BARCAÇA DA CATEQUESE E O
GATABORRALHEIRISMO (8)
Duas crateras editoriais do Diário do Grande ABC foram preenchidas por este jornalista e companheiros de redação quando lancei a revista de papel LivreMercado, em março de 1990. Vivíamos o caos econômico no País com o estapafúrdio Plano Collor.
Por força do que já expus em capítulos anteriores, o Diário do Grande ABC deixou passar pelos vãos dos dedos do pioneirismo tanto a regionalidade no sentido mais amplo do conceito, ou no sentido específico do conceito, quanto o acompanhamento do Desenvolvimento Econômico mais apropriado às circunstâncias que, inclusive, possibilitaram que aquela publicação se consolidasse.
Quem não compreender essas duas realidades históricas e conexas não vai amarrar os pontos de uma lógica estrutural do Grande ABC como território gataborralheiresco.
A precariedade de um fio condutor dominado pela suscetibilidade a solavancos de alta rotatividade na Redação do Diário do Grande ABC é a matriz tanto da opção preferencial e única pelo municipalismo diante das complexidades do regionalismo quanto pelo despreparo para observar permanentemente o ambiente industrial nos sete municípios. O Diário do Grande ABC lançado em maio de 1968 como sucessor do semanário New Seller contava com corpo, alma e espírito de Santo André. Fausto Polesi, diretor de Redação do quarteto desbravador, é exemplo maior disso.
AUTOMATICIDADE ENGANOSA
Sem a teia de entranhamentos típica de integração regional e sem valorização temática de Desenvolvimento Econômico, o Diário do Grande ABC não alcançou a profundidade e a abrangência desejadas e necessárias. É, portanto, uma obra coletiva de imenso valor para esculpir um determinado grau de identidade simbólica do Grande ABC, mas sem saltar ao estágio de regionalidade que impediria o esfacelamento futuro, que virou presente.
A junção das letras pioneiras dos municípios que compõem o Grande ABC, principalmente a marca ABC Paulista, derramou percepção equivocada ao longo dos tempos. A ideia de que haveria intimidade sinérgica no território municipalista é autoengano . Um exame cuidadoso que vasculhe a alma do Grande ABC provavelmente vai indicar que o desprezo à regionalidade é o preço que se pagou ao longo de décadas por se acreditar coletivamente na automaticidade integrativa, como se o movimento separatista não constasse da agenda.
Guardo um exemplar de livro mais que esclarecedor, constrangedor, da deficiência congênita do Diário do Grande ABC do passado sobre o Estado Regional do Grande ABC. Fausto Polesi é meu testemunho, não bastasse minha vivência própria, de que o Diário do Grande ABC só praticou e mesmo assim precariamente alguns conceitos de regionalidade em situações episódicas.
Como se verá logo em seguida, ao transcrever um trecho do prefácio assinado por Fausto Polesi de uma obra indispensável à compreensão do que se passou no passado na região, a vocação editorial do jornal fixou-se no municipalismo. Oito anos depois daquela noite de autógrafos na Alpharrabio, endereço do que resta de fragmentos de movimento cultural na região, estava este jornalista criando em março de 1990 a revista de papel LivreMercado.
MARTELAR, MARTELAR
A vocação central da iniciativa fundamentada em regionalidade de guarda-chuva imenso se plantava no território econômico desprezado, quando não discriminado, pelo jornalismo diário de papel. Esse é um dos capítulos a que me dedicarei nesta série que vai longe.
É provável que, não fosse o livro de Fausto Polesi, e, mais que isso, as próprias letras de Fausto Polesi, e, mais ainda, o conjunto da obra dividida em algumas dezenas de capítulos, poucos acreditariam que o Diário do Grande ABC de enunciado regional pautou-se sobretudo pelo municipalismo. No máximo, chegou às fronteiras laterais do conceito de regional, que não tem nada a ver com regionalismo, como já expus em capítulos anteriores.
Martelar as diferenças entre esses três conceitos – municipal, regional e regionalidade – é a pedra de toque para compreender os cromossomos sociais do Grande ABC. Como também mostrarei em outro capítulo, não encontrei em nenhuma fonte acadêmica ou algo semelhante nada que estratificasse essas nuances. Confundem-se ou desconhecem-se os valores etimológicos e culturais que separam essas três divisões.
Por isso que ao adotar nesta série novas expressões como Estado Municipal e Estado Regional do Grande ABC, o objetivo pedagógico mesmo é retirar as imperfeições ou imprecisões identificatórias da barafunda de conveniências e de ignorâncias.
PREFÁCIO ESCLARECEDOR
A prova do municipalismo do Diário do Grande ABC está no prefácio do livro de Fausto Polesi. Uma dedicatória a este jornalista, em 23 de setembro de 1982, traduzia a relação profissional que sempre tivemos. Estão na página seis de “Editoriais”, alguns trechos com a assinatura de Fausto Polesi que não deixam margem a dúvida. Leiam:
“Se o jornal sempre se manteve numa linha municipalista, se em seus editoriais criticou atos, comportamentos e decisões das autoridades públicas municipais, analisou desempenhos de autarquias, empresas de economia mista e fundações municipais, dissecou intenções ostensivas ou subalternas, investiu contra administradores incompetentes e corruptos, toda essa gama de assuntos tem correspondência entre todas as cidades, não só paulistas, mas brasileiras” – escreveu Fausto Polesi. E mais o que se segue:
“Portanto, a chave da equação seletiva dos editoriais seria essa. Afinal, prefeitos e vereadores são iguais em todas as cidades, quer dizer, exercitam um mandato com idênticas fidelidades. Suas atitudes na função pública têm relação com a própria personalidade de cada um, independente da situação geográfica. Uma tomada de decisão do prefeito ou do vereador em Santo André ou São Bernardo do Campo, de que resultem consequências negativas ou positivas, pode repetir-se hoje, amanhã e sempre em cada uma das cidades brasileiras. A iniciativa experimental desse ou aquele prefeito do Grande ABC , na criação de empresas de economia mista, fundações, departamentos, autarquias, jornal oficial e outras invenções, serve aos demais prefeitos, na medida em que a experiência foi questionada e pesada em seus resultados políticos. Assim, procurou-se englobar neste livro uma relação de editoriais que apresentassem os varidoa específicos da administração municipal, juntando-se a eles outros mais, em que se analisam atentados, pacotes, casuísmos. – escreveu Fausto Polesi.
NOTA DO DIÁRIO
Em 24 de agosto de 2011 recebi telefonema do jornalista Wilson Moço, então um dos editores do Diário do Grande ABC. Ele me solicitou um texto de até dois mil caracteres sobre a morte de Fausto Polesi, meu chefe durante 15 anos (de 1970 a 1985). Escrevi um texto que seria publicado no mesmo dia no site de CapitalSocial. Dizia que desconfiava de que o material seria mesmo publicado na edição do dia seguinte do jornal. Afinal, não mantinha relações amistosas com o dono da publicação, Ronan Maria Pinto. Lembrei que éramos opositores no campo jornalístico, esportivo e corporativo. Enxergávamos determinadas situações de forma bastante diferente. Não escondia de ninguém minhas desavenças. Talvez o texto sobre Fausto Polesi fosse jogado no lixo.
Coincidentemente, quando o telefone tocou e Wilson Moço estava do outro lado da linha, me preparava para escrever sobre Fausto Polesi para esta revista digital. E me perguntava: o que escrever sobre alguém que acaba de morrer e com o qual mantive relação de absoluta harmonia como funcionário mas que, mais tarde, como acionistas da Editora Livre Mercado, empresa da qual o Diário do Grande ABC tinha participação majoritária, nos envolvemos em alguns confrontos? – eis a pergunta central que me fiz.
Mais que isso: o que escrever sobre Fausto Polesi se, em 2004, quando estava prestes a assumir o cargo de diretor de Redação do Diário do Grande ABC, cargo que foi dele durante quatro décadas, convidado pelo ramal dos Dottos após escaramuças jurídicas que culminaram com o afastamento dos Polesis, tive a posse adiada, acusado injustamente participar daquele emaranhado corporativo?
PRESO A SANTO ANDRÉ
Tudo parecia confuso, e de fato era. Por isso preferi lembrar de Fausto Polesi apenas pelo viés da experiência de repórter e editor. “Desse Fausto Polesi só tenho boas recordações. Sempre nos respeitamos. Jamais impôs mesmo que subjacentemente qualquer tipo de pressão que resvalasse na ética profissional, na liberdade informativa, no respeito individual” – escrevi naquela data.
Também escrevi que nem quando se meteu no cargo de presidente do Esporte Clube Santo André, Fausto Polesi interpôs restrições jornalísticas. Não havia como negar que a situação era incômoda. Escrever com liberdade num jornal cujo diretor de Redação acumulava o cargo de presidente de uma equipe que por um triz não foi rebaixada de divisão, de um presidente que contratou um show caríssimo com os então disputadíssimos Menudos num Estádio Bruno Daniel sob chuva torrencial, num espetáculo que fracassou tanto em público como em bilheteria, escrever naquelas condições não era nada agradável. Pois Fausto Polesi sempre deu ampla liberdade.
Escrevi naquele 2011 que Fausto Polesi foi um municipalista empedernido. Fausto Polesi era Santo André acima de tudo. Respirava Santo André. Transpirava Santo André. Homem de boa-fé, acabou capturado por alguns grupos da cidade em que nasceu. Grupos que, igualmente, colocavam Santo André acima de todos os demais municípios. Gente de boas intenções na maioria dos casos, mas gente que enxergava o Grande ABC pela cartografia de Santo André – escrevi há 14 anos.
INCANSÁVEL JORNALISTA
E continuei: seria bajulador se dissesse que Fausto Polesi foi meu mestre no jornalismo. Primeiro porque, ao menos comigo, jamais se preocupou explicitamente. Raras foram as intervenções em meus trabalhos. Possivelmente porque nos faltava tempo naquela correria sem hora para terminar.
Segundo porque sou o resultado de minhas circunstâncias de leitor e de fazedor de informação. Não tenho um único nome que possa acentuar como paradigma profissional. Da mesma forma que na música, no teatro, no cinema, na literatura, em diversas manifestações culturais, não tenho um modelo acabado, também no jornalismo sou multifacetado e continuamente em transformação. Só no futebol o preto e o branco, também de Fausto Polesi, não admitem complementaridades.
Fausto Polesi foi importante na minha carreira profissional, iniciada antes de conhecê-lo naquela casinha que sediava o Diário do Grande ABC na esquina próxima do edifício só construído mais tarde. Com ele aprendi a elasticidade da liberdade que editores e repórteres devem contar para exercitar a profissão. Poucas vezes vi alguém trabalhar tanto, todos os dias, dedicadamente, como Fausto Polesi. Aquele quarto andar do Diário do Grande ABC mantinha-se iluminado até tarde da noite. Quando as luzes se apagavam, Fausto Polesi estava a caminho do elevador. Respirava jornalismo como os jornalistas de verdade. Foi empresário de comunicação por acaso.
DIVERGÊNCIAS NATURAIS
Dois dias depois, voltei a escrever sobre Fausto Polesi, sob o título “Leia íntegra do texto que Diário suprimiu sobre morte de Polesi. Eis o que escrevi:
Fausto Polesi foi um paradoxo como jornalista. Comandou um jornal regional durante mais de 40 anos, mas jamais abdicou da paixão por Santo André, sua cidade natal. Foram tempos de baixa frequência de regionalidade no léxico de agentes públicos e sociais. Apaixonadíssimo por jornal, dedicadíssimo como poucos, incansavelmente produtor de conteúdo, Fausto Polesi possivelmente será lembrado a partir de agora pela resistência aos usurpadores, oportunistas e malabaristas sociais. Algo que não se tolera dos críticos que ainda respiram. Nada surpreendente quando se observa que o modelo de avaliação segue o ritual de um País que só consagra os incômodos quando mortos.
Fausto Polesi foi jornalista nos tempos românticos do jornalismo. Tempos em que a tecnologia mais avançada limitava-se a discretas invasões de redações por computadores rudimentares, substituidores de velharias datilográficas. Tempos em que adicionar conteúdo nos textos provinha do cérebro, não de mecanismos de busca. Tempos de aprendizado demandador de sinapses. Tempos de pegar à unha o touro de uma informação relevante que hoje, multifacetada e repleta de armadilhas, invade as plataformas de comunicação de veículos impressos, digitais e de redes sociais.
Minhas divergências com Fausto Polesi restringiram-se às circunstâncias. Como seu funcionário, repórter, editor de esportes, um dos coordenadores de Redação ao lado de Ademir Medici e Valdir dos Santos, e também como editor de Economia, jamais tivemos contratempos que ultrapassassem o ritmo sempre frenético do cotidiano jornalístico. Mais tarde, como acionistas da Editora Livre Mercado, nos enfrentamos em situações de desconforto. Nada que respingasse no campo profissional.
Desbravador do jornalismo diário nos sete municípios locais, juntamente com Edson Danilo Dotto, Ângelo Puga e Mauri Dotto, e único profissional de comunicação entre os fundadores do Diário do Grande ABC, Fausto Polesi entra para a galeria dos Imortais de uma região que não sabe valorizar os vivos que não são tão vivos e também os mortos que frequentaram ou não manchetes ao longo da vida – escrevi naquele 2011.
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