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BARCAÇA DA CATEQUESE E O
GATABORRALHEIRISMO (9)

  DANIEL LIMA - 14/11/2025

Há exatamente 12 anos escrevi  sobre a escolinha que criei em 1983, portanto há 42 anos, no Diário do Grande ABC.  Vou fazer uma mixagem entre aquele passado recente, do texto de 2013, e o presente-presente, com direito a breve passagem pelo ano de 2004. Quem ainda tem alguma dúvida sobre o conceito de Barbaça da Catequese e de Complexo de Gata Borralheira não terá direito à reclamação após essa leitura. 

Lembro que, naquela 1982,  estava a dividir e a multiplicar o comando operacional da Redação com os também jornalistas Ademir Medici e Valdir dos Santos, entronizados que fomos pelo então diretor de Redação Fausto Polesi. Éramos todos jovens. Na casa dos 30 anos. O Diário do Grande ABC  era o Jornal Nacional do Grande ABC. A importância relativa dá a dimensão da tarefa daquele trio.

Nunca entendi direito as razões que levaram Fausto Polesi a recorrer a mim, ao Ademir e à Valdir (sim, Valdir é mulher) para dirigir o coração e a alma daquela empresa. Enfatizo “coração e alma” porque não faltavam diretores do Diário do Grande ABC que entendiam ser a Redação apenas acessório do empreendimento. Aliás, o Diário do Grande ABC, como tantos outros veículos comandados por quem não é do ramo, assim entende o que é Redação. O presente é mais uma constatação desse desvio. 

REDAÇÃO VERSUS COMERCIAL

Fausto Polesi sofreu um bocado durante muitos anos como um dos fundadores, acionista e diretor de Redação daquela publicação. O alinhamento entre negócio e informação é doloroso. Menos no passado, de Grande ABC fértil em riqueza, do que hoje, de  Grande ABC escasso de talentos de cidadania e fortemente empobrecido socialmente. 

O Grande ABC é uma casa sem donos. Ou melhor: é um casebre com um grupo de donos que fazem de tudo para que continue como está, porque qualquer mudança pode complicar a vida dos acomodados.

Montei naquele 1983 uma escolinha de jornalismo na Redação do Diário do Grande ABC. Muito antes de jornais da Capital introduzirem a novidade nas linhas de montagem. Sentia na pele a escassez de insumos qualificados de produção jornalística. Havia carência de talentos entre outros motivos porque os que surgiam eram catapultados rapidamente às redações dos grandes jornais da Capital. A Barcaça da Catequese não tinha limites. Tampouco o Complexo de Gata Borralheira. Tanto uma deformidade quanto outra permanecem. A diferença é o volume. No passado, era transbordante, porque a Redação era transbordante. O jornal era transbordante.

O Diário do Grande ABC se orgulhava do gataborralheirismo de preparar profissionais para a Capital. Quando alguém aparecia numa TV Globo, então, era uma festa. Quem quiser entender o espírito provinciano da região tem de passar pela história do jornal que já foi relativamente muito mais importante do que é hoje, mais que a média das publicações impressas. 

MULHERES INVASORAS

Não vou listar os profissionais (ou as profissionais, porque a maioria era formada de mulheres invasoras de redações naquele começo dos anos 1980) que souberam extrair o máximo de aprendizado daquelas aulas, porque todos aprendemos com cada um. Todos tiveram a experiência prática que as academias insistem em negligenciar. 

Jornalista que sai da Academia lembra tantas outras profissões que entregam diplomas interpretados como carreira de sucesso garantido. Na prática a teoria vai para o quarto de despejos de penduricalhos. 

Fosse esse apenas o problema, a situação de baixo nível editorial que se agravou ao longo do tempo seria remediável. Falta cultura geral e cultura específica ao exercício da atividade. Nestes tempos de Economia da Atenção, a realidade ficou ainda mais grave. Manter o foco com tantas opções exige autodisciplina quase hipnotizadora. 

JOGO PRELIMINAR

Foram três anos à frente daquele projeto que, à minha saída, no final de 1985, dissolveu-se. Escolinha era a marca informal com que todos se referiam à experiência. Não havia sofisticação denominativa, tampouco plano previamente estruturado. Era jovem, contava com 32 anos de idade, e não dava muita importância ao marketing conceitual de um projeto no papel. 

Tudo muito diferente de duas décadas depois quando, antes de assumir a direção de Redação do Diário, agora solitariamente, preparei o que chamei de Planejamento Estratégico Editorial, calhamaço de 100 mil caracteres subdividido em vários núcleos temáticos. Era o plano de voo demarcado inicialmente para os cinco anos seguintes, que viraram 11 meses apenas.

Os alunos da escolinha daquele começo dos anos 1980 mal sabem que quem mais aprendeu com aquelas jornadas foi este jornalista. Mergulhei a fundo naquele trabalho complementar de jornadas diárias de até 18 horas. A escolinha de jornalismo que dirigi integrava cumulativamente o meu dia a dia profissional. Dispunha de tanta autonomia que o diretor de Redação Fausto Polesi só soube quando dei a largada. Ele aprovou sem restrição alguma. 

DIVISÃO DE BASE 

A Escolinha do Diário era uma espécie de Divisão de Base do futebol. Quem não cuida de reposição de talentos se dá mal. Pena que jornalistas valham tão pouco no mercado profissional. No fundo, no fundo, repetem os craques ou supostos craques da bola. Apenas uma minoria nada em dinheiro. São piscinas olímpicas de dólares e euros.

Puxando pela memória, lembro da simplicidade metodológica que adotei na Escolinha do Diário. Precisava encontrar, urgentemente, talentos que pudessem não só repor as férias de titulares mas também substituir demitidos numa Redação de alta rotatividade. Reunia-me uma vez por semana com os alunos, se assim me permitem chamar aqueles jovens cheios de esperança, e comentava aspectos da carreira naquele jornal. Mais que isso: os encontros me permitiam analisar face a face os textos de cada um deles.

Que textos? Os alunos, formandos principalmente da Metodista, recebiam durante o encontro uma pauta para cobertura de evento programado para o final de semana na região. Destacava pelo menos quatro deles para cada cobertura, independente do titular contratado pelo Diário do Grande ABC. Mandava-os ao mesmo evento e delimitava o tamanho da reportagem. Na terça-feira seguinte, reunia-me com todos para analisar os textos. 

Questões gramaticais eram subestimadas.   A forma gramatical não me interessava prioritariamente, exceto em casos de deslizes homéricos. Valiam muito mais a criatividade, a precisão informativa, a embocadura crítica.

COMPETÊNCIA INTERNA

Há de perguntar o leitor a razão de enviar a um mesmo evento pelo menos quatro aprendizes. Simples, muito simples: ao me debruçar sobre cada texto nos encontros semanais, poderia checar o potencial de cada futuro profissional. Eles competiam com eles mesmos, já que produziam os trabalhos individualmente, cada um em seu respectivo território domiciliar ou profissional. Eram tempos em que Internet não passava de experiência das forças armadas norte-americanas.

A soma de todos os textos dos repórteres-aprendizes destacados acabava por tornar-se um massa de informações mais confiável como produto, inclusive de mensuração da qualidade do que fora oficialmente produzido e publicado pelo jornal. Nos primeiros tempos sofri um bocado com a flacidez informativa. O martelar de conceitos tendo a atividade prática como elemento explicativo não tardou a dar frutos. Nada resiste ao aprendizado sob bases teóricas mensuráveis.

No fundo, no fundo, transformei as aulas de jornalismo, se assim me permitem qualificar aqueles encontros, em verdadeiros confrontos. Talvez a explicação seja minha origem profissional. Dei os primeiros passos aos 15 anos numa revista semanal em Araçatuba. Entendo que o aprendizado está intimamente relacionado à competitividade. Precisamos de espelhos, de desafios, de paradigmas. Repassei aos alunos muitos conceitos. Um dos mais sagrados é que não se deve digitar texto algum se a alma não estiver conectada ao trabalho. 

Minha chave de ignição de entusiasmo a produzir jornalismo era a leitura de qualquer artigo de veículo de comunicação com o qual me desse bem. À época, minha referência maior era o Jornal da Tarde, que vivia o esplendor e no qual projetava um dia trabalhar. Quando o consegui, já nos anos 1990, me desencantei. Mas aí é outra história.

Não diria que sou suspeito para descrever a escolinha de jornalismo que um dia com a cara, a coração e um caminhão de comprometimento profissional resolvi criar no Diário do Grande ABC, mas acho que os alunos, ou mais propriamente as alunas, seriam mais apetrechadas a relatar aqueles tempos. Provavelmente, por mais que tenha me entregado àquela missão, para todas elas deve ter sido muito mais importante. Foram os primeiros contatos com o mundo real das reportagens.

GRAMÁTICA ESCRAVIZANTE

Possivelmente o leitor deve estar encafifado sobre a razão de não ter dado jamais importância relevante à gramática nos textos daqueles aspirantes a jornalista. Longe de mim, acreditem, desprezar a forma. Sofro com preciosismos e sei o quanto a língua portuguesa é traiçoeira a nos submeter a alguns vexames. 

Dar menos ênfase a correções gramaticais naquele processo de aprendizagem tinha o sentido filosófico que defendo até hoje: quando um profissional de comunicação é formatado sob  pressão gramatical em detrimento de vetores que estratificam o conjunto de saberes e potencialidades que detém, estamos utilizando uma armadura que praticamente paralisa seus movimentos cognitivos.

Costumo dizer que jornalista que escreve sob o ponto de vista gramatical absolutamente intocável numa primeira investida é jornalista provavelmente sem talento estrutural que o coloque no centro das atenções dos leitores. Escrever certinho na primeira tacada é um mecanismo comportamental excessivamente burocrático, ditado pela provável escravatura de acadêmicos. 

MUNDOS DIFERENTES

É por essas e outras que poucos acadêmicos se destacam como exímios formuladores de pensamento no formato jornalístico. Aqueles que se dão bem, como o Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, são avidamente consumidos. E não podem deixar de constar de bibliotecas. Tanto que os tenho cuidadosamente instalados em minha residência.

Tenho salvaguarda para não comprar gato por lebre. Antes de fazer o pedido de compra de uma obra recomendado por especialistas de jornais e revistas,  investigo a vida editorial do autor. Se é colaborador assíduo de publicações jornalísticas de peso, já o contabilizo como ativo intelectual da herança que deixarei aos meus filhos em forma de sugestão de leitura.

Passados 42 anos desde que inventei a escolinha no Diário do Grande ABC, e vendo o que vejo de forma impressa nas páginas daquele jornal e de tantos outros, não tenho dúvida de que aquela modelagem, agora sob o rebuscamento de um planejamento detalhado que incluiria o que chamei de produtividade editorial, proporcionaria resultados mais demorados e sofridos, mas nem por isso dispensáveis.

O agravamento da qualidade dos jornais se dá na exata proporção do irreversível e longo processo de fragilização do sistema educacional. Tudo potencializado pela vulnerabilidade econômico-financeira dos veículos de comunicação. Vivemos tempos de dispersão do conceito de fazer jornalismo, perigosamente e pretensiosamente apropriado pela pirataria pouco apetrechada e lúcida das redes sociais.  

PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO 

Seis anos antes de publicar a matéria que o leitor leu logo acima, com retoques do presente-presente, preparei um capitulo específico sobre formação de talentos que compôs o Planejamento Editorial Estratégico, que preparei e entreguei em março de 2004 para ser aplicado no Diário do Grande ABC. Estava prestes a assumir o comando da Redação. 

Isso mesmo: duas décadas depois de deixar o Diário do Grande ABC, estava de volta. Nesse intervalo, escrevi algumas dezenas de artigos no período em Alexandre Polesi comandava a Redação, nos anos 1990. Fora aquele o melhor período da história do jornal. Um capitulo especial está na linha de tiro desta série. 

Expliquei naquele Planejamento Editorial Estratégico, de 2004, que,  duas décadas antes, no mesmo Diário do Grande ABC, criei uma improvisada, mas produtiva, escolinha de profissionais recém-formados principalmente na Metodista de São Bernardo. Pretendia repetir a empreitada agora, naquele 2004 que parece distante quando se observa do hoje. 

VOLTANDO A 2004 

Veja o que escrevi sobre o projeto de formação profissional naquele 28 de junho de 2004, numa newsletter que criei par manter contatos conceituais com a Redação. Lembramos que os capítulos da newsletter do primeiro e único ombudsman da história do Diário do Grande ABC comportaram 32 edições. Depois, veio a direção de Redação do jornal. Acompanhem esse recorte:  

A exemplo do que organizamos entre 1982 e 1985  -- escrevi -- , quando ocupamos posto equivalente ao de chefe operacional de redação, embora a nomenclatura fosse de coordenador de produção, vamos introduzir um mecanismo de seleção e preparação de recém-formados para, mediante necessidades, contratá-los para substituir ou eventualmente reforçar nosso quadro de redação.

Naquela época chamamos de escolinha o que veio a se consolidar como virtuosíssimo modelo de reposição e contratação de jovens valores. A importância dessa iniciativa vai muito além do que alguns supõem restrita a interesses financeiros. Aliás, o viés financeiro é apenas uma fração do conjunto de vantagens da introdução desse processo de depuração e uniformização de recursos humanos da área editorial.

Pesa muito mais em qualquer equação que se desenhe a perspectiva de que essa turma de jovens poderá ter acesso aos quadros de redação sem sofrer impactos emocionais e técnicos que tanto comprometem a qualidade do produto final, isto é, da informação consumida pelos leitores. 

PREPARAÇÃO PERMANENTE

É enorme a diferença  -- escrevi naquele newsletter --  entre o rendimento de um jovem recém-formado e contratado para atuar numa redação sem referenciais da cultura editorial da publicação e um jovem recrutado tendo como base a preparação numa espécie de vestibular. Produtividade é o verbete que, no fim da linha de avaliação, definirá a diferença entre um modelo e outro.

Afastar qualquer possibilidade de ruídos no circuito de informações que devem chegar aos leitores é o pressuposto de, também na seleção e no aproveitamento de jovens talentos, atingir respeitabilidade editorial.

A preparação permanente, sistemática e programática de jovens que ocuparão parte do universo da redação é condição imprescindível à estabilidade do departamento. Não se pode descartar a oxigenação da juventude em qualquer ambiente corporativo, sob o risco de enferrujar a engrenagem. Entretanto, a simples escalação de recém-formados sem o devido preparo técnico, emocional e cultural se revestiria de tiro no próprio pé.

 Afinal – continuava aquela newsletter -- , a contratação pura e simples de novos valores, atirados às feras de um produto que desconhecem, eleva as possibilidades de destruição da autoestima pessoal e, principalmente, submete o profissional recém-chegado a uma sequência de improdutividades que desarticulam o produto final.

EFEITO-TOGÃ

E, nesse ponto, mais uma vez, vale a pena enfatizar: o consumidor de informação não pode ser apanhado no contrapé pelo efeito-tobogã de abordagens editoriais desconectados dos valores exaustivamente enfatizados.

Não se pode nem ao menos conjecturar que jovens eventualmente talentosos sejam escalados para produzir em nome de um jornal quase cinquentenário sem que estejam adequadamente entronizados nos conceitos técnicos e culturais da publicação. 

O produto que vai às bancas e aos endereços domiciliares e empresariais tem de ser observado sob o mesmo rigor de algo como um laticínio de marca respeitável exposto cuidadosamente na gôndola de um supermercado, de um veículo zero quilômetro que ajuda a compor o ambiente de uma concessionária, de um elenco de estrelas que se confunde com a logomarca de uma empresa de comunicação.

Uma publicação que comete erros grosseiros ou omissões incontornáveis sofre fortes arranhões de credibilidade.

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