Sociedade

Uma vez Borralheira,
sempre Borralheira (2)

  DANIEL LIMA - 27/04/2022

GRANDE ABC – Nosso cafezinho foi rápido, mas não deixou de ser interessante. Deu para relaxar, contar algumas piadas e cá estamos de volta.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Estamos de volta, mas não vamos afrouxar o cinto de cobrança mais que justa. Afinal, o que você está fazendo na cabeceira principal da mesa se a maior autoridade entre nós sou eu? 

CIDADE DE SÃO PAULO – Exatamente isso. Sou pela hierarquia institucional e por isso não reclamo de assumir a cabeceira de baixo. Você, Grande ABC tem de ficar na lateral direita ou esquerda. Ou seja: cai fora da cabeceira da mesa, nem pense na cabeceira inferior.  

SÃO BERNARDO – Essa reacomodação é providencial porque vou aproveitar e ficar mais próximo da cabeceira que o Estado de São Paulo ocuparia. Afinal, sou o maior PIB e a maior cidade da região. Vou me acomodar à sua direita, Estado.  

SANTO ANDRÉ – Tudo bem, desde que eu fique imediatamente do lado da cabeceira superior, frente a frente com você, São Bernardo. Quero estar perto do poder máximo ao mesmo tempo em que não desgrudarei os olhos de você.  

GRANDE ABC – Só faltava essa mesmo: além de deixar a cabeceira superior, não ficar com a cabeceira inferior, ainda terei de me conformar com um lugar lateral menos próximo da cabeceira superior. Vocês estão brincando comigo. Esqueceram que sou o anfitrião e que estamos no Condomínio Grande ABC? 

DIADEMA – Não mexendo comigo, que estou à esquerda da cabeceira, tudo bem. 

MAUÁ – Eu também não saio da esquerda, mesmo que meio longe da cabeceira. 

RIBEIRÃO PIRES – Fico onde quiserem. Estou de carona para obter ganhos que sempre busco. Meu nome é pragmatismo.  

RIO GRANDE DA SERRA – Vou repetir mil vezes se preciso: não valho lá muita coisa nessa mesa mesmo, então façam de mim o que quiserem. 

GRANDE ABC – Tenho uma ideia já que vocês decidiram hierarquizar a mesa em função do poderio econômico, institucional e político. Vou fazer uma proposta para acabar com essa disputa que vai muito além da suposta geometria e que está emperrando o nosso encontro. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Finalmente o Grande ABC caiu na real. 

CIDADE DE SÃO PAULO – Acho bom mesmo. 

GRANDE ABC – Calma, calma que não é nada disso que vocês estão imaginando. O que está posto aqui assim vai ficar. Ou seja: fico na ponta principal da mesa, o Estado fica na ponta inferior e os demais nas duas laterais.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Não estou gostando.  

GRANDE ABC -- O que proponho é que para um próximo encontro, que poderemos marcar ao fim dessa reunião, trataremos de novo formato geométrico dessa mesa de reuniões de modo que ninguém se sinta menosprezado. Vamos retirar todo o ranço de poderio econômico, institucional e político que permeia esse encontro em forma de ocupação da mesa. Essa é minha proposta.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Para evitar mais polêmica, vamos em frente. Mas sugiro desde já que, para não haver complicações, nada melhor que da próxima vez a mesa seja redonda. Redonda, redonda. Assim, acabam-se os problemas. 

CIDADE DE SÃO PAULO – Excelente ideia. Na próxima reunião, que espero que não demore 20 novos anos, a mesa será redonda. Quem for contrário que levante a mão. 

GRANDE ABC – Ótimo, ninguém é contra. Vamos seguir o barco. 

SÃO CAETANO – Peraí, peraí, parceiros. Acho que tenho uma ideia melhor que a mesa redonda.  

MAUÁ – Lá vem a esnobe São Caetano. 

DIADEMA – Calma, vamos esperar o que São Caetano vai dizer. Estava aqui no meu canto pensando em algo também. Ainda não tenho uma alternativa à mesa redonda, que não me agrada porque todo mundo fica muito juntinho, roçando as pernas, invadindo a área, bisbilhotando anotações alheias.  

SÃO CAETANO – Exatamente por isso, Diadema,  cheguei ao formato que vou falar. Sei que você, Diadema, não sugeriu que pudesse ser assediada por causa da mesa redonda. Afinal, aqui só tem cavalheiros. Mas não custa nada evitar. 

SÃO BERNARDO – Fala logo, São Caetano. Não tenho tempo a perder com devaneios. Tenho urgências a resolver porque o bicho está pegando. Montadoras ameaçam ir embora, autopeças estão indo embora. Preciso de soluções. 

SÃO CAETANO – Tudo bem. Minha sugestão é que a mesa seja em formato decágono.  

GRANDE ABC – Que palavrão é esse? 

SÃO CAETANO – Simples:  é a geometria de 10 espaços iguais em área e em ângulos. Ninguém toca em ninguém, ninguém espia ninguém e vamos em frente. Igualdade absoluta pelo menos na forma, porque no conteúdo, é cada um para si e rezar por todos.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Gostei. Por mim, tudo resolvido.  

CIDADE DE SÃO PAULO – Também acho. O único problema é arrumar marceneiro de primeira, que siga à risca a geometria. 

SANTO ANDRÉ – Nosso problema, devo reconhecer contrariado, não é de geometria, mas de Economia. Estou cansado de ouvir que somos o Município que mais perdeu PIB Industrial e emprego industrial no Brasil nos últimos 40 anos. Tentei enrolar a população nos últimos tempos, mas não dá para segurar a peteca só com ações varejistas e sociais.  

RIO GRANDE DA SERRA – Você está chorando de barriga cheia. 

SANTO ANDRÉ – Estou dizendo a verdade. O dinheiro está cada vez mais escasso no orçamento e já não temos muito a quem recorrer. Já vendemos tudo que é patrimônio público e as despesas só aumentam. 

SÃO BERNARDO – Epa, epa, não é que Santo André desandou a falar. Mais que falar: decidiu que está com o pires na mão, que está numa curva de bico. Isso é ótimo. Estou cansado de dizer que não dá para sustentar um arco-íris enquanto a realidade bate à porte com a exclusão social. E de exclusão social eu entendo. Estamos no centro de um furacão da macroeconomia combinada com a pandemia do Coronavírus. 

GRANDE ABC – Santo André foi tão sincera na exposição de empobrecimento que agora só está faltando concordar comigo e mudar o hino oficial. “Viveiro Industrial” já está mais que superado pela realidade dos fatos. Acho que deveria ser retirado de cena sem pompa alguma. É melhor disfarçar e agir. 

SANTO ANDRÉ – Assim não dá, Grande ABC. Viveiro Industrial faz parte de nossa alma econômica, não interessa os dias de hoje. Não faltam hinos nacionais que exaltam feitos e conquistas que ficaram no passado. Viveiro Industrial é onde nos agarramos para explicar que, apesar de tudo, ainda somos um local de progresso.  

CIDADE DE SÃO PAULO – É isso que dá fazer hino sem olhar para o futuro. Exaltar as qualidades é importante, mas não custava nada o pessoal que criou a letra do hino de Santo André dar uma espiada especulativa no futuro que sempre chega. No meu caso, perdi indústria a dar com pau ao longo de décadas, dependo proporcionalmente menos da indústria do que qualquer cidade do Grande ABC, mas não tenho dissabor algum porque meu hino oficial não desafiou as transformações econômicas.  

DIADEMA – Canta um trechinho do hino da Capital, canta São Paulo. 

CIDADE DE SÃO PAULO – Não vou fazer isso para humilhar vocês todos. Minha letra é linda, “é São Paulo de pedra e pau, São Paulo de pau e pedra, São Paulo orgulho nacional”. Sentiram a minha força? Não há quem ouça e fique indiferente. E não ficamos presos de forma alguma a algo que pudesse virar passado. Ouça: “São Paulo de uma semente, fez o milagre da progressão. São Paulo de uma oficina fez uma indústria com precisão. São Paulo fazendo a ponte do progresso nacional”. Gostaram? Estou arrepiado. 

SÃO BERNARDO – Não é gataborralheirismo não. Realmente o hino de São Paulo é de arrebentar.  

SANTO ANDRÉ – Sou obrigado a concordar que perdi o farol do tempo, aliás, me perdi no tempo.  

GRANDE ABC – Bom, chega de sessão musical. Acho que cada hino tem seu valor, tem sua história, tem seus significados, mas não estamos aqui para um concurso de fanfarras ou coisa semelhante. Nossos problemas são do tamanho da Cidade de São Paulo, se querem saber. Temos todos os defeitos de São Paulo e nenhum ou quase nenhuma virtude de São Paulo.  

SÃO BERNARDO – Isso sim é que é gataborralheirismo! 

SANTO ANDRÉ – Também acho. 

RIO GRANDE DA SERRA – Não acho não. Estou tão distante de São Paulo que chego a chorar. Se estivesse ali, coladinha, como São Caetano, a história seria outra. Nadaria de braçadas. Aprenderia muito. 

DIADEMA – Por isso não: estou colada à São Paulo, ao extremo sul da Cidade de São Paulo, e só problemas se acumularam. 

RIO GRANDE DA SERRA – E quem disse que queria ser o extremo sul da Cidade de São Paulo? Nem Zona Leste. Queria mesmo estar onde está São Caetano. Para estar perto de São Caetano e de São Paulo até toparia trocar minha geografia territorial com Santo André, que me absorveria, desde que me desse espaço equivalente na vizinhança boa de São Caetano. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Escuta aqui, Grande ABC. Você não acha que está na hora de tratarmos de coisas sérias e descartar esses devaneios geográficos? Temos muito o que tratar ou podemos pegar as trouxas e cuidar de nossos interesses longe daqui? 

GRANDE ABC – Calma, Estado, calma. É sempre bom ouvir o que os sete anões, desculpe, os sete municípios têm a dizer. Pode parecer bobagem, mas esse condimento de gataborralheirismo que existe entre nós explica muita coisa. Querer ficar próximo da Capital é uma maneira implícita de dizer que Rio Grande da Serra está abandonada por todos, que sofre as consequências da periferização da Região Metropolitana de São Paulo.  

SÃO BERNARDO – Foi bom você falar em Região Metropolitana de São Paulo. O que pergunto é por que não convidou a RM, como poderia resumir os demais 31 municípios, para participar desse encontro. A RM já não participou do primeiro encontro e segue fora do baile neste segundo.  

CIDADE DE SÃO PAULO – Também acho.  

ESTADO DE SÃO PAULO – A Cidade de São Paulo é tão cheia de si que nem se importa em dividir o espaço com mais um ente federativo, ou quase federativo, no caso a Região Metropolitana de São Paulo. 

SÃO BERNARDO – Federativo não é de fato, embora esteja na legislação. Seria federativo se contasse com todos os apetrechos institucionais e legais, como as cidades que somos, e o Estado de São Paulo. 

CIDADE DE SÃO PAULO – É aí que está um grande erro. Já sugeriram no passado e concordo plenamente com o que chamaram de Estado da Grande São Paulo. Sei lá quem bombardeou essa ideia. Talvez o Estado de São Paulo, que está aí quietinho. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Não movi uma palha nesse sentido. Nem moveria. Acho até que seria interessante contar com o Estado da Grande São Paulo dentro do Estado de São Paulo, desde que, claro, ficasse subordinado a mim. Não quero perder o poder de mandar em vocês todos. Acima de mim, apenas Brasília. E olha lá porque ultimamente andei dando os petelecos em Brasília. Lembram-se das vacinas contra o Coronavírus. Pois é: sei mostrar minhas manguinhas.  

DIADEMA – Acho que seria ótimo mesmo contar com o Estado da Grande São Paulo. O Grande ABC teria uma esfera a mais a supostamente encobri-la no jogo institucional, mas se a gente se unir e focar o que interessa nesse macroterritório de 39 municípios, todos ganhariam. A demografia de mais de 20 milhões de habitantes exige que a gente toque a vida institucional de outra forma. De forma coordenada. A Grande São Paulo é um emaranho tão complexo que muitas das cartas de exclusões e complicações sociais sobram para mim. Esse é o problema de ser uma vizinha da parte mais pobre da Cidade de São Paulo.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Falei agora mesmo que dei uns petelecos em Brasília, mas devo fazer uma mea culpa. Tenho uma porção muito grande de responsabilidade na bagunça geral que é a Região Metropolitana. Reconheço que faltam políticas públicas sincronizados com os interesses individuais e conjuntos dos municípios. Praticamente desconhecemos a realidade desse espaço territorial. Falhamos redondamente.  

CIDADE DE SÃO PAULO --Não se penitencie, Estado. Também falhei demais porque represento muito mais da metade da riqueza da RM e durante todo o tempo, ao longo dos tempos, nem dei bola para a vizinhança. Na verdade, só exploro essa turma toda de 38 municípios, inclusive, reconheço, vocês daqui, os sete anões. Minha atratividade é tamanha que dispenso conselhos, sou onipotente, e a vida não é assim. Meus pecados aparecem e são imensos. 

SANTO ANDRÉ – Nós também falhamos muito por aqui porque só admiramos o seu lado Cinderela e esquecemos as complicações do dia a dia de uma cidade de 12 milhões de habitantes. Mal desconfiamos que muitos dos dramas que temos aqui no Grande ABC decorre de não olhar para a Cidade de São Paulo de jeito mais cético, rigoroso. 

GRANDE ABC – Gostei Santo André, gostei de ver. Mas você sabe que tem muita culpa no cartório. Além de olhar para São Paulo apenas com deslumbramento, ultimamente você pegou a mania de importar gente da Capital. Não é pecado pegar gente da Capital para buscar saídas municipais, mas é preciso, também, que essas pessoas sejam reforços aos lugares certos da administração pública. Trazer por trazer não resolve nada.  

SÃO PAULO – Tenho me esforçado, Grande ABC, tenho me esforçado. 

GRANDE ABC – Mas está errando demais não necessariamente nos reforços que chegam, porque vários têm qualidades, mas na forma invasiva com que eles desembarcam, com o cartucho de políticos sem qualquer aderência em Santo André. Gente que só pensa em política, em poder político, em votos, em uma pecinha a mais do mosaico de articulações às disputas no Estado e no País.  

SÃO BERNARDO – Acho que Santo André já entendeu o recado. Aliás, se Santo André fosse mais humilde, daria uma olhadinha à esquerda do mapa regional e poderia aprender com quem tem o poder político sem entregar os anéis e os dedos da administração.  

SANTO ANDRÉ – Não vai dizer que você está se referindo a você mesmo, São Bernardo? 

SÃO BERNARDO – Estou começando a achar que você não precisa de muitas frases para saber o recado dado.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Calma, calma que não quero briga. É verdade que Santo André precisa aprender política com São Bernardo. Sou prova provadíssima disso. Veja quanto do meu orçamento foi dedicado aos entes do Grande ABC e qual foi a parcela de São Bernardo. Muito mais, claro. E, confesso a todos que, nessa distribuição, o que pesou foi o bom relacionamento que vem de longe. Não fizemos negociatas com cargos, não exigi isso ou aquilo, não empesteei a administração com apaniguados.  

SÃO BERNARDO – Depois dessa, juro que Santo André poderia ir para casa, mas não vai não, Santo André, quero você na minha frente. 

SANTO ANDRÉ – Não vou responder porque não posso responder sozinho. Preciso consultar meu entorno e nem sempre meu entorno concorda comigo. Aliás, discorda quase sempre. Pago o preço de adotar um colegiado para comandar o Paço Municipal. É claro que falo isso aqui entre nós, porque senão me desmoralizam. Tem gente que chama o colegiado de outra coisa que não é colegiado, mas a terminologia policialesca é uma afronta que não vou repetir.  

GRANDE ABC – Deixe de ser ingênuo, Santo André. Todo mundo já sabe que o colegiado é quem manda. A mídia deixa isso tão evidenciado que qualquer tentativa de negar o inegável soaria como patetice.  

SÃO BERNARDO – Acho que Santo André poderia tomar o próximo cafezinho sem essa. 

GRANDE ABC – Por falar em cafezinho, vamos tomar um chá das nove agora. Mas voltamos logo. O dia é longo. Antes das 18h precisamos fechar essa sala de reuniões.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Deixe-me dar uma apimentada nesse intervalo? Quero saber do Grande ABC, nosso anfitrião, por que Brasília não foi convidada a esse encontro. Será que o Grande ABC não gosta do atual poderoso de plantão? 

GRANDE ABC – Tinha mesmo que fazer a pergunta agora? Mas vou responder. Na volta. E chateado, porque pretendia falar sobre o assunto de forma menos coercitiva. 

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