Imprensa

Diário: Plano Real que
durou nove meses (5)

  DANIEL LIMA - 02/08/2024

No quinto capítulo desta série que resgata o que chamo de Plano Real Editorial preparado e executado em parte no Diário do Grande ABC, entre 2004 e 2005, reproduzo três dos vetores que compuseram o material de 90 mil caracteres. Trato especificamente do Conselho Editorial, de Formação Profissional e de Especialização dos quadros. 

 CONSELHO EDITORIAL 

Iremos substituir o Conselho do Leitor pelo Conselho Editorial. Não se trata de simples troca de nomenclatura. A mudança é muito mais substantiva, porque invade o terreno do conceito, da especificidade. O Conselho do Leitor é instância estranha no departamento-vitrine da empresa — o editorial — porque atinge diretamente quem está envolvido com o público e, consequentemente, com o produto final.

A composição e as funções atribuídas aos conselheiros-leitores são uma anomalia porque agridem e impactam a corporação no que provavelmente deve oferecer como principal predicado: a autoestima acompanhada de senso de respeito.

O Conselho do Leitor golpeia a autoestima porque os profissionais acabam avaliados publicamente por leigos no assunto. Por mais que eventualmente haja colaboradores do Conselho de Leitores que possam contribuir para a melhoria do jornal, a exposição de enunciados críticos da forma que se caracterizou — em espaço fixo nas edições de domingo — torna tão ansioso quanto receoso o quadro de colaboradores.

As repercussões de intranquilidade e insegurança se refletem no produto final. Chuta-se ladeira abaixo uma bola-de-neve de impropriedades que abalam a unidade da equipe.

Nada mais comprometedor para uma equipe do que se sentir permanentemente ameaçada por avaliações públicas formuladas por não-especialistas. A formalização do Conselho do Leitor nos termos atuais é, portanto, equívoco que será eliminado em sintonia com o encerramento do mandato dos atuais conselheiros.

Entretanto, isto não quer dizer que a redação estará imune a avaliações internas e externas. Pelo contrário: estabeleceremos medidas cautelares que permitirão medições permanentes do conjunto da redação e também por editoria sem que a medida tenha qualquer conotação de desconfiança e de desautorização, quando não de subversão dos preceitos profissionais.

Não podemos desconsiderar nessa decisão — aliás, é o ponto nevrálgico da questão — que o conteúdo editorial do Diário do Grande ABC, face as atribulações conhecidas de todos, encontra-se em momento decididamente complicado e, portanto, extremamente delicado. Não é de bom alvitre a adoção de qualquer instância avaliativa — principalmente por leigos — que exponha publicamente ou mesmo internamente os pecados da publicação.

Estimula-se a insegurança individual e coletiva, caminho mais curto para a instabilidade emocional e técnica de profissionais que exigem dose diária de estímulo, combinada com senso crítico emanado de quem conhece o ritual da atividade.

Ou seja: o Conselho do Leitor seria uma peça de carpintaria editorial aproveitável com adaptações que não convém ressaltar agora, mas num contexto diferenciado do atual. Não existe estrutura técnico-emocional para suportar o strip-tease a que são submetidos os jornalistas por leitores que, por mais boa-vontade e interesse que tenham, nem sempre conseguem retirar as peças com um mínimo de competência.

O produto que vai às ruas precisa ser entendido de forma muito mais integrada do que simplesmente numa censura pública ao deslize ortográfico.

Já a introdução do Conselho Editorial significará grande salto de qualidade do jornal rumo à comunidade. Diferentemente do Conselho do Leitor, que vive à caça de descuidos léxicos e analisa superficialmente os assuntos sobre os quais o jornal se dedica a levantar, o Conselho Editorial será integrado por profissionais residentes e atuantes na região.

Serão especialistas em diversas áreas. Caberá a esses membros, juntamente com alguns jornalistas da equipe de redação, a tarefa de construir coletivamente um novo perfil de produção do jornal, absolutamente sintonizado com o macroplanejamento editorial.

Caberá ao Conselho Editorial não a procura de escorregões da língua pátria, obrigação técnica de quem está na redação, mas a introdução de conhecimentos específicos na linha editorial do jornal.

Os membros do Conselho Editorial que fazem parte da comunidade trarão experiências vividas para o interior do jornal, sempre em encontro coordenado pelo diretor editorial e pelos editores-chefes do Diário do Grande ABC e de LivreMercado.

Especialistas em educação, marketing, urbanismo, transporte, segurança, meio ambiente, legislação, economia, entre tantas outras áreas, vão integrar-se à redação como cérebros complementares. Serão espécies de consultores a quem poderemos reservar, também, espaços editoriais como colunistas fixos ou eventuais.

Formularemos um código específico de atuação dos membros do Conselho Editorial. Estabeleceremos algumas condições que darão ao organismo caráter de compromisso exclusivo, evidentemente sem remuneração, mas nem por isso excluído de eventuais programas de compartilhamento de marketing que trataremos de definir na sequência de nossos trabalhos.

Haveremos de tornar o Conselho Editorial tão respeitado que suas repercussões em muito colaborarão para o fortalecimento editorial do jornal e o aperfeiçoamento da linha editorial da revista.

Os integrantes do Conselho Editorial serão convidados pelo diretor de redação porque cada peça requisitada fará parte de uma engrenagem de complementaridade temática que não se esgotará nos conhecimentos individuais específicos. Avançará inexoravelmente em direção aos macropressupostos de reorganização da companhia na área editorial. 

 FORMAÇÃO PROFISSIONAL

A exemplo do que organizamos entre 1982 e 1983, quando ocupamos posto equivalente ao de chefe de redação, embora a nomenclatura fosse de coordenador de produção, vamos introduzir um mecanismo de seleção e preparação de recém-formados para, mediante necessidades, contratá-los para substituir ou eventualmente reforçar nosso quadro de redação.

Naquela época chamamos de escolinha o que veio a se consolidar como virtuosíssimo modelo de reposição e contratação de jovens valores. A importância dessa iniciativa vai muito além do que alguns supõem restrita a interesses financeiros. Aliás, o viés financeiro é apenas uma fração do conjunto de vantagens da introdução desse processo de depuração e uniformização de recursos humanos da área editorial.

Pesa muito mais em qualquer equação que se desenhe a perspectiva de que essa turma de jovens poderá ter acesso aos quadros de redação sem sofrer impactos emocionais e técnicos que tanto comprometem a qualidade do produto final, isto é, da informação consumida pelos leitores.

É enorme a diferença entre o rendimento de um jovem recém-formado e contratado para atuar numa redação sem referenciais da cultura editorial da publicação e um jovem recrutado tendo como base a preparação numa espécie de vestibular. Produtividade é o verbete que, no fim da linha de avaliação, definirá a diferença entre um modelo e outro.

Afastar qualquer possibilidade de ruídos no circuito de informações que devem chegar aos leitores é o pressuposto de, também na seleção e no aproveitamento de jovens talentos, atingir respeitabilidade editorial.

A preparação permanente, sistemática e programática de jovens que ocuparão parte do universo da redação é condição imprescindível à estabilidade do departamento. Não se pode descartar a oxigenação da juventude em qualquer ambiente corporativo, sob o risco de enferrujar a engrenagem.

Entretanto, a simples escalação de recém-formados sem o devido preparo técnico, emocional e cultural se revestiria de tiro no próprio pé. Afinal, a contratação pura e simples de novos valores, atirados às feras de um produto que desconhecem, eleva as possibilidades de destruição da autoestima pessoal e, principalmente, submete o profissional recém-chegado a uma sequência de improdutividades que desarticulam o produto final.

E, nesse ponto, mais uma vez, vale a pena enfatizar: o consumidor de informação não pode ser apanhado no contrapé pelo efeito-tobogã de abordagens editoriais desconectadas dos valores exaustivamente enfatizados.

Não se pode nem ao menos conjecturar que jovens eventualmente talentosos sejam escalados para produzir em nome de um jornal quase cinquentenário sem que estejam adequadamente entronizados nos conceitos técnicos e culturais da publicação.

O produto que vai às bancas e aos endereços domiciliares e empresariais tem de ser observado sob o mesmo rigor de algo como um laticínio de marca respeitável exposto cuidadosamente na gôndola de um supermercado, de um veículo zero quilômetro que ajuda a compor o ambiente de uma concessionária, de um elenco de estrelas que se confunde com a logomarca de uma empresa de comunicação. Uma publicação que comete erros grosseiros ou omissões incontornáveis sofre fortes arranhões de credibilidade.  

 ESPECIALIZAÇÃO

É uma jornada longa, complexa, trabalhosa, mas precisa ser iniciada o quanto antes. Estamos nos referindo à constituição de quadros profissionais de redação que serão especialistas nas mais diferentes matérias. O jornalismo mais contemporâneo exige que os profissionais conheçam tanto as técnicas de interlocução com os leitores como uma bateria de questões específicas relatadas pelas fontes de informação.

Não podemos ser simples repositórios de declarações. Tratamos dessa questão, com profundidade, no livro “Meias Verdades”. É epidêmico o grau de manipulação de informações. Principalmente nos jornais diários, formulados pela mesmice de reproduzir declarações acriticamente. Não se trata de obstar esse caminho necessariamente pela estrada da opinião, mas pela avenida da interpretação e, principalmente, por um feixe de dados de valor agregado.

Aos leitores não se pode atribuir o rótulo de ignorantes. Costumamos dizer que nos compete como profissionais de comunicação muito mais que servir o almoço de informações — temos de digeri-las, metabolizá-las, facilitando o entendimento do leitor.

Poderíamos desfraldar uma série de exemplos de situações em que se manifestam tergiversações descaradas do princípio de bem informar, mas o melhor mesmo é recorrer a “Meias Verdades”. A essência do esgarçamento informativo qualificado está plantada na aridez de conhecimentos dos profissionais de comunicação.

A saída é setorizá-los e fazê-los mergulhar fundo nos arquivos, nos livros, enfim, em toda a literatura possível de ser utilizada a qualquer instante.

Um exemplo do que a falta de especialista é capaz de provocar está na área de saúde. A ideia de que um determinado Município está extraordinariamente mais suscetível à demanda de serviços sociais geralmente não corresponde à realidade porque, afinal, é generalizado o descompasso entre a massa de desafortunados que precisam recorrer ao sistema público e a ilha de incluídos que resistiram à onda de desemprego e da perda das chamadas conquistas históricas, especialmente do setor metalúrgico da região.

As pequenas e médias empresas industriais praticamente desativaram o ferramental de proteção social constitucionalmente de responsabilidade do Estado. Esse vácuo forçosamente passou a ser preenchido pelo setor público.

Ainda sobre esse aspecto, recentemente à frente do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos) pudemos comprovar que os investimentos na área de saúde pública no Grande ABC estão longe do imaginado, resultante do noticiário do jornal.

A rica São Caetano é a que menos investe por habitante no setor — ao contrário do que aplica na educação, cujos valores são os maiores do Grande ABC. E não se deve correlacionar o baixo valor despendido por São Caetano apenas e exclusivamente ao perfil socioeconômico da população. Há informações que denunciam, sim, o baixo rendimento do Município nesse quesito. Para quem mora em São Caetano e não está gravitacionalmente contaminado pelo ufanismo oficial, a área de saúde é um buraco imenso que precisa de reparos.

Os dados do IEME comprovam essa verdade. Não só os dados do IEME, mas o próprio ranking do IDHM, que mede a qualidade de vida dos municípios — São Caetano tem a menor das três médias (as outras são relativas às áreas de educação e renda) exatamente no critério de longevidade.

Esse é apenas um exemplo que pinçamos para justificar e enfatizar a importância de especialistas editoriais. Trata-se de realidade comum nos principais jornais do Primeiro Mundo, mas uma exceção à regra no mercado brasileiro quando se trata de questões relativas à cidadania.

Temos sim especialistas em coberturas esportivas, políticas, policiais, econômicas, mas, mesmo assim, com elevada fragilidade informativa. São mais setoristas que especialistas. Profissionais sobre os quais os especialistas do outro lado do balcão — as fontes de informação — geralmente deitam e rolam interesses específicos.

A máxima de que jornalista tem apenas de reportar contribui imensamente para que os vieses se ramifiquem insidiosamente. As publicações não contam com mecanismos de segurança contra impostores porque em larga escala não estão preparadas para a contra-argumentação.

Entregar às páginas opinativas dos editoriais a incumbência de eventualmente neutralizar ou reposicionar os efeitos maléficos e distorcivos de fontes de informação viciadas é um comodismo que se instaurou nas redações.

O que mais se verifica, também nesses casos, é a complementaridade de disparates porque os editorialistas, cada vez mais próximos do cotidiano das redações, apenas pasteurizam e retroalimentam as informações anteriormente formuladas.

Não bastasse isso, é importante ressaltar que, por mais importantes e procedentes que sejam os editoriais, pesquisas comprovam que se trata de espaços lamentavelmente consultados em proporção bastante inferior ao do noticiário convencional. Ou seja: informações equivocadas que tenham ocupado o corpo da publicação dedicada ao noticiário geralmente se consolidam como verdadeiras e irrebatíveis. O aval do editorial é a força suprema dos veículos. Para o bem e para o mal.

A formação de especialistas é um processo longo e persistente que não se esgota em alguns pares de ano. É uma jornada intensa. Mas bastante compensadora. Os especialistas são uma cabeça-de-obra disputadíssima no mercado de trabalho porque, além da segurança da informação correta, oferecem a contrapartida de alta produtividade.

Sim, alta produtividade. Coloque numa disputa por produtividade um especialista que conheça a fundo a área de saúde, suas fontes, dados estatísticos, comparativos, essas coisas, e um faz-tudo ou quase tudo que, perambulando por assuntos diversos, se vê a cada jornada imerso num determinado assunto.

É o mesmo que comparar um mecânico especializado em motores de caminhão e um mecânico escalado um dia para consertar pneus, outro dia para atuar como ajudante de carregamento, num terceiro como mecânico de fato, num quarto como motorista, num quinto com engraxador. O melhor mecânico será aquele que dominar as técnicas de sua atividade e, suplementarmente, atuar em ações-afins que agreguem valor à função principal.

O melhor jornalista será aquele que dominar integralmente sua especialidade e jamais se descuidar dos assuntos correlatos. Ganha-se, repito, tempo e um significativo progresso profissional. A especialização não exclui a multiplicação de conhecimentos. Pelo contrário: a notabilidade no específico é um atributo de quem reconhece a importância do periférico afim.

Leia mais matérias desta seção: