Sociedade

Encontro misterioso
entre Zigue e Zague

  DANIEL LIMA - 15/07/2024

Zigue e Zague  se encontraram num motel. Heterossexuais, decidiram pelo local apropriado a todos os sexos, menos a uma dupla hétero. Queriam a segurança da discrição. Ninguém poderia vê-los juntos. Num motel se correm menos riscos do que num hotel. Quanto mais num restaurante. Motel com garagem conexa não daria margem a surpresas desagradáveis.

Zigue e Zague poderiam ter ido a um restaurante na Capital, como fazem muitos casais suspeitos da região de todos os tipos no alfabeto do sexo. Quem quer se esconder ou quer ter privacidade sempre vulneráveis na terra gataborralheiresca,  costuma ir à Cinderela. Mas, como lembraram que Celso Daniel e Sérgio Gomes da Silva viraram manchetes de jornais e emissoras de TV de todo o mundo, quando retornaram naquele janeiro de um restaurante de luxo nos Jardins, Zigue e Zague decidiram se precaver.

Uma zebra típica do imponderável provocaria desdobramentos num zoológico de futricas para todos os gostos. Zigue e Zague não poderiam ser vistos juntos. Mais que a abertura da porta da maledicência de cunho sexual, o relacionamento  de negócios saltaria às alturas. Zigue e Zague estão entre os poderosos da praça regional. Por isso, nada melhor ou menos pior que estarem juntos, mas separados, num quatro de motel. Quarto de motel mequetrefe, com possibilidade remota de contar com dispositivos tecnológicos denunciadores.

ZIGUE – Por essa eu não esperava, Zague. Você ocupou a vaga coberta desse motelzinho vagabundo e fui obrigado a deixar o carro lá fora, num estacionamento sujeito à curiosidade alheia.

ZAGUE – Que posso fazer, Zigue, por ter chegado na hora? Quem se atrasa não pode reclamar, me desculpe. Além disso, não me avisaram que esse estabelecimento era tão pobre em infraestrutura. Cheguei, entrei e me acomodei. 

ZIGUE -- Precisamos dar um jeito de nos entender, porque do jeito que está não pode continuar. Estou com a corda no pescoço. Estou cada vez mais asfixiado e você segue me deixando de lado. Não é assim que as coisas funcionam num regime capitalista,  principalmente para quem faz questão de estar no poder, mesmo que no poder paralelo, como é meu caso, e no poder do poder, como é seu caso.

ZAGUE – Também acho, compreendo perfeitamente, mas você sabe muito bem que os tempos são outros, que não dá mais para determinadas decisões voluntárias. Os olhos grandes agora não são apenas dos invejosos, mas da maquinaria tecnológica, dos algoritmos, de tudo que significa um gigantesco Big Brother. Ou seja: precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Você não viu que gravaram até o ex-presidente visitando uma embaixada? Reviraram até o lixo do atual presidente. Quem dar moleza, dança.

ZIGUE – Concordo com você em parte, mas essa parte é apenas uma parte, não é o todo de todas as partes. O todo é a gente encontrar um caminho de mão dupla. Precisamos deixar de nos abalroar. Me sinto até angustiado ao estar aqui. Já imaginou se alguém nos vê. O que vão dizer?

ZAGUE – Deixe isso para lá, porque estamos salvos. Vamos voltar ao que interessa. No ponto que as coisas não fruem como deveria. Você tem uma visão egoísta do que significa cooperação, ajuntamento, consórcio, qualquer coisa que lembre aproximação com resultados pragmáticos, mas nada que lembre forçada de barra, essas coisas que não ficam bem entre gente civilizada.

ZIGUE – Isso é o que você está dizendo, mas o seu problema é que não tem noção de que na medida em que fala mais parece que está olhando para o próprio espelho. Pense nisso. Lembre-se dos tempos em que a gente estava mais próxima. E não repita a desculpa de tecnologia de segurança como impeditivo. Isso não cola. Basta ver, basta acompanhar os bastidores que todos conhecemos. Todo mundo está mergulhando numa farra geral. Os tempos voltaram a ser os tempos de antes daquela operação maldita que botou muita gente na cadeia, inclusive um ex-presidente que voltou a ser presidente.

ZAGUE – A teoria que você destila tem muito de pragmatismo, não posso negar, mas estou ressabiadíssimo. Sei que sei que há algumas cartas marcadas nas mãos de justiceiros judiciais e não pretendo fazer parte da lista. E fazer parte da lista significa me aproximar de você publicamente, e, também, com negócios que possam deixar algum rastro identificável. Precaução não custa nada. Temos mesmo que nos manter distantes. Minha vida mudou, sua vida mudou também e qualquer cruzamento de nossas vidas pode ser desagradável.

ZIGUE – Quero lhe adiantar ou reiterar a razão pela qual mandei uns emissários fazerem contato com você: não aceito a sua resposta, sua resposta é muito cômoda. Posso que tenho escaninhos que nos protegeriam, que nos estenderiam tapetes vermelhos de felicidade sem corrermos qualquer risco. Quando falo tapetes vermelhos não quero dizer que sejam só vermelhos. São de todas as cores. Você entende, ou não?

ZAGUE – Desculpe meu amigo, desculpe para valer, mas tenho de observar atentamente o grau de prêmio e de risco embutidos no que poderíamos fazer para que o desgaste mútuo não fosse acentuado. Vivo na mesma situação de uma seguradora de veículo que, para ser rentável,  conta com planilhas detalhadadistas dos valores a serem despendidos de acordo com o faturamento com a frota assegurada. No nosso caso, a desvantagem é toda minha. O preço pode ser salgado demais. Não quero arrumar sarda para me coçar.

ZIGUE – O que você acha de a gente fazer  uma degustação desbravadora a novos tempos,  essa coisas que podem ser chamadas de testes e que, durante a fase de experimento, nos forneceriam indicadores de que tudo poderá ser deflagrado para valer e sem qualquer tipo de contra recomendação?

ZAGUE – Vou insistir em dizer que não faria nada para dar esse passo mesmo experimental. Conheço as regras do jogo que estão sendo praticadas. Reconheço que houve relaxamento geral, mas há o que já indiquei como inquietação e isso se chama seletividade. Não posso me tornar vulnerável numa relação que já surgiria sob suspeita de que não trafegaria por terreno seguro.  Não quero virar um centroavante isolado no ataque, apanhando dos zagueiros a cada bola lançada.

ZIGUE – Não estou acreditando que você tenha vindo até aqui, sob um risco de que algum conhecido nos veja e nos julgue de forma caluniosa, e esteja na minha frente para repetir o que tem dito a todos os emissários que lhe enviei. Quando você finalmente aceitou restabelecer um diálogo pessoal, minha experiência disse que estávamos nos aproximando de um acordo. Esse motel não é um acidente de percurso.

ZAGUE – Pensou errado. Estou pronto para assumir qualquer contrariedade. Seja o que for não será jamais nada semelhante à preocupação de evitar prejuízos já conhecidos e, agora, insisto, ainda mais graves, por mais que a bandalheira nacional seja realidade exuberante.

ZIGUE – Não sei nem o que dizer para meus amigos mais próximos. Disse a eles, brincando, quando me perguntaram aonde iria essa tarde da noite, que estaria ziguezagueando num local insuspeito. Agora vou voltar de mãos abanando.

ZAGUE – Você não pode se exceder ao achar que pode ziguezaguear sem consentimento do outro lado. Já foi o tempo em que você mandava e desmandava. Acho que esses novos tempos que eliminam o ziguezaguear são tempos que exigem atenção máxima. Achar que tudo seria como antes é jogar na lata do lixo tudo que todo mundo ganhou em forma de experiência vivida e sofrida.

ZIGUE – Não vou insistir mais. Vou pensar no que vou fazer. Mas adianto que estou inconformado. Não imaginava sair no prejuízo neste encontro. Vou sair primeiro, esperando que não ocorra alguma surpresa desagradável aí fora. Sabe como é estacionamento aberto de motel: tudo pode acontecer. Já ouvi sobre tantas tragédias que não quero nem relembrar.

ZAGUE – É  isso, vai primeiro, vou dar uns 10 minutos para sair também. Basta descer a escada e estarei no assento do meu carro.     Mas não nego que estarei com o coração na mão. Os vidros do carro que peguei para dirigir, que é um carro emprestado, não são vidros escuros. São transparentes demais. Por isso não sei se é pior me verem com você ou sozinho. O que essa gente não poderia inventar ao me ver numa carro estranho num local como este? Você sabe até onde a imaginação humana é capaz de levar.  

ZIGUE – Acho que você está mais paranoico do que eu.

ZAGUE – Que seja, mas você há de convir que não se tem mais controle sobre nada. Quem garante que não há câmeras de segurança espalhadas também pelo estacionamento para identificar os frequentadores? Sabe lá o que é receber telefonema de algum bandido chantagista? O que vou dizer em casa para justificar um motel de quinta categoria na minha agenda de trabalho?

ZIGUE – Você poderia ter ido ao meu apartamento e nada disso estaria acontecendo?

ZAGUE – E quem disse que cairia nessa armadilha. Sua fama já tomou conta do pedaço.  Dizem que você é o maior produtor e colecionador de gravações clandestinas da praça. Além disso, mesmo com o uso de elevador privativo só para você não há garantia alguma de que realmente é só para você. Sempre aparece um vizinho incômodo.

ZIGUE – Bobagem, bobagem. É melhor eu ir embora, mas pense bem no que me disse. Não joguei a toalha.

ZAGUE – A única toalha que vejo é aquela que está ali, junto à cama. E garanto que não senti vontade nenhuma de usá-la.      

ZIGUE – Está bem, está bem. Vou pensar num novo encontro entre a gente. Acho que essa fórmula de motel não é das melhores. Não consigo estar em paz diante da possibilidade de ser surpreendido por alguém que conheço. Ou por alguém que não conheço mas que me conhece. Pensei até em ter vindo travestido de mulher, porque assim acho que fugiria de qualquer curiosidade. Aqui o que mais tem, segundo pesquisei, são travestis.

ZAGUE –Ainda bem que você não me fez uma proposta tão absurda. Me vestir de mulher? Nem a pau, Juvenal.  Acho que você ficaria ridículo. E eu também.

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