Caso Tortorello: boataria ou
morte próxima? O que fazer?
DANIEL LIMA - 01/08/2023
Vamos lá: você é jornalista e está diretor de Redação do Diário do Grande ABC naquele último bimestre de 2004. Portanto, há 19 anos. O protagonista da história é o prefeito em terceiro mandato, Luiz Tortorello. Ele acabou de eleger o sucessor, José Auricchio Júnior.
Acontece que em São Caetano inteira, onde Luiz Tortorello dá as cartas políticas e joga de mão popular, espalham-se o que seriam especulações sobre a saúde do prefeito. Ele estaria gravemente adoentado. E com os dias contados, segundo línguas mais invasivas.
Não, ele não estaria doente. Ele tem saúde de ferro. Apenas está descansado após batalhas eleitorais de outubro, elegendo o sucessor.
O que você faria fosse você jornalista e, mais que isso, circunstancialmente, diretor de Redação do Diário do Grande ABC. No caso, você sou eu. Entendeu?
Pois é. Você vai saber em detalhes tudo o que decidi a respeito desse dilema. Sim, um dilema. Publicar especulações envolvendo assunto tão dramático seria irresponsabilidade. Era preciso contar com fontes seguras, dessas que não negam fogo.
Consegui. Três fontes garantidíssimas. Fontes que não se entrecruzavam. Eram de campos diferentes. E complementares.
E o que diziam essas fontes de informações? Que Tortorello estava com o pé na cova. Não chegaria ao fim do ano.
HORA DE DECIDIR
E daí? A responsabilidade de conduzir informações sem causar alarmes bombásticos imperou, acredito. O diagnóstico fatal estava consumado. Mas diagnóstico médico é uma coisa, informação jornalística é outra. A sensibilidade humana não poderia falhar. Havia um intervalo de tempo a separar uma coisa da outra. A imagem, a sensibilidade e o respeito humano ao enfermo não poderiam ser violados.
Era preciso, portanto, tratar o assunto com cautela. Sonegar informações ao público era a pior das alternativas. As especulações só se acentuariam. Informar, portanto, era dever. Sem insinuar o desfecho fatal.
Cuidei pessoalmente das pautas centrais do caso porque as fontes assumiram compromisso de confiança comigo. Sabiam que não haveria vazamento sobre as respectivas origens dos relatos informais.
A equipe de que eu dispunha no Diário do Grande ABC era intensamente produtiva e colaborativa. O que escrevi nos quatro textos que reproduzo abaixo (três em forma de manchetíssimas de edições e um como conteúdo de coluna que assinava) foi uma obra coletiva, porque contava com colaboradores a reforçar as informações indispensáveis.
Se eu fosse você, caro leitor, não perderia um parágrafo sequer do que foi publicado num intervalo de 42 dias. Acho que cumprimos humanisticamente a obrigação de publicar o que devia ser publicado. Luiz Tortorello morreu em 17 de dezembro de 2004. Eu estava num almoço quando uma de minhas fontes me ligou. Do Hospital Albert Einstein.
Afinal, o que se passa com
a saúde do prefeito Tortorello?
Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC -- 06/11/2004
O estado de saúde do prefeito Luiz Tortorello é um grande ponto de interrogação público e uma fonte privada de informações complexas. Estaria o prefeito realmente adoentado, gravemente adoentado, ou a quebra da rotina de comandar o Paço Municipal da cidade de melhor qualidade de vida no Brasil é apenas uma série de coincidências?
Os familiares e os assessores mais próximos de Luiz Tortorello desconversam oficialmente sobre o assunto, mas fazem avaliações reservadas que convergem para o mesmo enredo: o prefeito que acaba de eleger seu sucessor, o ex-diretor de Saúde José Auricchio Júnior, estaria enfrentando momentos difíceis por conta de grave enfermidade supostamente localizada na região estomacal.
A notícia de que Luiz Tortorello está profundamente debilitado deixou de frequentar apenas os corredores do Paço Municipal de São Caetano. Aliás, naquele espaço, o que mais se pratica no dia-a-dia é espécie de programada encenação para dar ares de que a rotina não foi quebrada em momento algum.
Quando se pergunta pelo prefeito, assessores e secretárias indicam com extremo zelo e diplomacia algum compromisso externo, ou mesmo reunião interna inexpugnável.
Em outros tempos, as mesuras não chegavam a esse requinte. A agenda pública supostamente atendida pelo prefeito geralmente não coincide com a presença física do dirigente. Pratica-se um jogo de faz-de-conta teoricamente para amenizar os efeitos da ausência do prefeito reeleito em 2000 com 78% dos votos válidos, o mais expressivo registro eleitoral no Grande ABC que nem mesmo William Dib atingiu neste ano.
VISITA DOMICILIAR
Não bastasse o fato de Luiz Tortorello ausentar-se dos compromissos apontados por seus assessores, a movimentação na residência do prefeito, no bairro Olímpico, desperta suspeitas de que são mais que especulações o que o envolveria fisicamente.
Visitas constantes, especialmente de médicos e paramédicos, acrescentam ares de inquietação ao ainda seletivo grupo de amigos e parentes que teriam acesso a detalhes médicos.
Até mesmo vizinhos mais próximos dizem estranhar a quebra da rotina de Luiz Tortorello. Ele se teria enclausurado em sua residência e recebido visitas pouco comuns ao cotidiano de um prefeito que deveria estar no Paço Municipal.
Sexta à tarde, o próprio irmão de Luiz Tortorello, Antonio Pádua, fez visita domiciliar. Considerando-se que se tratava de um dia útil e, portanto, de expediente no Paço Municipal, a presença de Antonio Pádua não se configura natural.
Principalmente porque até médicos da Prefeitura constaram da relação de visitas mais demoradas ou permanentes. Caso de Mara Cristina Pereira que, depois de uma hora com o prefeito, retirou-se da residência da avenida Lemos Monteiro. Quando se dirigia ao veículo Corsa, a médica observou a presença do fotógrafo do Diário e o inquiriu sobre a motivação do flagrante.
Informada sobre o trabalho jornalístico e, na sequência, indagada sobre o motivo de sua presença, Mara Cristina Pereira confirmou ser médica, mas que sua visita se prendia unicamente a supostos laços de amizade familiar.
Uma outra médica supostamente ligada aos quadros da Prefeitura permaneceu pelo menos durante todo o dia no interior da residência do prefeito. Ao atender a campainha, ela se identificou como Patrícia. Solicitada a autorizar uma entrevista com Luiz Tortorello, a médica supostamente do Programa Saúde da Família confirmou a presença do prefeito, mas negou a possibilidade do trabalho jornalístico.
AGENDA VIRTUAL
Uma hora antes, no Paço Municipal, assessores do gabinete de Luiz Tortorello informaram que o prefeito estivera na Prefeitura, mas que saíra para cumprimento de agenda no Tiro de Guerra. Nada que se confirmasse com uma visita no local, a menos de mil metros do Paço. Tortorello foi representado na solenidade pelo chefe de gabinete, Alfredo Frignani. Também participou o presidente da Câmara de Vereadores, Paulo Pinheiro.
Já há pelo menos dois meses o Diário recebeu informações que dariam conta da possível precariedade de saúde de Luiz Tortorello. Observadores atentos da cena política de São Caetano estranharam a ausência de Tortorello na maioria dos comícios de José Auricchio Júnior na segunda quinzena de setembro, quando a propagada debilidade física do prefeito teria se acentuado.
O Diário preferiu aguardar novos detalhes sobre o quadro de saúde do prefeito porque as informações eram rarefeitas e poderiam produzir estragos político-eleitorais, já que o assunto coincidentemente emergiu durante a fase mais calorosa da disputa pelo Paço.
A decisão de transformar série de indícios em material jornalístico se deve ao interesse social que a atuação do prefeito de São Caetano desperta e também à constatação de que, superada a cronologia eleitoral, os ruídos possivelmente especulativos cederam espaços a uma espécie de filtragem cada vez mais seletiva e simétrica de informações.
No momento em que secretários municipais admitem em conversas informais a gravidade do quadro e que, mesmo familiares, discreta e reservadamente, não negariam ambiente de intensa emotividade por força de eventuais diagnósticos realizados no Hospital Albert Einstein, o Diário decidiu levar a público a notícia.
DESDOBRAMENTOS
Além do componente especificamente social que torna Luiz Tortorello objeto de informação jornalística, os eventuais desdobramentos de informações que convergem para a possibilidade de agravamento do quadro de saúde podem desencadear derivações político-administrativas.
Afinal, o prefeito eleito José Auricchio integra o grupo que tem Luiz Tortorello como principal líder político do município. Isso significa que qualquer cenário que retire Tortorello do cotidiano da vida pública de São Caetano poderia gerar série de acontecimentos que fugiriam do esquadrinhamento previamente concertado após a definição de que, entre muitos concorrentes, seria o então diretor de Saúde o herdeiro do prestígio do prefeito.
Desta forma, o quadro clínico de Luiz Tortorello não se resume à sua própria identidade pessoal e ao interesse específico de familiares. Depois de 12 anos no comando de São Caetano, quando colecionou três mandatos a partir de 1989, com intervalo entre 1993 e 1996, a representatividade de Luiz Tortorello como dirigente público transcende o exclusivismo pessoal que diagnósticos médicos supostamente preocupantes poderiam sugerir.
A linha divisória entre pessoa física e homem público é reconhecidamente tênue e, por isso mesmo, precisa ser tratada com absoluta segurança ética e informativa. E, quando se chega a esse ponto, ao ponto em que a especulação inicial se diluiu e ganha o formato de um conjunto consistente de informações, a ética só se mantém integralmente como bem público se não se submerge à omissão.
Caso Tortorello
DANIEL LIMA -- 10/11/2004
Gostem ou não Luiz Tortorello e seus familiares, a enfermidade que abate o prefeito de São Caetano é pauta jornalística sim. E faz tempo. Tanto tempo, mas tanto tempo, mais precisamente desde setembro, e somente não constou das páginas deste jornal antes da edição do último sábado porque houve cauteloso aparato de desbastamento de informações para permitir enunciados editoriais criteriosos, éticos e comunitariamente responsáveis.
O mesmo prefeito que inaugura uma obra, que cede a imagem para uma campanha de propaganda de seus feitos administrativos, que esbraveja contra a invasão de seu território por moradores da vizinhança que vão lhe encarecer a rede de saúde, é o prefeito que, enfermo, ocupa as páginas do jornal. É impossível concatenar cobertura jornalística diferente ao prefeito Luiz Tortorello e ao enfermo Luiz Tortorello. Ambos se associam como figuras públicas. Aliás, o segundo, o privado, simplesmente inexiste para efeitos jornalísticos.
Fosse um anônimo como milhares de brasileiros que carregam o mesmo tipo de doença, estejam certos todos que Luiz Tortorello não constaria da pauta de veículo de comunicação algum.
É obrigação do jornalismo comprometido com a sociedade retratar a realidade. E a realidade, confirmada pelo próprio filho, o deputado Marquinho Tortorello, é que o prefeito de São Caetano está adoentado e em tratamento.
DOIS ESPAÇOS
Respeitamos profundamente os momentos de tensão da família, dos assessores, dos amigos. Doença em família sempre é motivo de preocupação. E reconhecemos, também, que ao sair do espaço privado para a esfera pública, o incômodo sobressalta. Daí, entretanto, ter a pretensão de circunscrever o problema ao desassossego familiar vai uma grande diferença.
Este Diário tem tomado todos os procedimentos para não ser invasivo, mas não conseguiu encontrar a fórmula mágica que desative o mecanismo de acompanhamento do prefeito Luiz Tortorello. Os leitores, eleitores e contribuintes de São Caetano, para não dizer da região como um todo, querem saber a marcha dessa apuração da verdade.
Se foi afirmado pelo próprio filho que o prefeito está adoentado e se as informações quanto a gravidade são controversas, que outra fórmula para aferir os fatos senão acompanhar os passos do prefeito?
Sorte do prefeito e de seus familiares que este Diário pratica jornalismo comportado. Mas isso não garante que outros veículos não se dobrem ao sensacionalismo. Seria péssimo para o restabelecimento clínico de Tortorello. A divulgação exclusiva de informação que pulava de galho em galho semântico foi analisada com cuidado e critério.
CONDICIONALIDADES
A condição física e emocional do prefeito, dos familiares e mesmo dos amigos mais próximos foi levada em conta. Aliás, pesou preponderantemente na divulgação, porque um verdadeiro arrastão de versões ameaçava engolfar a todos.
A pior maneira de lidar com a verdade é subestimar os boatos. A verdade, por mais dolorida que seja, não pode se subordinar a tergiversações. A verdade da doença do prefeito Luiz Tortorello está confirmada. Ou seja: não é mais boato.
Agora, a meta é definir a extensão político-administrativa do problema. O cotidiano do prefeito é uma sabatina que ele terá de enfrentar. Quanto mais tempo passar no Bairro Olímpico, onde reside, mais inquietante se constatará o quadro clínico.
Não passa pela cabeça de ninguém que a especificidade do problema de saúde de Luiz Tortorello seja esmiuçada aos meios de comunicação. Exceto se o próprio prefeito assim se dispuser. E ninguém nem de longe pode sugerir tamanha arbitrariedade. Como também não se pode cobrar deste Diário, depois de toda a cautela que marcou sua incursão no caso, que, de repente, retire do noticiário esse componente mais que público da vida do prefeito de São Caetano. Trata-se de peça importantíssima do tabuleiro de transposição administrativa no Paço Municipal. Quando não, o próprio tabuleiro.
A emotividade vai caracterizar o desenrolar dos acontecimentos envolvendo o prefeito de São Caetano. Tanto que já se registraram alguns lances que este Diário prefere não transcrever em respeito ao próprio contexto em que se situou. Haveremos todos de compreender eventuais exageros. Provavelmente lamentaremos muito esses desvios porque a individualidade pública está sendo subestimada em nome da individualidade pessoal.
Esperamos, sinceramente, que a família Tortorello não precise recorrer ao arrependimento por fazer reparos a um trabalho jornalístico, repetimos, ético e socialmente responsável. Talvez lhe falte a amarga experiência de lidar com tabloides sensacionalistas do Primeiro Mundo, especialmente britânicos.
Estado de saúde de
Tortorello agora é mais grave
Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC -- 24/11/2004
O prefeito de São Caetano, Luiz Tortorello (PTB), está internado há uma semana no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O quadro clínico é dramático. O Diário assume essa informação relevante para a atividade econômica e pública de São Caetano depois de ouvir três fontes de informação que acompanham atentamente a saúde do prefeito cujo mandato se encerra no próximo dia 31 de dezembro.
Familiares evitam comentar o assunto, mas a internação do chefe do Executivo e a extensão da gravidade dos problemas intestinais que o acometem não deixam margem a dúvida, entre outras razões porque parte do tratamento se verifica com o uso de aparelhos respiratórios.
A direção do Hospital Albert Einstein não confirma a internação do prefeito de São Caetano, mas a medida é puramente de ordem ética. Sempre em situações de pacientes com notoriedade, cujos familiares solicitam discrição, o comando do hospital utiliza ferramental específico de dissimulação. A identidade de Luiz Tortorello foi retirada da lista pública de pacientes e os familiares e amigos mais próximos só têm acesso às dependências por meio de senha específica.
Também assessores e secretários municipais de São Caetano evitam comentários sobre as condições de saúde do prefeito. Procura-se cercar de absoluto sigilo a situação do enfermo. Entretanto, não há dúvida alguma sobre a deterioração clínica nos últimos 10 dias. Luiz Tortorello não está reagindo ao tratamento a que se submete já há quase dois meses. A perda de peso é visível e os efeitos colaterais já se manifestam.
Embora a morbidez do tema seja constrangedora, admite-se até a possibilidade de o prefeito não completar seu terceiro mandato à frente do município de melhor qualidade de vida no Brasil. Tortorello foi reeleito em 2000 com a maior votação proporcional que se conhece na história dos municípios do Grande ABC, quando obteve 78% dos votos válidos.
Procurado para falar sobre a possibilidade de não contar com Tortorello em sua posse, por morte ou impraticabilidade de locomoção, o prefeito eleito José Auricchio Júnior (PTB) preferiu mandar recado por meio de sua assessoria: não comentará o assunto.
A enfermidade de Luiz Tortorello é interpretada como elemento a mais de complicação à sucessão de José Auricchio. Mas também é avaliada como enorme possibilidade de autonomia do prefeito eleito.
Trabalha-se uma das vertentes de que a ausência de Tortorello é inescapável e que, portanto, provocaria rearranjos nas forças de sustentação do Paço Municipal. Outros, mais precavidos ou otimistas, preferem falar de Tortorello no presente, como poderoso condutor da campanha de Auricchio e, recuperado, atuando como amálgama paralelo da administração pública.
Nem sobre essas variáveis José Auricchio Júnior se dispõe a conversar. Sabe-se, entretanto, por assessores informais, que o prefeito eleito tem preferido postergar eventuais convites para a definição do secretariado e de outros postos-chaves de São Caetano, na expectativa de que o quadro clínico de Luiz Tortorello apresente definição em curto prazo.
Articuladores da campanha de José Auricchio afirmam que o prefeito eleito tem dificuldades em teorizar sobre o que será sua administração com Luiz Tortorello entregue a tratamento de saúde mais prolongado e, principalmente, vítima fatal da enfermidade.
Auricchio teria afirmado que projetar medidas sob a condicionalidade de qualquer uma das duas situações seria desagradável e pouco ético. Ele preferiria - e aí o prefeito eleito se pronuncia sem contratempo - que Luiz Tortorello esteja em sua posse tão cheio de vida quanto há pouco mais de dois meses, quando o apoiava na campanha eleitoral.
O Diário transformou em manchete principal de primeira página em 6 de novembro a revelação de que Tortorello poderia estar acometido de doença estomacal. A decisão de veicular a informação foi tomada depois de se constatar que havia onda de boatos sobre a enfermidade do prefeito.
Falava-se de tudo, inclusive que Tortorello estaria rigorosamente saudável. A notícia só foi veiculada depois que o Diário obteve de fontes seguras e próximas aos familiares que o quadro clínico do prefeito requeria sérios cuidados.
O Diário resolveu, então, investigar mais de perto a rotina do prefeito. Postou repórter e fotógrafo nas imediações da residência de Tortorello, no bairro Olímpico, em São Caetano, e se deslocou também ao Paço Municipal. A movimentação de médicos e paramédicos no domicílio do prefeito e a quebra da rotina administrativa no Paço Municipal confirmaram suspeitas de que Luiz Tortorello não obedecia a regularidade de agenda convencional de chefe do Executivo de um município cuja transposição de comando exige série de encontros.
A manchete de primeira página daquela edição de sábado foi sequenciada por novas abordagens nos dias seguintes até que, na edição de quinta-feira, 11 de novembro, o Diário estampou uma nova notícia sobre Tortorello, agora de entrevista do prefeito fruto de negociação com o Diário.
Tratou-se de trégua de dois dias sugerida pelo irmão Antonio de Pádua Tortorello, depois da confirmação de que o prefeito estava adoentado. Nesse breve período, o jornal desativou o esquema de observação dos passos do prefeito e em troca recebeu a garantia de que o próprio prefeito transmitiria dados sobre seu estado clínico.
Na entrevista ao Diário, um abatido Tortorello disse ser vítima de hepatite C. Estava decidido a eliminar a possibilidade de que não nutriria projetos políticos depois de deixar o Paço Municipal, em janeiro. Tortorello garantiu que seu problema de saúde é contornável e reiterou intenções de se preparar para disputar uma vaga a deputado federal em 2006.
Também fez abordagens sobre a administração de José Auricchio Júnior, garantindo que não pretenderia se interpor entre o prefeito eleito e o secretariado. "Posso ajudar com ideias. Quero ficar livre para cuidar da candidatura em 2006", afirmou o prefeito.
A postura do Diário em relação à situação do prefeito de São Caetano volta a se alterar, depois de praticamente duas semanas de completo afrouxamento do sistema de observação que se seguiu à entrevista de Luiz Tortorello.
A importância de relatar com absoluta confiabilidade os desdobramentos da internação médica é medida de absoluto respeito ao chefe do Executivo e de responsabilidade social deste veículo, sobretudo para impedir a massificação de informações divorciadas da situação real.
O Diário conta com fontes absolutamente confiáveis para sustentar noticiário que demarque a enfermidade do prefeito como diagnóstico jornalístico a salvo de especulações nem sempre respeitáveis, quer no sentido de que se pintam cores excessivamente róseas, quer porque se projetam sombras exageradamente obscuras.
A gravidade do estado de saúde de Luiz Tortorello é uma má notícia, mas é um fato inquestionável, por mais discreto e eficiente que seja o padrão de blindagem do Hospital Albert Einstein.
Tortorello divide São
Caetano em duas partes
Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC --18/12/2004
São Caetano não será mais a mesma sem a presença física de Luiz Tortorello. Provavelmente não o seria também em vida, embora com menos intensidade, durante os quatro anos de mandato de José Auricchio Júnior. Com Tortorello na reserva imediata do comando do Paço de São Caetano, a institucionalidade do município de melhor qualidade de vida do país já seria diferente dos últimos oito anos.
Nesse período ele esteve soberano no gabinete proporcionalmente mais rico do poder público do Grande ABC. Com a morte de Luiz Tortorello, tudo indica que um rearranjo institucional, político e partidário será inexorável. Aí é que todos poderão compreender a exata dimensão do legado do prefeito.
Em princípio, independentemente do que venha a se tornar São Caetano, a morte de Luiz Tortorello significa o fim de um ciclo sobre o qual, para o bem ou para o mal, a importância do prefeito é imensurável. Goste-se ou não de Tortorello, o fato é que ele deixou marcas indeléveis.
O temperamento explosivo, os ataques de estrelismo, o enclausuramento municipalista, os arroubos de autoritarismo, tudo isso e muito mais provavelmente jamais serão apontados como contrapontos de uma personalidade fértil na capacidade de criar fatos, de tornar o dia seguinte diferente do dia anterior, de lançar-se nos braços de um povo que conquistou exatamente porque a empatia pública diferia do humor nem sempre agradável dos encontros privados.
DUALIDADE
Tortorello era um homem dualístico. Encantava em público, irritava no privado. Trocava o sorriso aberto, companheiro e amistoso dos encontros com a população pela dureza dos gestos e pelo histrionismo de reações de gabinete. Sua voz metálica, impositiva, afinada nos tempos em que atuava como juiz de Direito, prevalecia em qualquer ambiente de que participasse.
Quando no comando, gerava respeito, temor e silêncio dos interlocutores. Quando eventualmente em situação de figurante hierárquico, causava desconforto porque não tinha por costume aceitar pontos de vista que o contrariassem.
Governar São Caetano durante 12 anos – oito dos quais em mandatos sequenciais – e, mais que isso, reduzir a quase pó o poder de articulação de seu criador, o também triprefeito Walter Braido, só poderiam ser mesmo uma obra de alguém ousado, destemido, intrépido, suficientemente audacioso para, num primeiro ciclo, juntar-se às forças tradicionais da política local e depois, gradualmente, constituir seu próprio exército para alcançar absoluto controle institucional.
A intempestuosidade dos gestos era apenas aparentemente desconexa. Tortorello amarrava bem as pontas do novelo estratégico. Verdade que os passos táticos causavam estragos, mas nada que o impedisse de atingir as metas.
Principalmente em São Caetano. Conhecia cada palmo do que se convencionou chamar de governabilidade. Tortorello era a própria governabilidade de São Caetano. Era o eixo em torno do qual todos gravitavam. O humor de Tortorello ao adentrar o Paço Municipal decidia o ambiente que se respiraria no resto do dia.
A biografia político-administrativa de Luiz Tortorello tem tentáculos contraditórios, reflexo de sua própria personalidade.
A São Caetano que ganhou as manchetes das principais mídias nacionais e mesmo internacionais desde 1997, quando ele assumiu a Prefeitura, não é uma São Caetano diferente da do passado. Tortorello recebeu herança sociológica e urbanística pronta. São Caetano é uma construção de décadas.
HISTÓRIA EXPLICA
Bafejada pela cultura superior de um povo predominantemente de imigrantes, embalada pelos limites seletivos de um território de apenas 15 quilômetros quadrados e por uma industrialização cujos recursos tributários asseguraram investimentos públicos que a instalaram a léguas de distância de qualidade de vida de vizinhos de maior porte e de contrastes sociais acentuados, São Caetano há muito tempo é uma licença poética na Região Metropolitana de São Paulo.
A virtude de Luiz Tortorello, e nesse ponto o senso de oportunismo se manifestou com brilho típico de quem jamais se conformou com o prato feito, é que a São Caetano construída ao longo de décadas era tão verdadeira quanto a de seus oito anos de mandato.
A diferença é que Tortorello a transformou em extraordinária verdade. Deu-lhe polimento urbanístico com obras físicas em que a estética transcendia o conservadorismo de uma população ávida por novidades que lustrassem a própria autoestima.
Com a mais generosa proporção de recursos arrecadados por habitantes no Estado de São Paulo, perdendo apenas para a nababesca Paulínia, São Caetano é um convite ao banqueteamento político-administrativo. Por mais demandas que se sobreponham, jamais um bom administrador público perderá horas de sono quando se trata de gerenciar São Caetano. E Luiz Tortorello soube como poucos antecessores associar governança qualificada do ponto de vista orçamentário com imagem institucional.
Os prêmios conquistados por São Caetano nos últimos anos, tanto no âmbito fiscal quanto de indicadores de qualidade de vida, coincidiram com o modismo de ranqueamentos.
No passado, até porque os recursos não passavam pelo crivo da Lei de Responsabilidade Fiscal, a gestão pública era rigorosamente uma caixa preta. Mais que isso: os dados orçamentários eram quase que propriedade do prefeito de plantão. As consequências de eventuais despautérios não conheciam penalidades como as previstas pela legislação atual. Governar municípios e Estados brasileiros antes da LRF era um mar de facilidades ao abuso sem risco.
PRÊMIOS DIVERSOS
A disseminação da informática e, na sequência, da Internet, democratizou a comunicação. Principalmente ao permitir facilidades de captação de informações estatísticas que, individualizadas ou cruzadas com outros indicadores, transformaram em ferramental de marketing o que no passado se resumia a números inanimados.
A tecnologia deu vida aos numerais. Não faltam alquimistas que impõem acrobacias semânticas para locupletação estatística.
O individualismo de Luiz Tortorello contribuiu para o anestesiamento de qualquer tentativa de consolidação de uma rede de cooperação estratégica entre os municípios do Grande ABC.
O discurso de uma região integracionista que o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos esgrimia com rompantes de ufanismo e que encontrava em Celso Daniel a estrela mais expressiva foi simplesmente ignorado por Luiz Tortorello.
Apertadíssimo pelos números orçamentários de uma Prefeitura em dificuldades financeiras quando assumiu o cargo em janeiro de 1997, Tortorello tratou de agir com rapidez em vez de chorar sobre o leite derramado dos repasses decadentes do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). O que fez Luiz Tortorello para retirar São Caetano do aperto financeiro? A cidade virou uma nova Barueri, com o rebaixamento radical de alíquotas do ISS (Imposto Sobre Serviços).
Trouxe da capital tão próxima grandes corporações prestadoras de serviços em informática, em finanças, em consórcios. Enquanto o prefeito Celso Pitta engrossava o coro da integração tributária metropolitana e gritava contra a guerra fiscal do ISS, Tortorello simplesmente implantava medidas legais.
Mas jamais as admitiu publicamente como uma rasteira nos prefeitos do Grande ABC. E se irritava se o interlocutor ousasse fazer menção ao caráter belicista de atração de empresas pelo viés do redutor de custo tributário. Tratava-se, segundo sua subjetividade interpretativa, de estratégia de desenvolvimento econômico.
SOLITARISMO
Ao romper qualquer possibilidade de compartilhar planejamento regional no Consórcio de Prefeitos, na Câmara Regional e também na Agência de Desenvolvimento Econômico, Luiz Tortorello se afastou deliberadamente do jogo integracionista. Tanto que foram poucas as vezes em que participou de reuniões do Consórcio de Prefeitos. Exceto quando, finalmente, decidiu assumir a presidência rotativa durante um ano.
Mesmo assim, o mandato foi tímido, como dos antecessores e sucessores. Nesse ponto o prefeito de São Caetano contava com ampla razão: o organismo burocrático demais era um iceberg no caminho de alguém, como ele, que parecia correr contra o tempo.
O estoque de análise sobre os anos em que particularmente São Caetano foi sacudida pela força da natureza chamada Luiz Olinto Tortorello ainda contemplará muitos capítulos. As seguidas conquistas nos Jogos Abertos do Interior são marca registrada de dirigente público que se sensibilizava de fato com a força magnetizadora do esporte.
Já o sucesso do São Caetano nos últimos anos, depois que ganhou gestão profissional, não tem qualquer relação direta com perfil de esportista do prefeito.
Mais que isso: somente depois de sair da área de domínio extremamente passional de Tortorello o futebol profissional de São Caetano resplandeceu para o mundo inteiro aplaudir. Nesse período ele foi apenas um torcedor privilegiado e especial. As conquistas, entretanto, foram capitalizadas como mais uma obra de engenharia de competência.
O choque da retirada de cena de Luiz Tortorello provavelmente seja inigualável na história de São Caetano. O município que se preparou para o afastamento constitucional do prefeito descobre-se enviuvado com o desaparecimento de alguém controverso, contraditório e polêmico.
Uma imagem que contrasta em relação ao conservadorismo de um município esculpido com a operosidade secular de europeus, principalmente italianos, origem de um Tortorello que veio do interior de São Paulo e se instalou em São Caetano como legítimo filho da terra. Nada surpreendente para quem tinha o poder da sedução popular.
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