Imprensa

Diário: Plano Real que
durou nove meses (9)

  DANIEL LIMA - 03/09/2024

Estamos dando sequência a esta série que resgata o Planejamento Estratégico Editorial executado durante nove meses à frente da Redação do Diário do Grande ABC, entre julho de 2004 e abril do ano seguinte. A partir de hoje (e até que o estoque de 36 edições se esgote) os leitores de CapitalSocial vão acompanhar a reprodução integral de um trabalho que realizamos no Diário do Grande ABC -- com repercussão em toda a comunidade regional.

Pela primeira vez na história (a segunda ocorreu mais tarde, também com este jornalista) o veículo de imprensa mais tradicional da região contratou um profissional para analisar o que se passava em suas páginas. Traduzindo em termos menos diplomáticos e repetindo o que já escrevi: fui chamado para bater no jornal. Como o Ombudsman da Folha de S. Paulo é contratado para criticar a Folha de S. Paulo. 

OmbudsmanDiário foi a newsletter que criei para destrinchar a qualidade do jornal. Uma tarefa que começou em 14 de junho de 2004 e se estendeu a 16 de julho, ou seja, produzi em média mais de uma edição por dia. Quatro dias depois, em 21 de julho, assumi a direção da Redação, que se estendeu até 20 de abril do ano seguinte. 

Os textos desta série foram consumidos apenas internamente naquele período. Ou seja: apenas a corporação formada por diretores, acionistas e funcionários do jornal teve acesso. Vazamentos ocorreram. Não vivíamos a profusão e a riqueza de plataformas de comunicação destes tempos, mas a Internet estava viva e em crescimento.  

 PRIMEIRA EDIÇÃO

Iniciamos nesta segunda-feira, 14 de junho, uma fase de extrema importância para o Diário do Grande ABC. Ao assumir a função de ombudsman estou consciente da responsabilidade societária, corporativa e pública da função. Não estou subordinado a nenhuma instância da companhia. Da mesma forma, não estou acima de qualquer instância da companhia. Sou representante dos acionistas junto aos jornalistas e leitores. Sou representante dos jornalistas junto aos acionistas e leitores. Sou representante dos leitores junto aos acionistas e jornalistas. Aparentemente, trata-se de um emaranhado conceitual, mas basta compreender o significado multidimensional da expressão "ombudsman" para assimilar a singularidade da tarefa.  

Espero, sinceramente, contribuir para a melhoria constante do produto que oferecemos aos leitores. Estarei feliz no dia muito improvável em que a função de ombudsman se tornar supérflua na estrutura de qualidade do produto que levamos às bancas, residências e estabelecimentos sociais e econômicos.

Nesse dia, o jornal terá atingido a perfeição de sair das máquinas rotativas sem senões. Como evidentemente essa perspectiva é alucinógena, prefiro mesmo acreditar que, ao fim de meu mandato, de tempo indeterminado, a companhia que me contrata tenha consolidado esse projeto e meu substituto esteja entre os atuais colaboradores da redação.  

Espero ser um colaborador construtivista ao conjunto de profissionais que atuam no nosso jornal. E construtivismo se projeta e se materializa com fundamentação e conhecimento. Em nenhuma circunstância esta newsletter tem por objetivo promover um baile de saias-justas entre os colaboradores eventualmente incomodados. E muito menos patrocinar um baile de fantasias entre aqueles que alcançarem a graça de elogios.

Sabemos os riscos implícitos e explícitos da construção dessa ponte de interlocução. O ineditismo da medida no seio da redação do Diário do Grande ABC, especialmente numa quadra da vida do jornal em que grandes mudanças ocorrem, pode servir eventualmente de uma teia de ilações.

Esse inevitável desdobramento não nos assusta porque nosso propósito é único em sua triplicidade: permitir aos acionistas o retorno do capital investido, estimular os jornalistas a apurarem a pontaria em direção a um produto cada vez mais respeitado e saciar a fome de informação dos leitores.

O sumo básico dessa santíssima trindade de objetivos é cristalizar o jornal como produto capaz de conduzir as ações regionais, em vez de manter-se a reboque de fontes de informações tão diversas quanto contraditórias.  

Antes de discorrer sobre algumas matérias publicadas pelo jornal nestes dias, abrindo portanto nosso portal de avaliações, repassamos aos senhores os pressupostos básicos que apresentei aos acionistas do Diário do Grande ABC na fase de negociação dessa inovação, os quais foram integralmente atendidos:  

1) A newsletter circulará de segunda a sexta-feira entre acionistas, diretores e editores do jornal. Preferencialmente será distribuída, pela Internet, antes da reunião de pauta. Necessariamente não abordará todos os assuntos da edição do dia porque há questões que demandam avaliações mais complexas.  

2) O ombudsman manterá reuniões quinzenais, sempre às segundas-feiras, com o Conselho do Leitor. Dessa forma, centralizará e fará disseminar entre o público-alvo todas as considerações que se colocarem nesses encontros. Também participará do encontro o editor-chefe. Poderão participar outros representantes da companhia, a critério do ombudsman. O espectro do Conselho do Leitor passará por avaliação possivelmente reformista do ombudsman.  

3) Sempre que houver conveniência do editor-chefe, o ombudsman manterá reuniões com os editores do jornal, acompanhados do editor-chefe. Caso o acesso aos editores seja considerado eventualmente desnecessário, a reunião será realizada com diretores, acionistas e editor-chefe. 

4) O ombudsman representará acionistas, diretores, editor-chefe e editores na recepção e no encaminhamento de interlocução com os leitores, contando para isso com ferramental técnico específico. Isso significa que meu quartel-general, pelo menos nos primeiros tempos, estará baseado no endereço em que desenvolvo atividades profissionais, reservando-se uma linha telefônica exclusiva para o atendimento dos leitores, bem como uma assessora.  

5) O ombudsman estará à disposição do editor-chefe e dos editores para eventuais reuniões. Esses encontros poderão ser programados com pelo menos três dias de antecedência e serão realizados na sede da companhia. 

6) O ombudsman será apresentado em reunião ao editor-chefe e aos editores para expor seu plano de atividade. Essa medida será executada antes da divulgação oficial da atividade.  

7) O ombudsman manterá contatos com o público-alvo sempre através da newsletter, exceto quando solicitado a interlocução pessoal. 

Agora, vamos às primeiras avaliações sobre o jornal: 

UNIVERSIDADE PÚBLICA 

O jornal tem apresentado cobertura errática sobre o perfil da Universidade Pública do Grande ABC. A reportagem publicada domingo ("Ministro da Educação defende universidade do Trabalhador") mereceu manchete principal de primeira página, mas pareceu-me feita de afogadilho. O jornal demorou demais para acompanhar um assunto que é prioridade regional e quando o fez tentou impressionar com uma entrevista da enviada especial a Porto Alegre.

Considerando-se que a jornalista em questão é de ponta, transpira a impressão de que correu mais que as próprias pernas para dar conta de um recado que exige mais engenho. Na essência, o impacto positivo da exclusividade da entrevista com o ministro Tarso Genro não apresenta a contrapartida de novidade à altura. A chamada universidade tecnológica está entre as três alternativas não excludentes apresentadas pelo próprio ministro durante o encontro com o Exército de Brancaleone do Grande ABC, há quase um mês em Brasília. Basta conferir o noticiário do jornal.  

O fato é que o ministro, que está à espera de resposta regional ao formato da universidade, a cargo de um grupo de iluminados escolhidos pelo Consórcio de Prefeitos, simplesmente não quis ferir a ética de relacionamento com os representantes locais. Por isso, limitou-se a dizer o óbvio para quem acompanha o caso.

Fez-se, portanto, um certo sensacionalismo com o tema sem que os leitores mais exigentes fossem minimamente contemplados com informações substantivas. A pressa é inimiga da perfeição. Só posso entender que tenha havido descompasso entre preparação e velocidade na aplicação da pauta.  

Pior do que a matéria da edição de domingo é a desta segunda-feira ("Grupo se reúne para definir universidade pública do ABC"), que está em Setecidades-3. O esforço de reportagem deve ser louvado, mas há nítida ausência de coordenação estratégica que defina a linha editorial do jornal no assunto.

Deixa-se para os entrevistados uma barafunda de informações contraditórias sobre o perfil da universidade. Mais: o jornal avoca mais uma vez um modelo tecnológico que, repetimos, está na apresentação de um chamado "esboço" do ministro Tarso Genro. Tanto é verdade que a revista LivreMercado publicou Reportagem de Capa na edição de junho. Enfatiza a publicação a importância de os primeiros cursos da universidade serem dirigidos ao setor plástico, fundamentada em estudos contratados há três anos. A leitura atenta daquela matéria poderia ter enriquecido os textos do Diário, inclusive com citação da fonte. 

Poderia discorrer mais sobre as imperfeições de abordagem do jornal. Numa situação como essa, de extrema importância do temário para o destino da região, o jornal poderia dar tratamento especial à fase de planejamento da reportagem. Todo o esforço da equipe que assina a matéria de hoje e também o empenho da jornalista que viajou a Porto Alegre acaba submetido a notório esgarçamento da qualidade editorial.

O jornal não pode deixar que a roda de improvisações do Consórcio de Prefeitos ganhe a velocidade de interesses partidários, fluentes neste ano eleitoral.  

Os leitores do Diário ainda não sabem quem são os 16 membros que determinarão a sorte do perfil da universidade e que, segundo consta, estarão reunidos amanhã. Uma cobertura atenta desse evento poderá permitir o desvendamento do segredo.

O problema é que um assunto de interesse público como esse será tratado a portas fechadas, conforme divulgou o próprio jornal. E o jornal, infelizmente, nem resvala nesse ponto. Há insustentável monopolização de representantes governamentais locais no enquadramento da universidade regional sem que o principal porta-voz da sociedade se manifeste criticamente sobre o assunto.

CUSTOS LEGISLATIVOS (1)

O jornal publicou mais uma vez com detalhamento ("PEC tumultua calendário eleitoral"), na edição de 10 de junho (Nacional-5), o problemático caso da Proposta de Emenda Constitucional que define o número de cadeiras nas câmaras municipais de todo o País. Faço reparo quanto à tabela de gastos, que se circunscrevem às despesas com os vereadores.  

CUSTOS LEGISLATIVOS (2)

Na edição seguinte, de sexta-feira (Política Grande ABC-3), sob o título "Câmaras terão de apertar o cinto", a reportagem está perfeita do ponto de vista técnico, mas tremendamente enviesada. Ao tomar o pulso suspeito de representantes dos próprios legislativos sobre a provável aprovação da PEC e a possibilidade de redução de repasses, o jornal levantou a bola para a defesa do indefensável, ou seja, de que os excessivos gastos com vereadores têm alguma substância concretamente positiva. Além disso, a redução do repasse, eixo da matéria, está fora de cogitação, depois de descartada pelo Senado. Pelo menos para esta temporada. Ou seja: a pauta está duplamente incorreta.  

CUSTOS LEGISLATIVOS (3)

No domingo, 13 de junho (Política Grande ABC-4), o jornal consegue, finalmente, encaixar um golpe certeiro sob o título "Vereador de São Caetano custa mais ao morador". O jornal descobriu que o IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos) há muito traçou o mapa de gastos legislativos dos principais municípios paulistas, sempre sob a relação receita arrecadada-despesas com vereadores-moradores atendidos. Os dados do IEME estão fundamentados no Tribunal de Contas do Estado e exprimem não só a realidade individual dos principais municípios paulistas como também os correlaciona.  

Esperamos que, com base na descoberta do óbvio, o jornal de agora em diante não se perca mais em imprecisões informativas e mesmo na sacralização de despesas dos legislativos. Ao ouvir representantes dos legislativos da região, o jornal acerta em cheio às expectativas dos leitores, porque é sempre instigante saber o que pensam os protagonistas do jogo político. Também é interessante entrevistar moradores. As carinhas dão audiência e aproximam o jornal dos leitores. 

SANTO ANDRÉ NA FINAL

A vitória do Santo André contra o time gaúcho e a passagem à decisão da Copa do Brasil foram muito bem alinhavadas pelo jornal. A manchete de primeira página do dia seguinte à vitória e o próprio editorial fortemente emocional retiraram o jornal de um histórico de quase insensibilidade às questões mais entranhadas na alma do cidadão do Grande ABC.

Sugiro que o noticiário do Santo André seja reforçado para criar ambiente de intensificação do interesse regional. Resgatar, por exemplo, a noite de quarta ou quinta-feira de 1979, quando 20 mil andreenses foram ao Pacaembu para empurrar o time rumo ao Acesso, contra uma Esportiva de Guaratinguetá que não levou ninguém porque não tinha possibilidade alguma de subir, serviria como alavanca para resgate de uma torcida que, face a vários motivos sobre os quais não compete expor agora, mantém-se fugidia dos estádios.  

CASO CELSO DANIEL

Os desdobramentos do caso Celso Daniel estão em Brasília, mas o jornal não se deu conta disso na medida esperada. A Folha de S. Paulo publicou extensa matéria neste domingo. Até agora o jornal se limitou a uma única matéria sobre o assunto e mesmo assim sem o enfoque desejado. Voltarei ao tema. Espero que as conclusões do Ministério Público Estadual não sejam privilegiadas em relação às conclusões da Polícia Civil e da Polícia Federal, como o jornal insistentemente tem preferido.  

VIOLEIROS DE MAUÁ

A matéria com a Orquestra dos Violeiros de Mauá ("Orquestra dedicada à viola") publicada no caderno de Cultura e Lazer de sábado, 12 de junho, com chamada de primeira página, é prova de que é mais que possível, é objetivamente clara a amplitude de alternativas locais para o enquadramento preferencial (mas não exclusivo) da região em pautas da área em questão. Faltou destacar de alguma forma, em janelas, na primeira página, no subtítulo, em qualquer lugar, o viés de solidariedade do grupo, que, conforme diz a matéria, conforta doentes em hospitais.  

MAIS ASSUNTOS

Na edição de amanhã vou me reportar a mais assuntos impressos nas páginas do jornal nestes últimos dias. Tenho coleção de casos que merecem ser analisados e compartilhados com acionistas, diretores e jornalistas. O noticiário envolvendo o deputado federal Vicentinho Paulo da Silva estará na agenda de amanhã.

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