BARCAÇA DA CATEQUESE E O
GATABORRALHEIRISMO (6)
Foi num contraponto a um Editorial do Diário do Grande ABC, em julho de 2023, que encaixei uma expressão-síntese do Grande ABC no âmbito do que chamaria de pertencimento, de capital social clássico. É uma definição que não se encontra nem mesmo numa busca no Google. “Sociedade Servil e Desorganizada”. Claramente, propositadamente e irritantemente uma corruptela da ilusórias “Sociedade Civil Organizada”, utilizada em todos os cantos como fetiche de democracia.
Este é o terceiro vértice estrutural do microcosmo de Barcaça da Catequese no interior do Grande ABC de quase três milhões de habitantes e perdidamente gataborralheiresca.
Vértice estrutural significa que apresentamos apenas uma vitrine de temáticas centrais que, em capítulos posteriores, serão abordadas com mais substâncias. Falta ainda um quarto ponto demarcatório, que se juntará aos anteriores nesse complicado tabuleiro do jornalismo diário no Grande ABC. Governança Regional virá numa próxima edição.
UM TIRO NO PÉ
Escrevi naquele julho de 2023 -- não esqueçam dessa data -- que um dos trágicos equívocos editoriais do Diário do Grande ABC sob o controle do empresário Ronan Maria Pinto, e menos pronunciado no período anterior comandado pelos fundadores da publicação, é se atribuir extensão do pensamento médio da sociedade regional. E supostamente atuar como se contasse com carta-branca de representatividade. Pura bobagem.
Lembrei naquele texto que talvez só se justificasse tamanha pretensão caso fosse ponderada e dominada pelo lado negativo, ignorado no enunciado: os sete municípios são tão desprovidos de enquadramento identitário de regionalidade que a adoção do rótulo de porta-voz retrataria a própria publicação no sentido mais negativo possível. Ao se considerar “porta-voz da região”, o Diário do Grande ABC, inadvertidamente, assumia o ônus de passivo editorial que, por sua vez, é passivo social.
Menos mal que “porta-voz da região” tenha sido, inadvertidamente, uma confissão de fracasso de regionalidade, como já explicamos; ou seja, a diferença entre região e regionalidade é assumida pelo jornal mesmo nos delírios de autovalorização.
TEMPO PERDIDO
Saltando no tempo e chegando a estes dias, a constatação vai na direção de que o Diário do Grande ABC dos sonhos poderia ter contribuído mais do que contribuiu para formatar a cultura da região. A influência dos bons tempos, notadamente nas três primeiras décadas, que se esgotaram no começo deste século, não é uma abstração manipulada pela publicidade oportunista ou por um editorial fora do tempo.
O Diário do Grande ABC, mesmo como Barcaça da Catequese, reunia prestigio e massa de informações que se traduziam sim em simbolismo regional.
Entretanto, não fez jamais o milagre da regionalidade porque, como barcaça, encontrou e participou de um ambiente igualmente regional, ou seja, sem conexões integracionistas que o retirassem do calabouço da fragmentação multifacetada do Grande ABC.
Em qualquer estudo sobre o Grande ABC é imperativo a multiplicação por sete se a pretensão é mesmo tratar de regionalidade. Vai-se ao infinito caso o autor seja insaciável. Coloque todo esse passivo na conta dos separatistas de meados do século passado. O que fizeram, boas intenções à parte, foi uma hecatombe geoeconômica e administrativa.
UMBIGO MUNICIPALISTA
Seria demais esperar que insumos informativos e também culturais do Diário do Grande ABC derivados de anomalias do pioneirismo do jornalismo com periodicidade a cada 24 horas fosse capaz de ajudar a construir uma sociedade com amplidão territorial diante do próprio umbigo municipalista. Dessa forma, não custa repetir o que a realidade impõe. As instituições sociais do Grande ABC raramente se comportaram como agentes de transformação.
Naquela mesma análise de julho de 2023, escrevi que a cara da região se divide em dois espelhos de autoenganos típicos do gataborralheirismo, com vieses paradoxais. . Isso vale também para terceiros, que não vivem aqui e quando aportam aqui fazem salamaleques diplomáticos. Seriamos, para os forasteiros simpáticos, um tesouro de mobilização social. A verdade é que não somos nada disso. Confundiram sindicalismo corporativo como cidadania geral e irrestrita.
Somos um navio Costa Concórdia – escrevi – que, sob o mando desastrado de Francesco Schettino, em janeiro de 2012, chocou com um aglomerado de rochas e naufragou, causando a morte de 32 pessoas. E completei: A diferença é que temos muitos Schettinos na região. E quase três milhões de vítimas de retóricas insustentáveis. Afundamos vagarosa e insistentemente há quatro décadas.
MOTES PUBLICITÁRIOS
Ainda seguindo naquele artigo, lembrei que o Diário do Grande ABC não é porta-voz da região no sentido de ser pelo simples fato de que a região não tem unicidade, convergência ou mesmo divergências de vozes produtivas. As vozes da região são prevalecentemente vozes fragmentadoras, quase inaudíveis.
Ao longo da história, salvo engano, o Diário do Grande ABC adotou três motes publicitários que remetiam ao estofo da publicação. O primeiro – “Jornal da Família “” – ou algo assim, durou uma eternidade. Era mesmo o resumo do jornal que saiu da coragem de quatro desbravadores.
Já nos anos 1990 o Diário do Grande ABC adotou novo slogan. Participei como ouvinte da apresentação do trabalho dirigido por uma consultoria publicitária da Capital. Estava ali como acionista da Editora LivreMercado, cujo produto principal, a revista LivreMercado, fora adquirida pelo Diário do Grande ABC no primeiro trimestre de 1997. Fiquei com 20% dos 50% das ações que detinha e mantive o controle editorial intocável. Claro que isso gerou problemas, como se verá ao longo desta série. A última coisa que admitiria é que a revista tomasse o mesmo rumo de alienação do destino econômico regional até então mais que descaminhado.
Acompanhei aquela reunião que sacramentou o mote tiro-no-pé da campanha publicitária que se seguiu. “Diário do Grande ABC, o braço direito da região”. Um jornal de direita nas peças publicitárias, mas que, na prática editorial, do noticiário em si, mal se definia, flutuando entre direita e esquerda, ainda longe da polarização destes tempos. “Braço forte do Grande ABC” teria sido mais apropriado.
PORTA-VOZ
O terceiro mote do Diário do Grande ABC, naquele ano de 2023 da análise, referia-se à condição de porta-voz. E voltei a reiterar naquele artigo que o jornal poderia ter mesmo razão na escolha. Afinal, uma sociedade servil e desorganizada talvez fosse o melhor e mais apropriado retrato da linha editorial do Diário do Grande ABC desde muito tempo.
Querem saber o que mais escrevi, ainda naquele contexto crítico ao mote desconectado da realidade? Escrevi que o jornal havia perdido a embocadura filosófica dos tempos de recuperação imposta por Alexandre Polesi e restaurada parcialmente durante os 11 meses pela equipe de profissionais que comandei entre 2004 e 2005.
Vou insistir naquela análise de 2023 porque resume a linha editorial desta publicação desde os tempos de LivreMercado. As instituições sociais e econômicas do Grande ABC primaram desempenho de avestruzes. Não entendam essa analogia como algo com alguma pitada de organização interna, corporativa que, supostamente, teria sido suficiente para satisfazer aos iguais.
Nada disso: a burocracia interna e as vantagens individuais em nome das corporações prevaleceram sempre. E se tornaram ainda mais acentuadas neste século. Mobilizações para valer, dessas que ultrapassam agendas circunstanciais, praticamente desapareceram. Quando há mobilização encabrestada, geralmente por motivação política, a fratura se acentua.
UM GRANDE ALÇAPÃO
Voltando mais uma vez à questão de “porta-voz do Grande ABC”, lembrei o que se mantém presente: o Diário do Grande ABC simplesmente abdicava da própria identidade editorial. Melhor dizendo: da perspectiva de adotar uma identidade editorial.
Afinal, nenhuma publicação com as características do Diário do Grande ABC – ou seja, diária e de papel – pode se submeter ao pensamento médio da sociedade quando se sabe, em primeiro lugar, que o conceito de porta-voz é difuso por natureza. Não temos identidades municipais sólidas e transformadoras, quanto mais identidade regional. E cada vez temos menos perspectivas de tê-las.
A sociedade consumista de informações, em volume e em ocupação econômica numa região metropolitana como a que vivemos, é cada vez mais volátil em apetrechos culturais.
A ausência de uma identidade bem definida e bem calibrada na região constrói um alçapão a todos que por ventura ou desventura resolverem tentar abocanhar uma suposta correlação de princípios e valores.
Pior ainda: porta-voz pressupõe que o Diário do Grande ABC é exatamente o que a sociedade da região registra de inventário cultural – e sabemos todos que não somos exemplo a ser glorificada.
CONFISSÃO TÁCITA
Ao se autoproclamar “porta-voz do Grande ABC”, o Diário do Grande ABC, inadvertidamente, assumia que não conta com linha editorial suficientemente capaz de se fazer entender, porque a sociedade regional difusa e gataborralheiresca não sabe o que fazer desde muito tempo – escrevi há mais de dois anos.
Talvez o que exista documentado de mais pedagógico sobre as relações do Diário do Grande ABC com a sociedade servil e desorganizada seja um trecho do Planejamento Estratégico Editorial que apliquei durante 11 meses à frente daquela Redação, entre 2004 e 2005.
Como registrei em capítulos anteriores, aquele plano de voo foi produzido num fim de semana e distribuído a profissionais, acionistas e diretores da companhia antes que eu assumisse o cargo.
A análise de 2023, que reproduzi acima, está integralmente vinculada àquelas observações no Planejamento Estratégico Editorial. O lamentável de toda essa história (e trataremos disso também em capítulo específico) é que os pressupostos de 2004 foram inteiramente violados em 2023 e hoje estão ainda muito, mas muito aquém do que, praticamente duas décadas atrás, soavam como prenúncios de um exorcismo editorial. Tudo virou sucata. Veja os trechos principais daquele documento de 2004:
2004 DE VOLTA
O relacionamento com público externo é uma equação que requer desprendimento. Nem sempre é possível detectar, mas geralmente é viável abortar inescapáveis problemas. Basta querer. Trata-se do distanciamento mínimo dos formuladores editoriais e dos responsáveis acionários pelo produto que vai às ruas e as fontes de pressão. O apadrinhamento de pessoas e entidades é o desvio mais rápido para a acomodação editorial, seguida da desmoralização nem sempre impactante mas sem dúvida suficientemente danosa.
2004 DE VOLTA
Premiar agentes improdutivos com mistificações deliberadas ou acríticas destila indignação mesmo que silente no seio da comunidade que conhece mais de perto o oportunismo de atores que se aproximam da mídia apenas para levar vantagem. Quando esses sanguessugas se cristalizam no poder midiático, acabam por definir o padrão ético-editorial da publicação. Se os improdutivos tomam tanto espaço, como será possível aos eventuais produtivos apeá-los do poder sem correr o risco de antagonizar-se com a mídia?
2004 DE VOLTA
O Grande ABC vive momento especial demais para permitir a perpetuação dessa tradição arraigada no jornalismo nacional. É preciso dar vez ao reformismo sem, entretanto, cair no viés extremo de fabricar novos agentes. Os relacionamentos institucionais do Diário do Grande ABC — ou seja, as relações da empresa com o público externo formado por administrações públicas, entidades econômicas, legisladores, lideranças sociais e culturais, gestores e produtores acadêmicos, entre tantos — não podem ser confundidos com a linha editorial.
2004 DE VOLTA
É verdade que uma coisa necessariamente não exclui a outra, mas também é fato que uma coisa pode contaminar a outra e destilar, como dissemos, o conceito de que mais importante do que fazer é fazer de conta que se faz, porque sempre haverá um veículo importante para sacralizar o pecado da omissão dissimulada e do despreparo escamoteado. O jornal, como produto e como instituição, não pode, portanto, construir relações circunstanciais ou efetivas que afetem os insumos editoriais. Dar oportunidade a todos para que participem de uma grande virada institucional do Grande ABC é ação prospectiva que tem o condão de zerar os déficits do presente e do passado. A vantagem de incrementar essa nova empreitada é que os erros acumulados deverão servir de lição.
2004 DE VOLTA
Somente um novo enquadramento editorial que dignifique quem tem garrafas para vender permitirá a reconstrução de relacionamentos entre as instituições mais importantes da região, provavelmente com o Diário do Grande ABC como catalisador dessas operações.
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