DA RHODIA QUÍMICA
AO CENTRO LOGíSTICO
Imagine uma fábrica de produtos químicos que chegou a contar com mais de cinco mil trabalhadores. Imagine o mesmo espaço, décadas depois, ocupado por gigantesco centro logístico de distribuição de produtos varejistas? Imaginou. A fábrica era a Rhodia Química. O galpão logístico é da multinacional Goodman. O que une as duas empresas é apenas o espaço físico separados pelo tempo. As finalidades revelam as entranhas econômicas de Santo André e do Grande ABC. Tradução? Desindustrialização e canibalismo comercial.
Há o que chamaria sem temor de mais contraste entre os dois empreendimentos. O primeiro empreendimento contribuiu com salários sempre elevados e, com isso, à formação de parte da classe média operária e também da classe média tradicional de Santo André, de bem nutridos holerites. O segundo empreendimento, de salários muito abaixo da atividade fabril, vai danificar ainda mais o tecido de empreendedorismo de pequeno porte em Santo André. Resultado: novas quebras de mobilidade social.
Como se já não bastasse o que vem do passado e se cristalizou no presente, o futuro será a continuidade da decadência estrutural da sociedade do Grande ABC. Como temos mostrado e avaliado em inúmeras análises. A roda da Economia do Grande ABC corre, neste século, à velocidade de apenas 30% do ritmo do PIB brasileiro.
UMA NOVA DIADEMA
Santo André não está virando economicamente uma Diadema por acaso. Virar Diadema não é um futuro que se deseje para quem já foi Capital Econômica do Grande ABC. Até porque Diadema do começo do século parecia decolar economicamente. Esqueceram de combinar com os pressupostos de investimentos produtivos e qualidade de vida.
Quem festeja como redenção a chegada do Centro Logístico da Goodman em Santo André, inaugurado ontem, com anunciada e projeção de 17 mil empregos diretos e indiretos, quem festeja essa loucura, é imprudente. Se não for imprudente é ignorante. Quem não é imprudente nem ignorante, certamente é espertalhão. Quem não for nenhuma dessas alternativas então não passa mesmo de paspalho.
Os borralheiros do Grande ABC só estão separados pela cartografia daquilo que jamais deveria ter sido repartido no século passado. A cultura de tutela é a mesma. Acreditar em 17 mil empregos diretos e indiretos é uma tremenda besteira. Primeiro porque 17 mil empregos diretos e indiretos é um jogo de palavras. Quantos empregos diretos seriam? E quantos indiretos? O que são empregos indiretos, sem manipulação semântica? E o desemprego pingado aqui, pingado ali, dos efeitos deletérios de uma concorrência completamente desigual?
LOGÍSTICA E LOGÍSTICA
Também são ignorantes de pai e mãe todos que confundem logística de última milha do setor de comércio eletrônico com logística de produção, vinculada ao setor industrial.
Santo André perdeu há muito tempo o viço da logística de produção. Não à toa que, entre as razões básicas da desindustrialização, a logística de produção aparece em todas as paradas de transtornos. Nada surpreendente. Abastecer as linhas de montagem é uma engrenagem complexa. O tempo vale ouro. E tempo tem tudo a ver com custos logísticos.
Santo André é um caos logístico para dar conta de especificidades industriais de suprimento. Lamentavelmente, ainda há perdidos no espaço do ufanismo que entendem Santo André como uma joia da coroa da logística produtiva por estar perto fisicamente de aeroportos e portos.
Mal sabem que o mundo mudou e que o conceito de proximidade é sufocado e descartado pelo conceito de que não existe mais a menor distância entre dois ou mais pontos. Ou seja: não é mais a menor distância entre dois ou mais pontos, mas a melhor distância entre dois ou mais pontos.
MAIS COMPLICAÇÕES
Prova provada disso é que o Grande ABC, exceção a São Bernardo e a uma parte lateral de Mauá, ficou isolado da competitividade metropolitana com a chegada do Rodoanel Mario Covas. Temos estudos que provam e comprovam que o Rodoanel é um dos maiores presentes de grego da história econômica da região. E o caixão vai se fechar de vez com a complementação do traçado, agora com o trecho Norte, da imensa área que abrange Guarulhos. O cerco está se fechando. Vamos ficar mais isolados ainda. Não há rezadeira que dê jeito.
Os centros logísticos de comércio eletrônico vão ocupar cada vez mais grandes terrenos de industrias evadidas do Grande ABC. Em São Bernardo está em fase de implantação outro investimento milionário, sobre o qual já comentei e que levou o secretário de Desenvolvimento Econômico, o impagável Rafael Demarchi, a projetar 20 mil vagas de emprego.
Os borralheiros do Grande ABC se deleitam com números fantasiosos. Isso vem do passado e se lançará ao futuro sem a menor dose de cautela. No passado, de chegada de shopping centers e supermercados, anunciavam sempre e sempre milhares de novos trabalhadores. Esqueceram de contabilizar a precarização dos pequenos varejistas, entregues à própria sorte. Viramos um Nordeste comercial. Fotografem qualquer capital nordestina. Repitam a experiência em qualquer centro comercial da região. Façam o mesmo nas respectivas periferias.
E O NOVO CRAISA?
Poucos estudos se fizeram na região para denunciar a propaganda enganosa que servidores públicos, prefeitos à frente, industrializam a cada novo investimento comercial. Ganham-se as manchetes incautas como ferramenta de marketing de sucesso administrativo. Tudo não passa de enganação. E olhem que investimentos anunciados com pompa e circunstâncias nem sempre desembarcam na região.
Querem um exemplo: o chamado Novo Craisa, que abarcaria novos 20 mil empregos, entre diretos e indiretos, ainda não saiu do papel. Mais que isso: quando do lançamento da empreitada, o então prefeito Paulinho Serra declarou do alto da ignorância econômica que o PIB de Santo André cresceria de imediato, de um ano para o outro, nada menos que 10%. O PIB de Santo André não cresce praticamente nada nos últimos 20 anos.
Enquanto existir na região esse espírito de avestruz em nome do positivismo de informações e da suposta competência de administradores públicos negligenciadores do futuro que precisa ser trabalhado diariamente, enquanto existir esse espirito, e, também, os festejos midiáticos que agridem os preceitos econômicos, tenham certeza os leitores que os estragos vão se agravar.
PEQUENOS NEGÓCIOS
Os pequenos negócios varejistas estão em liquidação com os desdobramentos estratégicos das grandes corporações de comércio eletrônico, especialmente dos asiáticos, mas não só dos asiáticos. Até as grandes redes físicas do comercio varejista estão se juntando às redes de comercio eletrônico movidas a uma parafernália que embute Inteligência Artificial em proporções cada vez mais dominadoras.
O que fazer diante dos desafios que colocam o comércio físico tradicional à beira do maior desastre econômico da história capitalista? Como enfrentar a Shopee com 14 centros de distribuição e três milhões de lojistas, ou pontos de entrega final, sob controle estratégico. E o Mercado Livre, com 25 centros até o fim do ano e um tentáculo de seis milhões de lojistas terminais.
Diminuir o tempo de entrega no sistema de última milha, de endereço final, caso do Centro Logístico da Goodman de Santo André, é a prioridade à competição cada vez mais encardida. O Magazine Luiza tem uma parceria com a AliExpress para venda de itens da empresa chinesa no Brasil.
CÁLCULOS EQUIVOCADOS
Há quem faça cálculos equivocados quando se trata de dissuadir a ideia de que o comércio eletrônico de redes superestruturadas não causaria maiores danos às lojas físicas. Esses especialistas deveriam dar uma passadinha nos centros comerciais mais tradicionais de São Paulo e da região. E também deveriam corrigir a rota quando apontam participação relativamente baixa do comércio eletrônico no conjunto de vendas do mercado varejista. Deveriam se dar conta da fatia relativa ao pequeno negócio, retirando-se da contabilidade geral, e, em seguida, promover o confronto direto com o comercio eletrônico. O massacre se acentua a cada nova temporada de vendas.
Os festejos por si só inconcebíveis como uma largada de Desenvolvimento Econômico de Santo André, deveriam ser substituídos por estudos profundos para formular projetos que construam um modelo de compensação ao pequeno varejo para mitigar os efeitos ruinosos e inevitáveis da legislação atual.
Onde estão os deputados federais da região, omissos diante da invasão dos bárbaros? Os negócios familiares de varejo estão sendo extintos. O deserto e a depauperação dos lojistas parecem não ter fim. Na Europa já há movimentos coordenados para impedir a chegada de asiáticos que praticam dumping social, dumping trabalhista, dumping tributário e muito mais.
HÁ TRÊS DÉCADAS
Para completar, reproduzo parte de entrevista que fiz para a edição de novembro de 1997 (isso mesmo, quase 30 anos) com uma executiva da Rhodia Química. Sim, a Rhodia Química que deu vez ao centro logístico comemorado pela Prefeitura de Santo André. O que temos é uma caçapa cantada há muitos anos. Leiam:
A Rhodia Química de Santo André está desenvolvendo de forma pioneira um sistema de empregabilidade para os quase 500 funcionários. A executiva Iaci Mortensen Rios é gerente de Educação e Desenvolvimento, uma das vertentes dos Recursos Humanos do Grupo Rhodia no Brasil, e responsável pelo projeto que gradualmente vai-se espalhar pelas demais unidades da empresa, que conta com 6,5 mil colaboradores. Ela faz alerta importante sobre essa nova palavra aparentemente enigmática do mundo empresarial: não basta adquirir mais conhecimentos; o trabalhador precisa manter-se permanentemente atualizado.
O desafio não deve ser interpretado como bicho-de-sete-cabeças, avalia Iaci. Ela recorre à pesquisa da Fundação Dom Cabral realizada em 1995 e cujos resultados mostraram que os brasileiros têm alta capacidade de adaptação às mudanças. Só chama atenção para a necessidade de o País vencer a enorme exclusão de crianças e jovens da escola. “Sem escolaridade básica, não teremos jamais a competitividade de que precisa e precisará nosso País”.
A executiva do Grupo Rhodia defende a modernização da CLT. Mas não quer ver o modelo antigo substituído por outro que destrua as conquistas sociais, de modo a colocar o Brasil em situação semelhante à de países que exploram a mão-de-obra para concorrer no mercado mundial.
PERGUNTA -- Particularmente no Grande ABC, como você vê a questão do emprego e da empregabilidade, levando-se em conta que há evidentes perdas industriais, com evasões ao longo dos últimos anos? A própria Rhodia Química já teve cinco mil funcionários em Santo André e hoje não passam de 500. Como as autoridades públicas locais e estaduais, como os empreendedores de grande, médio e pequeno porte poderiam amenizar o desemprego industrial?
Iaci – Acredito que o que está ocorrendo no Grande ABC é motivado por vários fatores, entre os quais os gerados pela globalização e pela necessidade de política industrial que apoie a preparação do País e que evite o sucateamento do parque fabril. Mas existem outros fatores que levam a esses movimentos que acabam mudando o perfil econômico de regiões e que estão mais ligados a questão como vias de escoamento da produção, sistemas de abastecimento de matérias-primas, à qualidade de vida das cidades, às fontes de preparação e fornecimento de mão-de-obra especializada, custo dessa mesma mão-de-obra e outros tantos. Na ausência de um planejamento mais adequado, as regiões deveriam se preparar para essas transformações, buscando identificar e desenvolver outras competências para criar novas oportunidades de trabalho locais. Existem experiências muito interessantes pelo mundo de ações desenvolvidas em parcerias entre governos, empresas, escolas e sociedade de maneira geral. A ilha grega de Santorini é bom exemplo de como toda uma população soube se adaptar, claro que não sem perdas, à mudança radical do perfil econômico da região: passou de produtora agrícola para centro mundial de turismo por um evento da natureza — a ilha é a boca de um vulcão. Como exemplo dessa adaptação, lembramos o fato de que todos os seus cidadãos falam inglês, pois essa é a moeda de sobrevivência em um centro de turismo.
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