Sociedade

TURISMO DESINDUSTRIAL
SERIA MAIS PEDAGÓGICO

  DANIEL LIMA - 12/03/2025

Já que o turismo industrial não tem futuro no Grande ABC, tantas são as incompetências a gerenciar a iniciativa, por que não lançar o programa turismo desindustrial? Isso é apenas uma provocação, inclusive com o uso abusivo de uma palavra que parece não constar do língua portuguesa, mas quem disse que provocação, quando bem engendrada e compreendida, não poderia gerar  programação mais robusta que aquela, no caso, que a inspirou.

Texas não fez do circuito do final dramático da vida do presidente John Kennedy um roteiro turístico de imenso sucesso? O campo de concentração de judeus em Auschwitz não consta do roteiro de sucesso dos visitantes na Polônia? O Palmeiras não fez de “porco” símbolo de orgulho ante adversários atônitos?

Sei que vão dizer que uma coisa é uma coisa e outras coisas são outras coisas, mas isso não vale como argumento. Ou alguém imaginaria, francamente, que porco seria o que é? E Auschwitz, então?  Há exemplos às centenas no mundo inteiro de situações e fatos supostamente incompatíveis. 

TAPA NA CARA

Por que a desindustrialização do Grande ABC não poderia seguir trilha semelhante? Ou enfrentamos nossos fantasmas, e tratemos de neutralizá-los e enterrá-los ou entregamos a rapadura de vez. Quem nega obviedade é tolo ou mau-caráter, quanto não as duas coisas.

Saiu da algibeira de minha criatividade a ideia dessa proposta, ou seja, de criar um roteiro de turismo desindustrial para mostrar ao mundo como é possível uma região então tão prospera virar um saco de gatos de insolvências, evasões, desmontes e tudo o mais. E, pior que isso, não encontrar um modelo socialmente responsável de reação e recuperação.

Seria um tapa na cara principalmente de administradores públicos relapsos e de grande parte da sociedade servil e desorganizada que sempre assistiu a tudo sem reagir. Pior que isso: durante temporadas sem parar negaram os fatos e as evidências. Execraram quem os alertava sobre o desastre. Caso de instituições públicas, sociais e privadas.

O turismo desindustrial seria também uma chamada às claras aos pusilânimes que ainda nestes dias pregam que o Clube dos Prefeitos é algo que tenha construído um passado de sucesso e um presente de entusiasmo.

CLUBE MAL-ASSOMBRADO

Aliás, por falar em Clube dos Prefeitos, sugiro que o sobrado mal-assombrado que o sedia, em Santo André, seja identificado no roteiro como símbolo do turismo desindustrial. Ou alguém tem dúvidas de que o Clube dos Prefeitos é um mausoléu que precisaria ser exorcizado a cada troca de prefeito dos prefeitos porque nada é mais imperfeito do que a ideia de que é um endereço que tem doutrina e conceito. É uma casa da mãe joana.

É claro que a iniciativa do turismo desindustrial jamais partiria de administradores públicos. Eles fazem das tripas coração para levar o povo no bico -- sempre com o auxílio da mídia chapa-branca.

Embora os prefeitos atuais  não tenham muita culpa no cartório de transformações danosas que ocorreram no Grande ABC desindustrializado, existe sintonia fina de corporativismo que também poderia ser chamada de negacionismo. Eles acham que não fica bem a região assumir que está em permanente processo de desindustrialização, mal contra o qual ninguém tem coragem, competência e desprendimento para agir.

E assim vamos conhecendo a cada nova temporada mais espaços físicos que se somam às centenas do passado que viraram cemitérios da atividade que mais agrega valor à sociedade, responsável principal pela mobilidade social, que não é mobilidade urbana como alguns pobres confundem as bolas.

MORTOS E ENTERRADOS

Houvesse por exemplo uma organização da sociedade servil e desorganizada que, milagre dos milagres,  resolvesse brotar do solo infértil de cidadania e meter bronca para construir um inventário básico que serviria de pontos de atração do turismo desindustrial, tudo poderia ser encaminhado.

Entretanto, não se deve acreditar em nada que tenha esse sentido. Não desfrutamos de coletivização de intenções e práticas para nada. Nem mesmo para ir às ruas em protesto. Criamos a cultura de protestos e passeadas diretamente das fábricas para os quintais das fábricas e para a Via Anchieta. Esse tipo de mobilização é mais fácil. Principalmente quando o que está em jogo é o poder corporativo-aquisitivo.

Estamos mortos e enterrados como sociedade. Acho que a maioria se sente tão culpada que quer tudo, menos assumir publicamente o erro da omissão. É mais cômodo fugir do que enfrentar.

MOTE DA CAMPANHA

Entendo bastante de desindustrialização do Grande ABC. Acho que mais que qualquer um, porque não sou escravo ideológico. Mas há outros profissionais que poderiam responder ao desafio de meterem o dedo nas feridas que os triunfalistas negam de pés juntos, dinheiro bolso e consciência pesada.

Não há muitos exemplares na região de gente com independência e mesmo coragem de botar o turismo desindustrial como proposta ao Clube dos Prefeitos. Seria melhor que não houvesse essa dependência decisória. Os prefeitos do Clube dos Prefeitos não vão topar a parada. Seria melhor mesmo uma organização independente.

É claro que não seria apropriado adotar uma campanha tipo “Veja a indústria do Grande ABC antes que acabe”. Seria acintoso e precipitado, porque, por pior que sejam nossos dirigentes, sempre haverá a resiliência de muitos empresários dispostos a empreender, porque é disso que se trata.

Mas a campanha deveria adotar um tom diplomaticamente agressivo. Fizesse este jornalista parte de uma comissão para formatar o turismo desindustrial, sugeriria sim que não se aplicasse o mote entre aspas citado acima, mas alguma coisa de efetividade sensorial precisaria ser aplicada. “Veja o que perdemos de riqueza industrial no Grande ABC” -- eis algo que acho que passaria pelo crivo dos defensores de uma região sem mistificações e sem acomodação.

MOINHO SÃO JORGE

Há tantas complementariedades a incorporar na proposta que possivelmente bastaria uma reunião com os interessados para se ter um acervo grandioso a sensibilizar os turistas, e por que não, os próprios moradores da região, a maioria sem ideia da devastação que se deu nestes quase 900 quilômetros quadrados de área.

O Moinho São Jorge é só um exemplo. E ganha destaque internacional na Internet porque contava com o chamado Palácio de Mármore, suntuoso salão de festas no topo do edifício na Avenida dos Estados. Ali, até chefes de diplomacia mundial marcaram presença.

Há tantas alternativas para sacramentar o turismo desindustrial que será indispensável preparar espécie de receituário à seleção do circuito. São centenas de terrenos, escombros e mudanças de uso de empresas que se escafederam ou morreram de morte matada ou morrida. O complexo industrial da Rhodia, em Santo André, virou quase nada. Aliás, a Avenida dos Estados poderia ganhar um recorte especial. Ali o que menos se encontra são indústrias. Como sua vizinha, aliás, a Avenida Industrial.

CONCORRÊNCIA FORTE

Os demais municípios vão requer igualdade de tratamento na formulação do turismo desindustrial. Seus representante no comitê de estudos não vão abrir mão de algo como equilíbrio de forças, ou de fracassos.

A Tecelagem Tognato, por exemplo, onde hoje se multiplicam apartamentos e um supermercado, foi para o beleleu sem piedade. E a Ford? E tantas outras.

Convidado bom para a turma não perder muito tempo com a memória para catapultar exemplos de sepultamentos industrial seria o geógrafo Josué Catarino Ferreira. Ele lançou um livro sobre o assunto. Josué era um frequentador assíduo dos eventos de LivreMercado/CapitalSocial, inclusive como conselheiro editorial. Nossas análises o inspiraram.

O livro que fez publicar é riquíssimo em fotografias do que eram e o que viraram fábricas de todos os setores. Uma carnificina.  A Casa Publicadora Brasileira, onde hoje estão centenas de apartamentos e o Shopping ABC, estrebucha nas páginas daquela obra denunciatória.

GEORREFERENCIAMENTO

Aliás, esse é um ponto importante do projeto. As fábricas desapareceram, muitas das quais ainda mostram vísceras de galpões desocupados, quando não entregues aos ratos, mas também são centenas os casos de reaproveitamento das áreas. Templos evangélicos, por exemplo, que se multiplicaram, são testemunhos de que se substituíram materialidades industriais por súplicas espirituais.

O circuito de turismo desindustrial do Grande ABC é um prato cheio para quem tem fome memorial, mas também para quem gosta de lidar com todas as possibilidades críticas. Quero dizer que não basta chorar o leite derramado do que se foi, mas entender o que sobrou no pires. Nesse caso, seria extraordinária a manutenção de mapa georreferencial tecnologicamente atualizado.

Já imaginou o leitor como seria a reação dos turistas presenciais ou mesmo por meio do mundo digital? Um mapa do Grande ABC com detalhes de cada ponto geográfico de indústrias que se foram, de galpões vazios, de terrenos vazios e substitutos em atividades de comércio e serviços.

Haveria tantas variáveis à disposição dos curiosos fisicamente ou não presentes no Grande ABC que chego ao ponto de dizer algo que vai soar ainda mais como abuso e provocação: daria para arrecadar um bocado de dinheiro. Ver o Grande ABC de hoje sem voltar ao passado é um tratado de irresponsabilidade de governança regional. Pior que isso é ver manchetes de jornais babando ovo para autoridades que nada ou quase nada fizeram no passado enquanto outras que estão chegando fazem de tudo para esconder a realidade.

Os programas de turismo industrial são, rigorosamente, quando observados sob lentes de inquietação social, um acinte ao senso crítico. Afinal, sugerem subliminarmente que temos uma vitalidade, negada pelos fatos. Turismo desindustrial deveria ser prioridade como lição pedagógica de chamamento à consciência regional.

E aproveitando o projeto, que tal espalhar painéis do Desempregômetro, proposto por este jornalista, em cada sinalização de indústria que se foi, com os respectivos contingentes de trabalhadores de então?

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