Sociedade

A DELICADEZA DE
LIDAR COM A MORTE

  DANIEL LIMA - 19/08/2024

Tenho uma fraqueza emocional derivada de  raríssima ramificação de predomínio pessoal sobre o profissional: não sei lidar com a morte morrida de quem não admiro – e sofro ao escrever sobre a morte morrida de quem admiro. Lidar com a morte é sempre complicado para mim. Sinto-me no fio da navalha. Não deveria ser assim. Está aí a morte de Silvio Santos para comprovar.

Em inúmeras situações, descartei qualquer texto sobre mortos que não admirava. Tudo porque não lido bem com a hipocrisia do politicamente correto. Por isso sempre cometi o pecado jornalístico da ausência de textos sobre a morte morrida de quem não admiro.

A morte de Silvio Santos não me incomoda como fonte de operação profissional porque divido um dos maiores protagonistas da vida nacional em partes distintas.

Quase não escrevo sobre a morte morrida de Silvio Santos. Há tanta gente que escreveu e continua a escrever que pareceria  transbordamento do excesso.  Além disso, sou regionalista até na morte morrida. Não daria conta de escrever sobre morte morrida além do território da região diante da constatação de que a cada dia lá se vai alguém famoso embora.

MORTE DIFERENTE

Só decidi escrever sobre a morte morrida de Silvio Santos por causa da edição de ontem da Folha de S. Paulo. Geralmente os mortos de morte morrida ou morte matada dormem em paz nas páginas de jornais, com louvações sem fim. Com Silvio Santos foi diferente nas páginas da Folha de  S. Paulo.  

Antes de escrever um pouco sobre Silvio Santos, insisto em revelar minha relação pessoal e profissional com a morte morrida de quem morreu há poucas horas ou mesmo , em situações diversas, já faz algum tempo.

Entendo o significado estrutural de morte morrida de forma abrangente, seja morte morrida ou morte matada. Na minha cabeça é a mesma coisa. O critério de eventualmente ou não escrever sobre morte morrida passa pelo rigor de admiração profissional. Estou me referindo exclusivamente a personagens da vida pública, mesmo que modestamente pública, mas fora do quadradismo comum de vida privada, assunto estritamente pessoal.

Vou citar dois exemplos de comportamentos distintos que terceiros me impactaram. 

DOIS CASOS

Poderia brincar no parágrafo anterior se acrescentasse o fato de que estou vivíssimo, porque seria inexorável que remetesse minha memória ao passado recente em que a morte aparece no meu radar pessoal e profissional.

Sei o que é flertar com a morte matada, que também é morte morrida. E sei o que fizeram comigo logo após aquele tiro num pet shop. A mídia me tratou com discriminação, não apurou absolutamente nada (no que coincidiu em deficiência de inações da Polícia)  mas lançou dúvidas nas entrelinhas e também nos títulos sobre o caso.

A apuração da morte matada de terceiros não interessa a boa parte da mídia viciadíssima no aqui e agora e em obter audiência. Quando esse terceiro tem alguma relação crítica com essa mídia, a situação é ainda pior. Não é mesmo, Diário do Grande ABC? Mas retomemos o centro dessa viagem à morte morrida.

O primeiro caso deu-se em dezembro de 2004 com a morte morrida do então prefeito de São Caetano,  Luiz Tortorello. Estava à frente da Redação do Diário do Grande ABC. Produzi pessoalmente série de matérias que trataram desde a internação até a morte do prefeito. Tudo está nos arquivos do Diário do Grande ABC. Foram relatos factuais, restritos àquela momento, sem recorrer, portanto, a qualquer rescaldo da atuação de Tortorello como prefeito.

AGONIA DE TORTORELLO

Tortorello era prefeito de São Caetano e as informações precisavam ser levadas ao público. A família procurou esconder. Tratamos do caso com seriedade e respeito. Não deixamos de publicar o que tinha de ser publicado.

Naquele caso, tratei os últimos dias de Tortorello como jornalista impermeável à emotividade pessoal. Havia uma missão a ser cumprida. A boataria exigia esclarecimento. Quem for aos arquivos do Diário do Grande ABC vai constatar essa verdade. Não sei se faria algo semelhante hoje, mais velho que estou, mais vulnerável após o tiro. É provável que o fizesse. Não ultrapassei a linha de fundo do humanismo.  

AIDAN E REDES SOCIAIS

A outra situação se deu mais recentemente, também antes do tiro, quando o então ex-prefeito de Santo André, Aidan Ravin, estava internado com Covid. Havia muito burburinho sobre o estado de saúde daquele que foi provavelmente a autoridade pública de carisma mais contagiante da história política da região.

O artigo que produzi foi mal-interpretado por um parente próximo de Aidan Ravin nas redes sociais. Sofri ataques absurdos. A finalidade daquele texto era sensibilizar a família de Aidan Ravin sobre a importância da comunicação. Havia uma demanda popular a ser atendida.  Tanto estava certo que pouco tempo depois, pós-tiro, solicitei a meus familiares, dois dos quais jornalistas, que emitissem notas informativas sobre meu estado de saúde. Só pude ver o resultado 30 dias depois do tiro e da internação, quando comecei a entender o que se passou comigo naquele petshop.

Quando Aidan Ravin morreu de morte morrida, decidi que não publicaria uma linha sequer. E não publiquei em respeito ao morto morrido. Refleti muito antes de decidir nada escrever. Se produzisse um texto sobre Aidan Ravin, não seria o texto de quem o admirava, porque não o admirava por ter estado à frente da Prefeitura de Santo André. Muito pelo contrário.

Passados alguns anos, não transijo no sentimento espiritual ao afirmar que Aidan Ravin foi um prefeito longe do que Santo André exigiria. Como tantos outros que o antecederam e também o sucederam. Inclusive o atual, bom de voto, ruim de governo.

CELSO DANIEL

Se alguém vasculhar o acervo desta publicação acabará notando que não faltam mortos que morreram de morte morrida ou mesmo matada, o que é a mesma coisa em termos de finitude. O caso Celso Daniel é o mais dramático.

São  inúmeros os mortos que foram reverenciados aqui, porque achei por bem fazê-lo. O desfile de mortos morridos sobre os quais escrevi como jornalista é vasto. Outros que também admirava acabaram não ganhando espaço porque devo ter estado com pautas embriagadoras, mas sem tê-los aqui os vejo todos os dias como exemplos a serem seguidos.

A morte de Silvio Santos foi registrada na edição de ontem da Folha de S. Paulo sob aspectos que outros mortos morridos e famosos não tiveram.  Não quero crer que Silvio Santos foi dissecado como Senor Abravanel porque guardava relações com o Regime Militar e mais tarde com todos os presidentes civis eleitos no País.

PADRÃO RIGOROSO

Não quero crer mas não me convenço disso. As análises foram bastante ácidas. Respeito todos os trabalhos, porque é um direito sagrado dos jornalistas exumarem a vida do empresário Senor Abravanel e de Silvio Santos, o maior e mais carismático dono de auditório da história da televisão brasileira.

Fiquei com inveja dos analistas da Folha de S. Paulo, uma inveja controversa a mim mesmo, porque ambígua em sentimentos.

Eles, os jornalistas da Folha de S. Paulo, fizeram o que todo jornalista deveria fazer quando da morte morrida de alguma celebridade nacional, independentemente de terem a particularidade de Senor Abravanel e a universalidade de Silvio Santos. Meu sentimento espiritual acima do profissional não permitiria tanta invasão de compartimentos do morto morrido.

SENOR E SILVIO

Tirar Silvio Santos brilhante como comunicador e introduzi-lo num mundo mais amplo e suscetível a escrutínio rigoroso é politicamente incorreto, mas, contrariando a mim mesmo e ao pensamento médio dos leitores, entendo que não é situação de descredenciamento crítico. Desde que, claro, a raiz da iniciativa não seja nada que derive do jornalismo como atividade sagrada, não como militância ideológica.

Em seguida, reproduzo o texto que publiquei em junho de 2020 sobre a situação de Aidan Ravin. O ex-prefeito de Santo André acabou morrendo em 10 de janeiro de 2021, ou seja, seis meses depois. Me deram um tiro no rosto à queima-roupa menos de um mês depois.

Também acrescento a este material uma das matérias publicadas ontem na edição da  Folha de São Paulo. Sugiro aos leitores que comparem o que escrevi em 2020 sobre  Aidan Ravin e o que a Folha publicou ontem. Acho que fui generoso. Não poderia ter sido omisso sobre a atuação de Aidan Ravin como prefeito. E mesmo assim o fiz com discrição. 

 

Afinal de contas, Aidan Ravin

está vivo ou morreu mesmo?

 DANIEL LIMA - 25/06/2020

 

Quero saber e tenho o direito de saber: Aidan Ravin está morto ou está vivo? Aidan Ravin não seria um morto qualquer. E tampouco um vivo a mais. O que não pode é continuar a morrer e a ressuscitar a cada hora nas redes sociais. Está assim desde anteontem. Houve sentenças pretensamente definitivas sobre a morte do ex-prefeito de Santo André. E negativas peremptórias. Aidan já teria ido desta para outra. Como também mandou às favas outra e continua nesta. Quem dorme com um barulho deste?

Até a mulher dele, Denise, entrou na fita, com mensagem de áudio contida de alívio. O marido estaria em plena recuperação. O irmão confirma. Confirma é força de expressão. Por mais que acredite neles, também desconfio deles.

Aidan não é um candidato qualquer a ser contabilizado pelo vírus chinês. Aidan é um prato cheio para engrossar a lista de vítimas fatais. Aidan teria comorbidades, se aproxima dos 60 anos e se submeteu a cirurgia bariátrica para reduzir a pança. Aidan está na lista preferencial do Coronavírus. Só faltava ser negro e pobre. E um molambento também. Os molambentos dos sem-teto não contam com a misericórdia chinesa.

TROCANDO CONSOANTES

Ando tão atordoado com as idas e vindas de Aidan Ravin morto e vivo que até a grafia do nome dele escrevi incorretamente nas redes sociais que frequento. Troquei o “n” pelo “m” no nome e o “m” pelo “n” no sobrenome. Estou ficando maluco. Tão maluco que a troca da troca também está errada. Aidan Ravin se escreve assim. Como nos parágrafos anteriores. Portanto, qualquer variável é ignorância ou descuido. No meu caso, é embaralhamento mesmo.

Só quem é jornalista entende o que se passa comigo nesse vai-e-vem fúnebre e renascedor de Aidan Ravin. O homem que a pandemia já teria levado, mas que a família nega ter sido levado, é candidato a vice-prefeito na chapa de Ailton Lima em Santo André. Já especulei comigo mesmo e com alguns amigos sobre as consequências de Aidan Ravin morto. E também de Aidan Ravin vivo.

Sei que não pega bem revelar essas coisas, mas seria pior ainda se as mantivesse segregada a um grupinho, como se nenhuma maledicência houvesse sido mencionada.

INTERESSANTE VIVO OU MORTO

Vivo ou morto, morto ou vivo, Aidan Ravin interessa além da própria vida e da própria morte. Político na ativa, mesmo que no banco de reservas, é sempre motivo à especulação eleitoral. Ainda mais quando está no bico do corvo, segundo as más línguas.

Há muita solidariedade, muita reza, muito tudo pela vida de Aidan Ravin. Como cristão e um poço de bondade faço parte dessa turma fervorosa. Mas é impossível desarmar-me como jornalista. Fingir que nada aconteceria no futuro com Aidan vivo ou Aidan morto.

Fiz algumas avaliações, como disse, imaginando o que o prefeito Paulinho Serra, candidato à reeleição, estaria pensando sobre a possibilidade de ficar sem Aidan Ravin como alvo de ataques. Aidan é um prato cheio. Ainda outro dia uma juíza de primeira instância de Santo André o condenou a 20 anos de reclusão por causa do escândalo do Semasa.

Que prefeito de olho na manutenção do cargo negaria objetivamente que quer Aidan vivo como alvo de mensagens que atingiriam em cheio o candidato Ailton Lima?

Ou seja: cheguei à conclusão que Paulinho Serra bem que poderia ir ao hospital onde Aidan Ravin construiu uma imensa interrogação sobre o próprio paradeiro da alma. Paulinho Serra quer Aidan Ravin livre da pandemia. Saltitante. Feliz. Pronto para a batalha. Leve-lhe flores, portanto. Quem sabe, chocolates?

SOBREVIVENTE INCÔMODO

Resta saber se é mesmo uma boa ideia Aidan Ravin liberto da doença, recuperado e disposto a percorrer principalmente a periferia na garimpagem de voto para retornar como vice ao endereço em que esteve por quatro anos como titular.

Todo o mundo sabe que Aidan Ravin é um espetáculo de carisma. Está certo que a obesidade o tornava mais popular, mais simpático, mas ainda assim Aidan conta com corpanzil apropriado à sedução que começa na cara sempre alegre e nas passadas largas.

Aidan sobrevivente do Coronavírus e mesmo ameaçado de prisão é uma força da natureza política que seduz muita gente. Principalmente da periferia onde, como médico obstetra, fez tantos partos que capturou o coração das mães. Elas o homenageiam com o batismo de seu nome nas crianças saídas do ventre. Talvez seja lenda a quantidade medida em quatro dígitos.

HERÓI DA RESISTÊNCIA

Aidan vivo após dias e dias de expectativas sombrias tenderia a virar espécie de herói da resistência, reduzindo a carga de rejeição que passou a somar desde que deixou a Prefeitura. Aidan perdeu muito eleitorado que o via como um novo Newton Brandão, também médico, três vezes prefeito de Santo André. Com a vantagem de que teria mais empatia popular.

Na vitória contra o petista Vanderlei Siraque, em 2008, Aidan Ravin foi visto como um azougue. As redes sociais mal existiam. Aidan ralou mesmo como andarilho. Transbordava simpatia. As feiras livres que o tinham como visitante em busca de votos propiciavam catarse. A mulherada não lhe dava sossego. E Aidan sabia como seduzi-las ao voto.

Vanderlei Siraque, mais sisudo, foi aconselhado a desaparecer do entorno das andanças de Aidan Ravin. O petista que por menos de dois pontos percentuais de votos não se garantiu no Paço Municipal no primeiro turno, foi impactado no turno final. Perdeu a eleição mais ganha da história. Escrevi uma análise com um título malvisto por alguns, condenado por outros, mas que retratava a realidade: “A zebra de branco”.

DERROTAS ELEITORAIS

A diferença entre aquele Aidan e o Aidan que poderá sair do hospital com vida é que o desgaste popular o atingiu e o tornou derrotado em todas as disputas sequenciais. Mas Aidan conta com uma memória eleitoral nada desprezível. Por isso é candidato a vice-prefeito na chapa de Ailton Lima. Resta saber se, com Aidan, Ailton Lima ganha mais votos ou perde mais votos. Paulinho Serra está pronto para explorar esse calcanhar de Aquiles.

Mas há uma variável que confesso também explorei em alguns contatos feitos ontem na medida em que o ziguezague de informações sobre a saúde de Aidan Ravin pipocava no WhatsApp.

Valeria Aidan mais morto do que vivo para uma disputa eleitoral mais acirrada em Santo André?

Vou explicar: se Aidan Ravin bater as botas (desculpe a expressão, que não é desrespeitosa, mas apenas a transposição de algo que poderia virar hashtag nas redes sociais), o que aconteceria? A solução imediata, vista como nitroglicerina pura às pretensões de reeleição de Paulinho Serra, seria a substituição do morto pela viúva viva, Denise Ravin, cuja permeabilidade social, como ex-primeira dama, teria enternecido as classes mais populares.

Denise seria um Aidan de saias. Não teria nada a construir em forma de imagem, porque é a própria imagem da mulher que se preocupa com os menos abastados.

SUBSTITUINDO O MARIDO

A morte de Aidan Ravin, portanto, seria vista como pesadelo para Paulinho Serra. Primeiro, porque perderia o discurso de combate à corrupção que teria como alvo um candidato a vice-prefeito condenado pela Justiça. Segundo, porque a morte tornaria Aidan Ravin imune a pancadarias eleitorais.

Quem tem coragem de bater em morto? E o custo eleitoral de incomodar quem morreu? Como é cultural a santificação dos mortos, Ailton Lima ganharia de presente a companhia da mulher do morto. Que, supostamente, atrairia todas as atenções à solidariedade eleitoral. Denise Ravin seria a alma viva e materializável eleitoralmente do marido levado pela virulência da Covid-19.

Mais que isso: Denise Ravin seria reverenciada como a mulher de um homem que morreu na batalha para combater o vírus chinês. Aidan Ravin teria sido vítima na luta por salvar vidas.

Denise Ravin seria na campanha eleitoral o Jair Bolsonaro da facada em Juiz de Fora.

DIFERENTE DE MORANDO

Por conta de tudo isso, e mesmo acreditando piamente que a humanidade é um espetáculo de bondade e, portanto, incapaz de construir mensagens confusas sobre o estado de saúde de Aidan Ravin, matando-o e ressuscitando-o ao sabor das intenções, insisto em dizer que quero saber o que se passa com ele.

Acho que não suporto mais um dia de vai e volta. Estou com a credibilidade abalada junto a muitos leitores por ter transmitido via WhatsApp as acrobacias informativas de terceiros de boa-fé, mas de acesso não necessariamente seguro aos médicos que cuidam do paciente mais polêmico de todos os tempos.

Com o prefeito de São Bernardo, Orlando Morando, vitimado pelo Coronavírus não houve nada disso, exceto uma ou outra insinuação de que teria feito da pandemia marketing pessoal. Uma bobagem sem tamanho.

O que difere Morando e Aidan é que o tucano é jovem sem nenhum tipo de especificidade que agrade ao vírus e jamais recorreu a processo cirúrgico para afinar o corpo. Mesmo se considerando que Morando dá uma engordadazinha de vez em quando. Nada que uma dieta, em seguida, deixe de resolver.

Isto posto, insisto na pergunta inicial: Aidan vive ou Aidan bateu as botas? O prefeito de Santo André, Paulinho Serra, mais que a maioria, quer saber. Também quero meu sossego de volta. Preferencialmente com o ressuscitamento de alguém que está vagando pelas redes sociais. 

 

Morre Silvio Santos, figura mitológica do SBT e

da televisão brasileira, aos 93 

 Mauricio Stycer

 

Silvio Santos, dono e apresentador do SBT, morreu às 4h50 da madrugada deste sábado, aos 93 anos. Também empresário, ele estava internado na UTI do hospital Albert Einstein, em São Paulo. A causa da morte foi broncopneumonia, uma infecção dos alvéolos pulmonares, responsáveis pela troca de oxigênio.

Silvio será sepultado em seu cemitério particular, cujo endereço não foi divulgado ao público. Não haverá velório aberto ao público e fãs e amigos não poderão se despedir. "Ele pediu para que, assim que partisse, o levássemos direto para o cemitério e fizéssemos uma cerimônia judaica", afirmou a família do apresentador em nota.

Orgulhoso de sua intuição, Silvio Santos construiu uma das carreiras mais bem-sucedidas e ao mesmo tempo insólitas da história da televisão brasileira. Sem ligação com políticos nem vínculo com algum grupo empresarial, dizia ser o único dono de TV que gostava realmente de TV.

Fato raro na indústria do entretenimento, foi por quase cinco décadas apresentador e proprietário de sua emissora de televisão. Dono de uma fortuna estimada em cerca de R$ 6 bilhões, chegou a ser sócio majoritário de mais de 30 empresas, mas dizia não saber nem o endereço de algumas delas.

Mais do que um pseudônimo para Senor Abravanel —nome verdadeiro do apresentador, filho de imigrantes judeus de origem turca e grega—, Silvio Santos deu vida a um personagem com uma mitologia própria, lapidada com carinho ao longo de décadas. 

Silvio Santos durante um de seus programas de auditório; empresário e

Lendas e histórias reais se confundem de tal forma que chega a ser temeroso fazer afirmações categóricas de cunho biográfico. Veja, por exemplo, o caso de Jassa, cabeleireiro que o apresentador frequentou regularmente desde a década de 1970 para evitar os fios brancos.

Em muitas reportagens, Jassa é apontado como o "melhor amigo" de Silvio, tendo até influenciado em decisões artísticas e empresariais do cliente, como a contratação de Raul Gil, em 2010, entre outras façanhas lendárias que o tempo transformou em verdades.

Quando a primeira mulher de Silvio, Cidinha, morreu em 1977, a maioria dos fãs nem sabia que ele era casado e tinha duas filhas. Hábil no trato com os jornalistas, o apresentador conseguiu manter sua verdadeira idade como segredo até meados da década de 1980, sempre subtraindo cinco anos ou mais.

Ao entrevistá-lo para a Veja em 1985, o jornalista Mario Sergio Conti, colunista da Folha, teve o cuidado de anotar: "Silvio Santos, que afirma ter 49 anos". Tinha 54. Em 1987, pela primeira vez, surgem menções à data de nascimento que parece ser a verdadeira, 12 de dezembro de 1930. 

A própria história de como Silvio deu os primeiros passos na vida é objeto das mais variadas versões, contadas pelo próprio. Foi camelô aos 14 anos, vendendo capinhas para título de eleitor e canetas, mas nunca ficou claro se fez isso por exigência familiar ou desejo precoce de independência.

Também parece folclórica a história que sempre contou a respeito do fiscal da prefeitura que, em vez de reprimir o camelô, encantou-se por sua voz e o levou —ou indicou— para um teste radiofônico, onde tudo começou.

Não menos repleta de versões é a história de como, já em São Paulo, em meados da década de 1950, adquiriu o Baú da Felicidade, um negócio que então andava mal das pernas e, com a sua dedicação, se tornaria um sucesso extraordinário.

Fato é que sua trajetória sublinha, sempre, os feitos de um sujeito com enorme faro para o comércio e gigantesco talento para a comunicação. Combinando ambos os predicados, foi vender os seus produtos na televisão. E nunca pretendeu ser algo diferente disso –um comerciante na TV.

Quando Walter Clark e Jose Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, começaram a implantar o famoso "padrão Globo de qualidade", no início dos anos 1970, encontraram Silvio encastelado na grade dominical, com autoridade total, inclusive sobre a comercialização de publicidade. Tentaram tirá-lo, mas Roberto Marinho renovou o seu contrato.

O empresário só deixou a Globo quando obteve a primeira de uma série de concessões para dirigir a própria emissora. O canal 11, TVS, no Rio de Janeiro, foi dado pelo general Ernesto Geisel, em 1975. O filé mignon, a licença para explorar o canal 4, em São Paulo, e outros quatro canais, foi dada pelo general João Baptista Figueiredo, em 1981.

À base de muita articulação política e bajulação, jamais negadas por Silvio Santos, nascia o SBT. Um quadro infame, com nítido caráter publicitário, marcou época neste período. Chamava-se A Semana do Presidente.

A prova de que sempre foi um comerciante e não um homem de comunicação é o descaso com que tratou o jornalismo do SBT. Repetidas vezes, explicou: "Eu já dei ordens aos jornalistas da minha empresa para nunca criticar e só elogiar o governo". Em 2016, escalou um garoto de 18 anos, Dudu Camargo, para apresentar um telejornal.

Bajulou todos os presidentes, de Emílio Garrastazu Médici a Jair Bolsonaro, mantendo a sua televisão em modo de alheamento político. Mas nunca, como nos anos Bolsonaro, mostrou tamanho entusiasmo por um governante. Chegou a dizer que sonhava com oito anos de governo Bolsonaro seguidos por oito anos de um governo de Sergio Moro. Um genro seu, o deputado Fabio Faria, foi ministro das Comunicações de Bolsonaro.

De forma errática, sempre seguindo a sua intuição, dizia, levou o SBT ao posto de segunda maior emissora de TV do Brasil. Apostou inicialmente numa programação muito popularesca, o que levantou a audiência, mas afastou anunciantes. Reduziu a baixaria, mas sempre centrado no que havia de mais popular —programas de auditório, novelas mexicanas, "Chaves", filmes da Disney e desenhos animados.

Em alguns poucos momentos, investiu em programação da qualidade, sobretudo no jornalismo, mas debochava dos resultados alcançados em matéria de audiência.

Silvio mexeu tanto na grade da emissora que a sigla SBT ficou conhecida internamente como "Silvio Brincando de Televisão". O programa de Serginho Groisman no SBT, por exemplo, mudou de horário mais de 20 vezes, atrações foram canceladas no dia seguinte à estreia, funcionários foram demitidos e recontratados de acordo com o seu humor no dia.

Em 2007, Silvio pagou o preço pela administração caótica de anos. A Record, adquirida por Edir Macedo do próprio empresário em 1990, desalojou o SBT do segundo lugar.

Em um segmento —a política partidária—, a intuição de Silvio não funcionou. Tentou disputar quatro eleições. Num episódio vexaminoso, aceitou ser candidato à Presidência da República, em 1989, 15 dias antes da eleição, por um certo Partido Municipalista Brasileiro. A candidatura foi impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

O talento do empresário à frente dos negócios foi colocado em xeque em meados de 2010, quando se soube que o Banco PanAmericano havia quebrado com suspeita de gestão fraudulenta. Hábil negociador, saiu da história sem o banco, mas com o patrimônio intacto.

"Palladino? Que Palladino? Nunca fui ao banco. Nem sei onde é o prédio", disse na ocasião. Rafael Palladino, o principal executivo do banco, era primo de Íris, sua mulher.

Pai de seis filhas —as outras quatro de seu segundo casamento—, Silvio jamais teve um herdeiro na televisão. Houve alguns candidatos, como Gugu Liberato e Celso Portiolli, mas nenhum foi ungido pelo patrão.

Ameaçou se aposentar diversas vezes, desde a década de 1970, mas só foi abandonar o palco perto do fim de sua vida. Disse à revista Contigo, certa vez, que tinha uma doença fatal. Mas a notícia, que estampou a capa da publicação, era falsa.

Na década de 2020, passou pelo constrangimento de ser cancelado por parte dos fãs, que não toleravam mais o seu jeito desabrido de tratar mulheres e minorias sociais com piadas preconceituosas e de gosto duvidoso.

Devido à pandemia do coronavírus, permaneceu confinado em casa de março de 2020 a julho de 2021. Neste período, o SBT pareceu sofrer mais que os concorrentes com a queda de faturamento. Perto da comemoração dos 40 anos de sua emissora, um vacinado Silvio se sentiu motivado a voltar a gravar. Contraiu Covid-19.

Num sinal de como é complicada a sua substituição, ao deixar de apresentar o seu programa, em 2023, a atração foi rebatizada como Programa Silvio Santos com Patrícia Abravanel. E seguiu dando palpites na administração da rede, comandada por outra filha, Daniela Beyruti.

É difícil imaginar um SBT sem Silvio Santos —e isso muito por sua disposição ou, se preferir, culpa. Silvio foi a cara da empresa que construiu, cuja continuidade depende da capacidade de sua família de reinventá-la sem alterar o seu DNA.

Leia mais matérias desta seção: