Esportes

Ano que vem do Santo
André começou em 2004

  DANIEL LIMA - 19/12/2023

O ano que vem do Santo André começou a ser comemorado ontem à noite na sede do clube e tem como marco inicial 20 anos passados, naquela noite de 30 de junho em que a equipe conquistou a Copa do Brasil em pleno Maracanã diante do Flamengo. Quem acha que o tempo não passou tanto tempo precisa recuperar o tempo para entender os próximos tempos. 

O Santo André sabe que Santo André e o Brasil não esquecem aquela noite de glória que o flamenguista Galvão Bueno narrou com dor no peito. Por isso, o Santo André quer revivê-la na plenitude. Duas décadas completas estão aí. Junho é ali na esquina do calendário gregoriano.  

Embora não se enfatizasse aquela memorável conquista, sem, entretanto, ignorá-la no cerimonial prestigiado por conselheiros, torcedores e autoridades públicas, o fato é que o ano que vem será o ano de 2004 na contabilidade afetiva mais gloriosa do clube. O presidente Celso Luiz de Almeida está traçando essa retrospectiva com ares de planejamento.  

PASSADO INSPIRADOR  

Como viver apenas do passado não garante a camisa a ninguém, embora o passado limpo e produtivo seja inspirador, o Santo André decidiu lançar oficialmente o mote com que pretende recuperar o prestígio social que amealhou ao longo de décadas. “Esta é minha camisa” é a senha para o Santo André de amanhã moldar a intensidade de sucesso do Santo André de 2004. 

“Esta é minha camisa” é um chute nos fundilhos de uma realidade que se cristalizou na sociedade em forma de camisa dividida, ou seja, de o Santo André ser na própria casa o primeiro de poucos e o segundo de muitos torcedores dos grandes times da capital. Houve tempo em que o Santo André de torcedor ativo era o primeiro time de muitos e o segundo de são-paulinos, palmeirenses, corinthianos e santistas. 

O coquetel de ontem à noite na sede do clube social, o Poliesportivo Jairo Livolis, foi um encadeamento de cabeças brancas, quando não calvas, e barbas também brancas. O Santo André de torcedores mais tradicionais é mesmo um símbolo envelhecido que precisa de projeto de rejuvenescimento.  

PARADOXO ABENÇOADO  

O paradoxo é que esse rejuvenescimento pode estar no pote milagroso do passado. Vinte anos se passaram e muitos torcedores especiais, muitos conselheiros, já se foram. A renovação é imprescindível. Ainda há muitos elos de gerações que se complementam e que por isso mesmo servem de ponte à ultrapassagem do período de certo esvaziamento de representatividade. São seis décadas (desde 1967) de relações sociais que não se desmancham de um dia para outro. Nem de uma década para a década seguinte.  

Por isso o ano que vem que volta ao tempo do ano de 2004 precisa sim ser muito bem explorado no sentido mais agressivo e respeitoso de marketing. Ao Santo André recomenda-se o aprendizado de explorar mais e mais a memória afetiva que a Copa do Brasil de 2004 sugere. 

Se os times grandes recorrem insistentemente a ídolos e conquistas do passado para afirmar-se no presente, qual a razão senão descuido ou negligência, para o Santo André não colocar a Copa do Brasil como ponto de uma centralidade promocional e motivacional?  

É claro que o ano que vem que começou em 2004 não pode prescindir de integridade emulativa para se reconstruir em meio às grandes transformações do futebol. A adoção já demorada, embora não tardia, do sistema proposto em forma de SAF (Sociedade Anonima de Futebol) pode ser incorporada ao marketing de reforço do clube também em 2004.  

SALTO EXTRAORDNÁRIO 

Evocar o passado com os pés no presente e a estratégia no futuro faria o Santo André dar um salto extraordinário no ano que vem. O resultado seria maior ainda que a conquista da Copa do Brasil. Afinal, emitiria sinais de que finalmente o clube se integraria a uma nova configuração no calendário nacional, adequando-se, finalmente, ao figurino de empreendedorismo do esporte, modelo sem o qual é melhor fechar as portas. 

O que um coquetel como o de ontem à noite sugere é que o Santo André se inspire no homenageado com aquela obra que abrigou a todos os convidados. O Poliesportivo do Santo André ganhou o nome do maior presidente do clube em todos os tempos.  

Jairo Livolis fez de escombros aquele monumento de entretenimento do outro lado da linha do trem, como costumavam definir os moradores do lado de cá da linha de trem, referindo-se a uma Santo André então dividida territorialmente na percepção da sociedade.  

TRILHOS DOS TRENS  

Tratava-se de uma anomalia psicossocial saída do processo de emancipação dos municípios da região que antes pertenciam todos a Santo André, depois a São Bernardo e de novo a Santo André.  

Os iluminados emancipacionistas capricharam na arte de dividir em sete partes um território que era único. Tornaram as sete partes divididas nacos esquizofrênicos contraproducente à eficiência socioeconômica e cultural da unidade rompida.    

O Poliesportivo Jairo Livolis está no Subdistrito de Utinga, que há muito descartou a ideia maluca de separatismo. O Santo André com a sede na Rua dos Ramalhões, no Parque Jaçatuba, e o campo de jogo na Vila América ou Vila Pires, no primeiro distrito, ajudou a acabar com a bobagem emancipacionista. Mas ainda não explorou devidamente os dois lados de Santo André separados pelos trilhos dos trens. 

Quem sabe com o projeto da SAF, se a SAF sair mesmo do papel, e para tanto precisa da libertação do prefeito Paulinho Serra, quem sabe com isso, ou seja, com uma visão mais abrangente de Santo André, os investidores potencializem ainda mais a agremiação.  

Afinal, há uma herança popular reprimida entre o clube social e o gramado do Estado Bruno Daniel que requer a ação continuada. Quem enxerga futebol além dos gramados poderia desenvolver política integracionista do Santo André dos dois lados da linha do trem.  

BAIXINHOS FRENÉTICOS  

É claro que esse temário não foi sequer tocado no encontro de ontem à noite. Nem deveria ser. O que interessava mesmo era criar um ambiente de festa e de expectativa para o ano que vem que começou em 2004. E essa atmosfera foi garantida.  

O prefeito Paulinho Serra e a deputada estadual Carolina Serra participaram do encontro, Mais que isso: Paulinho Serra foi convidado a discursar e o fez como um andreense muito jovem quando o chamado Ramalhão ganhou a Copa do Brasil. Paulinho Serra era levado aos jogos pelo pai Paulo Serra, um torcedor engajado na história do clube e que não perde um evento que tenha o dístico da cruz de Santo André como referência. A mesma cruz de Santo André sobre a qual Paulinho Serra fez breve recuperação histórica durante o discurso.  

Embora o ano que interessa ao Santo André e que foi estimulado a ser conscientizado aos convidados seja mesmo o ano que vem que começou em 2004, o cerimonial reservou espaço para os anos 1970, e as temporadas seguintes. Três dos baixinhos frenéticos que fizeram sucesso e história no Santo André nos anos 1970 foram homenageados no palco. Fernandinho, Bona e Arnaldo estão quase ou já ultrapassaram a faixa dos sessentões, como a maioria dos convidados.  

SUBSTITUTO DE PELÉ  

Faltou Da Silva que, um dia de 1974, na Vila Belmiro, num Santos versus Ponte Preta, substituiu Pelé. Era o jogo de despedida do Rei do Futebol.  Os quatro, Fernandinho. Bona, Arnaldo e Da Silva, formavam um quadrado mágico que parecia ter feito tratado de sobrevivência e de reconhecimento dentro de campo: a bola não poderia deixar de rolar no gramado, porque eles não tinham tamanho nem força física para embates diretos. O técnico Silvio Pirillo foi o artesão daquela alquimia.  

Numa primeira versão desse texto escrevi que a exceção de bola no gramado era o fluxo de abastecimento a um goleador implacável, que subia a tamanha altura que evocava a ideia de manter-se congelado por alguns segundo lá no alto, para cabecear às redes adversárias. Era o centroavante Tulica, que já foi embora desta vida.  Um reparo: fui traído pela memória. Tulica foi jogar no Fluminense naquele 1979. Mais tarde lamentou não ter tido a sorte de contar com o suporte dos Baixinhos  Frenéticos. Seria algo como os Baixinhos Frenéticos e o Artilheiro voador. 

Pois o quadrado mágico, os Baixinhos Frenéticos, denominações que imantei nas páginas do Diário do Grande ABC, estavam ali no palco armado na noite de ontem. Só faltou Da Silva. 

O Santo André de 2004 de sucesso nacional começou bem antes como fonte de inspiração e de mobilização social. O Santo André do futuro de clube mais popular da região começou de fato em 1967, fundado sob inspiração e aguerrimento de um dirigente do futebol amador chamado Wigand Rodrigues dos Santos, mais tarde também presidente da agremiação. Wigand Rodrigues criou o Santo André com o respaldo dos times amadores da cidade, à frente que estava da Liga de Futebol.  

CAMPANHA DO PAPELÃO  

O mesmo Wigand Rodrigues evitou, mais tarde, a morte do clube, quando se opôs ao então presidente José Amazonas. Entre fechar e sobreviver até que uma fresta de esperança se abrisse, ficou com a segunda alternativa. Até campanha para coleta de papelão Wigand lançou como forma de despertar a sociedade à importância do clube.  

Por essas e outras o Santo André de 2024 começou há muito mais tempo do que se imagina, mas o tempo é implacável e vai retirando peças biológicas importantíssimas que o moldaram como uma agremiação persistente na luta para sustentar-se como força média do futebol brasileiro.  

Uma força de porte médio que já foi e que precisa ser recuperada. A inspiração da Copa do Brasil e a SAF que insiste em ratear são uma combinação perfeita a um novo marco temporal do futebol da cidade. “Esta é minha camisa” precisa, portanto, tornar-se imperativo sociológico no futebol da cidade.  

O outro lado desse balcão de possibilidades é um novo golpe na identidade municipal. Fazer do Santo André uma escala de comprometimento esportivo e social é, portanto, a única saída para quem não pretende viver numa cidade (e numa região) desfigurada como engenharia social, espécie de quartinho de despejo da Capital. O Santo André do ano que vem também é o Santo André deste século. É pegar ou perecer. 

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