gerais do projeto, mas com um mínimo de atenção e interesse, tudo se resolve.

Superar o territorialismo é o grande desafio regional. Não acredito que a sociedade servil e desorganizada, e agora tutelada pela política nacional, terá combustível de cidadania para gastar. Os separatistas, enquanto isso, se organizam. Juntando territorialistas e separatistas, a regionalidade vai mesmo para o saco. 

A propósito: esta é a vigésima-nona vez que utilizo a expressão “Sociedade Servil e Desorganizada” na história desta publicação. A primeira como manchetíssima de uma edição. A primeira vez que utilizei a expressão no corpo do texto foi em julho de 2023. Demorei demais. Outros, alienígenas, preferem “Sociedade Civil e Organizada”. É o fim da picada. É o fim dos tempos.

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