Sociedade

LULA HERÓI, TRAIDOR E
VILÃO DE SÃO BERNARDO

  DANIEL LIMA - 20/08/2025

São Bernardo comemora nesta quarta-feira mais um aniversário. Não é um aniversário qualquer. Provavelmente é o pior da história. Menos de uma semana após a operação da Polícia Federal que afastou do cargo o prefeito Marcelo Lima e assessores, São Bernardo procura um rumo a seguir com a prefeita Jéssica Cormick.  Não é uma tarefa fácil, como se sabe. Ainda mais que a prefeita interina está presa ao espólio do secretariado do prefeito afastado.

A institucionalidade foi para o brejo da desconfiança generalizada. São Bernardo virou endereço tóxico em governança e em governabilidade. Dá para imaginar o estrago nacional e mesmo internacional dessa que também é a capital do trabalhismo brasileiro. Vai demorar para a integridade de São Bernardo voltar aos trilhos. A mídia chapa branca faz esforço tremendo para enganar o distinto público. Ares de pretensa normalidade não resistem ao que é agudamente preocupante.

Quem acredita que uma pesquisa que procure tomar o pulso do orgulho de morar em São Bernardo nestes dias turbulentos registrará outro resultado que não sentimento de vergonha, de prostração, de desencanto,  precisa passar por psicanalista ou está vivendo em mundo paralelo. Seria paradoxalmente pior, claro, se tudo o que foi descoberto e denunciado pela Polícia Federal permanecesse como modus operandi da Administração Municipal. Resta saber o que vem em seguida.

INFLUÊNCIA DE LULA

Pois é essa São Bernardo que precisa ser levada em conta neste aniversário. Festejar a data, qualquer que seja a estratégia, é um acinte. São Bernardo precisa se recolher com pudores à desonra de reunir no Paço Municipal tanta gente preocupada com outros afazeres, quando o apelo que vem do passado de desmonte exige planejamento sob bases de recuperação econômica.   

São Bernardo vive há meio século as consequências positivas e negativas de quem jamais ocupou um cargo público local. Uma liderança oculta que permeia toda a vida de São Bernardo nos últimos 50 anos.

De peão metalúrgico a três vezes presidente da República, Lula da Silva é um espectro que comanda trilogia que não pode ser subestimada. Lula é herói, Lula é vilão e Lula é traidor de São Bernardo.

Não espere dados estatísticos profusos nesta breve análise.  O que se pretende é dizer o óbvio muito esquecido pela quase totalidade da sociedade regional. A verdade é que Lula da Silva ditou o rumo de São Bernardo nas últimas cinco décadas, arrastando as demais cidades da região. E ditou o rumo sem precisar botar diretamente o dedo de cargo público local nas feridas de São Bernardo, Terra Prometida de mobilidade social que sangra a cada nova temporada.

GLÓRIAS E FRUSTRAÇÕES

Da liderança metalúrgica raivosa e libertadora da classe trabalhadora à tripresidente da República com resultados gloriosos e frustrantes, Lula da Silva está em cada pedaço da geografia regional, por mais que prevaleça em São Bernardo. O Grande ABC respira Lula da Silva. O diapasão depende das temporadas macropolíticas. Ônus e bônus se alternam.

De novo presidente, não há como desviar os olhares. Espera-se de Lula da Silva medidas que de alguma forma contemplem a indústria regional. E não tem sido essa a prática. Muito longe disso. Diferentemente, portanto, do período de dois mandatos no início deste século dominado pelo PT de cinco mandatos presidenciais. Um período em que a Doença Holandesa Automotiva de São Bernardo parecia sob controle.

A pergunta básica, central, definidora, que poderia ser feita é a seguinte: São Bernardo (e o Grande ABC) dos anos 1970 é melhor, igual ou pior que o Grande ABC desta metade da terceira década de um novo século. Resposta? Pior, muito pior.

Praticamente piorou de forma absoluta e relativamente aos principais concorrentes econômicos do Estado em todos os indicadores econômicos, sociais, institucionais e o que mais forem utilizados. Responsabilidade integral de Lula da Silva e seus seguidores? Menos, menos. Responsabilidade de Lula da Silva e outros agentes de São Bernardo e da região? Sem dúvida.

LULA HERÓI

O vértice de herói do triângulo das digitais de Lula da Silva particularmente em São Bernardo (sempre levando-se em conta o espraiamento regional) está modulado no tempo e no espaço em dois períodos: como liderança metalúrgica que colocou São Bernardo no mapa de uma revolução entre capital e trabalho no mundo industrial, a partir da segunda metade dos anos 1970, e os dois mandatos como presidente da República.

A história de Lula sindicalista e de Lula político é conhecida demais para ser repetida. No caso dos tempos de sindicalista, liderou trabalhadores industriais da região, principalmente os metalúrgicos de São Bernardo, a vigoroso processo de mobilidade social corporativa. São Bernardo ganhou uma nova classe social, a Classe Média Trabalhadora, que passou a rivalizar com a Classe Média Tradicional mais expressiva em Santo André e São Caetano.

Trabalhar nas montadoras e nas autopeças, com repercussão também nas demais empresas de transformação industrial, fez emergir no Grande ABC uma nova classe econômica que perdura ainda hoje, embora com notáveis quebras de dinâmica, quando não de retrocesso. É difícil resistir à desindustrialização, palavra amaldiçoada pelos covardes triunfalistas.

No outro período de herói, na condição de presidente da República, Lula da Silva fez com que,  especialmente o setor automotivo,  ganhasse impulso, depois de anos seguidos de esvaziamento nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e um desastrado desequilíbrio de tratamento fiscal entre as grandes empresas e as pequenas e médias da cadeia produtiva.

Com Lula da Silva não se restabeleceram as cadeias de produção, porque as pequenas e médias empresas nacionais foram varridas do mapa regional, mas se incentivaram investimentos que levaram o PIB de São Bernardo e também da região a crescer em proporção extraordinária. Faltou pouco para recuperar o estrago de Fernando Henrique Cardoso sem que isso,  entretanto, representasse resgate histórico do período de efervescência sindical.

O crescimento durante os dois mandatos de Lula da Silva, entre 2003 e 2010, contou com dose cavalar de artifícios. O Brasil avançou em média 4% ao ano, praticamente o dobro do período pós-democratização, mas menos que a média dos emergentes. São Bernardo avançou mais que a média nacional no período.

Exportações de commodities especialmente para a China e gastos fiscais descontrolados, que estouraram durante a presidência de Dilma Rousseff, levaram acadêmicos a acionarem as baterias de eliminação do processo sempre negado de desindustrialização de São Bernardo e do Grande ABC. Não poderiam estar mais equivocados. 

LULA VILÃO

Nesse período de 50 anos entre o peão Lula,  o Lula sindicalista e o Lula presidente, seria inevitável que houvesse desgaste do outro lado do balcão de um capitalismo errático como o brasileiro. Os embates com os empreendedores foram duríssimos, especialmente e diretamente com as grandes empresas. Mas houve exageros.

As pequenas e médias indústrias foram levadas ao precipício. O tratamento sindical igualitário aos desiguais provocou danos monumentais. O próprio Lula da Silva reconheceu mais tarde o descompasso de reinvindicações e conquistas colocadas na mesma plataforma.

Uma entidade fundada em Santo André e que chegou a reunir mais de três centenas de pequenos e médios empreendedores locais desapareceu juntamente com os associados. Todos foram asfixiados pela desproporcionalidade de tratamento sindical sobreposto às barbeiragens do Estado.  

E os resultados ganharam tons ainda mais dramáticos durante os oito anos de FHC. Os pequenos e médios foram massacrados de vez, principalmente na área automotiva. Montadoras foram protegidas da invasão de bárbaros estrangeiros enquanto pequenas e médias indústrias foram expostas ao sacrifício, com carga fiscal incompatível com a pressão importadora na área de autopeças.

O ambiente regional, desde o salto ao estrelato de Lula da Silva, jamais foi o mesmo de antes. As rivalidades entre capital e trabalho na região foram repassadas também ao empreendedorismo em geral, de trabalhadores em vários setores produtivos. Nós contra eles não é um mote destes tempos. Começou em São Bernardo e se espalhou na região como um todo. Daí à desindustrialização foi apenas um passo.

O Interior levou a guerra fiscal às últimas instâncias e absorveu centenas de indústrias da região. Muitas escaparam apenas porque foram abatidas antes de potenciais transferências de endereço. Centenas de galpões industriais de diferentes tamanhos viraram ao longo de décadas espaços disputados por templos religiosos, supermercados, empreendimentos imobiliários, shoppings e escombros a céu aberto. A geração de Valor Adicionado Industrial desabou.

Nos últimos 30 anos São Bernardo é o endereço que mais perdeu PIB de Consumo entre os maiores municípios paulistas. O motor industrial, gerador de riqueza geral, segue rateando.

LULA TRAIDOR

Este é o presente da presença de Lula da Silva na região, mesmo estando em Brasília. O peão que virou sindicalista intransigente nas relações com empresários e lideranças patronais de fábricas de São Bernardo, principalmente, agora tem os olhos e ações postos no território nacional. Especialmente no relacionamento que poderia ser rotulado de entreguista com o governo autoritário e comunista da China. Lula da Silva é um traidor no sentido de que está alheio aos efeitos regionais. Nada de compensatório se apresenta. Tem a frieza de Fernando Henrique Cardoso.

A invasão dos asiáticos ocupa múltiplos setores nacionais. A participação da China nos negócios internacionais do Brasil é cada vez maior. A balança comercial entre Brasil e China é francamente favorável ao Brasil, mas há diferença que drena a força econômica brasileira: enquanto exportamos produtos sem valor agregado, como commodities agropecuárias e minerais,  chineses aportam investimentos em serviços e industrias.

E o pior de tudo isso é que montadoras chinesas desembarcam de forma predatória e vão comendo pelas beiradas a produção e a venda de veículos no mercado nacional. Cada vez mais as fábricas chinesas abarrotadas de veículos que a recessão econômica não absorve, desembarcam excedentes no Brasil com preços competitivos só possíveis porque, entre outras ações, utilizam mão de obra sem direito a regulação de padrão ocidental.

Ou seja: os chineses usam de tarifaços sociais para avançar no Ocidente mais civilizado nas relações econômica e institucionais. Para piorar a situação, enquanto Lula da Silva festeja  cada novo lançamento de fábricas chinesas como se o Brasil marcasse um gol em final de Copa do Mundo, as montadoras locais, especialmente as mais tradicionais e com unidades na região, sobretudo em São Bernardo,  reagem com limitações. Afinal, precisam seguir regulações tributárias e trabalhistas locais.

 Tudo se encaminha para o acirramento das relações entre multinacionais do setor há muito instaladas no Brasil e no Grande ABC e as invasoras chinesas.  O descarregamento de peças desmontadas para produção de veículos chineses no Brasil gera competição desigual em custos que repercutem no mercado em forma de preços mais competitivos para os chineses.

A Anfavea, o Clube das Montadoras, decidiu profissionalizar o comando com a contratação de um especialista, mas a tarefa de reduzir os danos chineses passa pela mediação do governo de Lula da Silva. Esse é o problema maior. Os chineses são parceiros geopolíticos preferenciais do governo petista. 

São Bernardo e o Grande ABC como um todo não estão na agenda automotiva da presidência da República que, outrora, ocupava as fábricas locais para reivindicar e conquistar direitos inspirados principalmente nas relações trabalhistas europeias, sobretudo da Alemanha e mesmo dos Estados Unidos.

Ignorantes ou fanáticos, desinformados ou irresponsáveis, sindicalistas de São Bernardo festejam a chegada de montadoras chinesas. Mais que isso: alardeiam interesse em investimentos na região. Talvez ainda não tenham feito as contas: é incompatível com o orgulho sindical de grandes conquistas trabalhistas admirar e pretender implantar o perfil de produção das companhias chinesas.

O dumping social chinês talvez devesse levar as lideranças metalúrgicas locais a um curso de aprendizagem de concorrência internacional e as sequelas aos países que não enxergam de olhos abertos o que os chineses decifram de olhos puxados.

FATORES MULTIPLOS

Relaciono abaixo mais de três dezenas de passivos que São Bernardo e o Grande ABC como um todo carregam como desafios a serem superados e que, portanto, reduzem a carga de responsabilidade de Lula da Silva, por mais que seja impossível retirar o atual presidente do País da cena de esvaziamento econômico e gravidade social deste território.

O que se segue são apontamentos que não podem ser dissociados do passado nem do presente de São Bernardo e vizinhança regional. São fatores cuidadosamente analisados ao longo dos anos por este jornalista e que, acredite quem quiser, praticamente são vetados de acompanhamento pela quase totalidade da mídia regional.   

1. Chineses invasores.

2. Baixa competitividade industrial.

3. Carga tributária local elevada.

4. Sindicalismo industrial doutrinário.

5. Estragos permanentes do Plano Real.

6. Cadeias produtivas destruídas.

7. Doença Holandesa Automotiva e Petroquímica.  

8. Salários e Direitos Trabalhistas acima da concorrência estadual.

9. Mobilidade urbana fragilizada.

10. Ambiente Criminal inquietante.

11. Fragilidade institucional.

12. Viuvez federal.

13. Viuvez estadual.

14. Territorialismo oportunista.

15. Redes sociais rompidas.

16. Envelhecimento da população.

17. Geopolítica ameaçadora.

18. Mercado nacional fechado.

19. Logística interna contraproducente.

20. Baixa representatividade política.

21. Divisionismo territorial autofágico.

22. Metropolização descartada.

23. Encalacramento logístico.

24. Nordestinização econômica autofágica.

25.  Complexo de Gata Borralheira.

26. Fuga de cérebros.

27. Terciário de baixo valor agregado.

28. Ensino Superior insensível à viuvez industrial.

29. Fuga dos consumidores com o BRT.

30. Adversidades do Rodoanel.

31. Cidadania em processo de aniquilação.

32. Secretarias de Desenvolvimento Econômico despreparadas.

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