CIDADANIA ANESTESIADA,
CIDADANIA ESCRAVIZADA
DANIEL LIMA - 19/12/2024
É melhor não esperar nada de transformações sociais e econômicas no Grande ABC, território físico e sensorial gataborralheiresco na periferia da Cinderela paulistana. O poder político concentrado e o anestesiamento coletivo dominam completamente a cena regional. Cidadania política é quase ficção. As cartas marcadas dos poderes locais estão concentradas em pequenos grupos. Os opositores em alguns endereços não resistem.
O que tudo isso significa? Significa que cada vez mais e intensamente, com o advento das redes sociais, a região registra um fenômeno inverso ao que se notabiliza o cenário nacional. A sociedade dispersiva, desatenta, sacrificada e açodada está cada vez mais nas mãos da classe política local. Uma classe política cada vez mais concentrada em agentes com visão e ações autoritárias. A ocasião do monopólio faz o ladrão da democracia.
Há latente insatisfação subterrânea no que resta de potencial de reação da sociedade. As eleições em outubro evidenciaram o estágio de uma cidadania política em crise. Apenas 35% dos eleitores inscritos votaram nos sete prefeitos vencedores. E apenas 25% elegeram vereadores que assumem no próximo ano.
PASSIVIDADE
A sociedade, em larga escala, aceita passivamente tudo o que se passa em forma de gestão pública municipal e regional. Pode-se deitar e rolar. Nada provoca reações objetivas. Pior que isso: diante do alheamento associado a complacência, quando não à cumplicidade, as reações coordenadas pelos mandachuvas para mistificar a realidade regional são vigorosas.
Os prefeitos, sejam competentes, sejam charlatões, nadam de braçadas na propagação de resultados administrativos. Fosse tudo realidade, o Grande ABC seria uma extraordinária experiência de sucesso em políticas públicas e em dinamismo econômico. Nada disso se sustenta. Estamos continuamente ladeira abaixo. Os dados são irrefutáveis.
Tudo isso desmorona porque o Grande ABC é uma área espacial em crise permanente. Corremos a apenas 30% de velocidade em relação à média nacional de crescimento do PIB neste século. E estamos vindo de duas décadas do século passado de crise assustadora. Somos cada vez menos importantes no mapa de representatividade econômica no Estado de São Paulo e no Brasil.
Não chegamos a contar com 2% de participação no PIB Nacional. Em 1970 eram quase 5%. Na Grande São Paulo, não passamos de quarto colocado no PIB, atrás da Capital, do Grande Oeste e do Grande Norte. E vamos continuar a cair. A indústria automotiva, corpo e alma da economia regional, vai viver novo ciclo de derrocada com a chegada de carros elétricos. O setor de autopeças vai ruir de vez. A tempestade provocada por Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990será fichinha.
FATORES DECISIVOS
A explicação para a altíssima aprovação aos prefeitos de cada cidade da região ao fim desta temporada, com registros dinamarqueses de satisfação, está numa conjunção de fatores que denunciam uma longa estiagem de cidadania política, resultado da debilidade de cidadania social. Ou seria o inverso?
Prefeitos que terminam o mandato nesta temporada com aprovação de 80% como Paulinho Serra e 70% como Orlando Morando e José Auricchio Júnior, como constatou o Instituto Paraná, beirariam à perfeição. E
Todo o mundo ajuizado sabe que não é bem assim.
Por melhor que seja cada um deles, só é possível chegar a esses patamares com uma combinação de fatores fortemente relacionados a avaliações pouco exigentes da sociedade. Bem diferente, portanto, de quanto essa mesma sociedade se manifesta sobre políticos combatidos no ambiente estadual e federal,
Tanto que a aprovação do governador Tarcísio de Freitas e a aprovação do presidente Lula da Silva estão longe da quase santificação dos prefeitos da região.
COQUETEL INDIGESTO
Tentar encontrar uma única razão para o fenômeno de tolerância ou de ignorância, para não dizer de desatenção quando não de negligência da sociedade regional em relação aos prefeitos de plantão seria perda de tempo e erro crasso. Há um pacote interativo de deficiências, por assim dizer, que definem com clareza a que ponto chegou a frouxidão da cidadania regional.
Cidadania regional ou cidadania municipal é apenas força de expressão. Vivemos numa terra sem dinamismo coletivo, embora a pauta de carências, quando não de esquisitices administrativas, seja numerosíssima.
Veja a vitrine que coloca a cidadania política e social do Grande ABC na zona de rebaixamento permanente:
a) EVASÃO DE CÉREBROS.
b) CONCENTRAÇÃO DE PODER POLÍTICO.
c) CONTAMINAÇÃO DA POLÍTICA ESTADUAL E NACIONAL.
d) MILITANTES DAS REDES SOCIAIS.
e) FRAGILIDADE DS INSTITUIÇÕES.
f) MAQUINARIA PÚBLICA.
g) ASSISTENCIALISMO DE CABRESTO.
h) CONTROLE DA MÍDIA.
i) PALANQUE ELETRONICO.
j) PESQUISAS ESCLARECEDORAS.
Agora vamos a breve abordagem de cada um desses enunciados. Há complementariedades implícitas e explicitas em cada um desses fatores. Não se obtém resultados tão negativos para quem sonha com uma sociedade organizada para valer, não de araque, sem que deixe de fluir uma conjunção de impropriedades comportamentais.
EVASÃO DE CÉREBROS.
Faltam pesquisas mais atualizadas, mas a proporção da População Economicamente Ativa que deixa o território de moradia local para atuar em outros municípios é bastante expressiva. No caso de Santo André, calcula-se que mais de 40% deslocam-se diariamente às cidades da região e Capital. A desindustrialização deixa rastros que se espalham por todas as atividades. A evasão de trabalhadores produz um vazio de capital social, ou seja, de relacionamento interativo na sociedade como um todo. Perdem-se laços de comprometimento social. Abrem-se enormes crateras aos bandidos sociais.
CONCENTRAÇÃO DO PODER PÓLÍTICO.
Para tomar conta do barraco de mando e comando da vida política nos municípios da região basta um mínimo de organização. Da mesma forma que o crime organizado ajudou a reduzir os índices de criminalidade nas grandes cidades, ao eliminar disputas internas de facções diferentes, os políticos locais se deram conta de que ganham mais com aproximações do que com dissensões. Por isso, acabaram assumindo o controle da situação. Cada vez mais há identidade conciliatória entre antagonistas que, juntos, sabem que todos ganham. Menos a sociedade. Oposicionistas que restam serão cada vez menos expressivos. A cada nova temporada de votos a conexão de ajuntamento estratégico se fortalece.
CONTAMINAÇÃO DA POLÍTICA ESTADUAL E NACIONAL.
O ambiente político-partidário no Grande ABC é cada vez menos centralizado nos debates locais, internos, para se deslocar ao ambiente estadual e, principalmente federal. Quem acompanha as redes sociais na região não é surpreendido com o predomínio do noticiário e da massa de disputas pelo domínio de opinião tendo a polarização política nacional como tração. Basta dar uma espiadinha, por exemplo, nos grupos de determinados aplicativos para compreender que apenas uma minoria está voltada às questões locais, principalmente municipais.
MILITANTES DAS REDES SOCIAIS.
Os militantes das redes sociais na região que dão maior densidade às politicas locais, ou seja, que procuram de alguma forma fugir ou reduzir a carga do noticiário estadual e federal, são militantes abrasivos, a maioria dos quais presa a estratégias muitas vezes retaliatórias, quando não bajulativas, dos paços municipais. Ninguém supera Santo André de militantes enraivecidos. Há sincronia fina, com fonte no Paço Municipal, para combater quem não foge de enfrentamentos. Pautas constrangedoras geralmente não prosperam. Há uma base pronta para combater os insatisfeitos.
FRAGILIDADE DAS INSTITUIÇÕES.
As instituições do Grande ABC acentuaram ainda mais nas últimas temporadas de comunicação portátil uma vocação antiga de entreguismo ao poder do momento. A maioria das entidades não passa de puxadinhos dos paços municipais. Há subalternidade de vozes setoriais com o aperfeiçoamento de vantagens individuais a representantes dessas organizações. A rede de empreguismo de favor é extensa. Há cargos públicos municipais negociados sob condições específicas de silenciamento e, principalmente, de expansão do volume de aprovação a Administração Municipal.
MAQUINARIA PÚBLICA.
A máquina pública municipal age com sincronia à formação de um caldo de cultura de dominação durante todo o tempo e de cooptação de votos nas temporadas eleitorais. Os recursos públicos são uma porção influente na formação de opinião coercitiva ou não que sempre abastece a geração de uma energia de convergência aos donos do poder municipal. É asfixiadora a porção de funcionários públicos tanto do Executivo quanto do Legislativo combinada com o potencial de recursos orçamentários aplicados de maneira especifica em diferentes áreas e atividades. Não se tem números sobre a influência direta e indireta da maquinaria pública de servidores, mas não existe chefe de Executivo que deixe de explorar meticulosamente essa reserva eleitoral.
ASSISTENCIALISMO DE CABRESTO.
Quanto mais um determinado território perde o viço econômico, mais a debilidade social se apresenta como reduto sob controle. O assistencialismo é um fenômeno antigo e passa necessariamente pelas camadas mais sofridas da população. A definição de projeto que coloque o dinheiro público o mais próximo possível dos pobres e miseráveis significa investimento que raramente se diluirá. A inspiração dos prefeitos da região é o Bolsa Família, mas não faltam programas direcionados a potencializar o socorro com objetivo pré-determinado. O Grande ABC é cada vez mais um manancial de retorno do voto assistencialista.
CONTROLE DA MÍDIA.
O jornalismo observado como instituição sempre alerta contra desvios de organizações públicas, e de prefeituras em especial no âmbito municipal, há muito está morto e enterrado. Há exceções à regra no Grande ABC, mas exatamente por serem exceções, a regra se confirma. Não há, em larga dimensão, nada que sequer lembre posições mesmo que diplomáticas de oposição no noticiário de papel e na diversidade do mundo digital. As entrevistas, na maioria dos casos, não passam a atmosfera de chá da tarde, de conversas sem compromissos críticos. São banquetes de lantejoulas, de intimidade pública vexatória a quem conhece a gravidade econômica e social da região. O jornalismo de colunismo social, sempre festivo, sufoca o jornalismo de contraditório. Mais que isso: quem pratica jornalismo de contrapontos é demonizado nas rodas dos poderoso. Eles só admitem elogios. O Grande ABC na visão oficial da maioria dos chefes de Executivo, de legislativos improdutivos e de instituições privadas e púbicas caudatárias de celebrações desrespeitosas, não pode nem deve ser campo a eventuais recomendações, quanto mais de contestações. É preciso sufocar os dissidentes.
PALANQUE ELETRÔNICO.
Os prefeitos estão cada vez mais digitalizados. Prefeitos digitalizados não são exatamente prefeitos que administram com o reforço de ferramental tecnológico. Isso já é realidade há muito tempo. Prefeito digital é prefeito que usa as mídias sociais e principalmente palanques eletrônicos próprios para se comunicarem diretamente com os contribuintes que também são eleitores. As lives são uma rotina administrativa na maioria dos casos. A isso pode se dar o nome e sobrenome de democracia direta. Por isso, o grau de relevância dos canais tradicionais de comunicação se tornou menos importante. Nada, entretanto, que não faça parte do arsenal de popularidade e controle da opinião pública. O palanque eletrônico é extremidade de uma engrenagem cuidadosamente estruturada para estabelecer linha de ação de marketing. Os prefeitos viraram celebridades.
PESQUISAS ESCLARECEDORAS.
O elevado índice de aprovação aos prefeitos das três principais cidades do Grande ABC ao final de oito anos de dois mandatos está nas páginas do Diário do Grande ABC. O Instituto Paraná foi mais uma vez a campo para medir a satisfação dos eleitores com os prefeitos que não puderam se candidatar a novos mandatos. E também dos prefeitos em primeiro mandato. Os resultados confirmam o estágio de anestesiamento municipal e regional. Paulinho Serra termina os oito anos de governo com 80,1% de aprovação e 16,5% de reprovação. Orlando Morando registra 69,9% de aprovação e 27,3% de reprovação. José Auricchio Júnior alcança 70,1% de aprovação e 25,6% de reprovação. Diferentemente deles, e como provas provadas de que o nível de exigências é outro quando se trata de governador e de presidente da República, há mais restrições nesses dois casos. O governador Tarcísio de Freitas é aprovado por 63,2% e reprovado por 33,% em Santo André, é aprovado por 59,6% e reprovado por 36,5% em São Bernardo e aprovado por 63,1% e reprovado por 33,1% em São Caetano. Em todos os casos os números de aprovação são inferiores aos chefes de Executivos, enquanto as reprovações são superiores. No caso do presidente Lula da Silva, a situação é mais delicada sempre comparando com os números dos prefeitos. Em Santo André, Lula da Silva conta com aprovação de 42,4% e reprovação de 54,6% dos eleitores. Em São Bernardo, berço petista, a aprovação a Lula da Silva é de 43,8% ante reprovação de 52,8%. Já em São Caetano, endereço mais conservador da região, Lula da Silva é aprovado por 37,9% dos eleitores e reprovado por 58,7%.
A cidadania municipal e a cidadania regional, duas fantasias, são complacentes com os políticos locais porque não se envolve na mesma intensidade nas pautas locais em relação às esferas externas. Somos um mundo à parte. O que agrava anda mais a situação de normalização do estágio de dramaticidade econômica e social de quase três milhões de habitantes.
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