Sociedade

Quando o jornalismo está
no centro da discórdia

  DANIEL LIMA - 22/03/2024

Sou portador confesso de esquizofrenia que precisa ser explicada em confissão pública. O jornalista Daniel Lima é escravo da pessoa física de Daniel José de Lima. A outra versão é que temos de fato exatamente o inverso? Vou explicar. Primeiro, a esquizofrenia é apenas uma metáfora. Só revogo essa condição se ficar provado por um psiquiatra renomado que não se trata de brincadeira. Até hoje não apareceu ninguém que tenha provado o contrário. Até porque jamais me submeteram a um teste de verdade.

Ocorre que essa corrida maluca entre o pessoal e o profissional imposta pelo jornalismo causa várias complicações ao corpo e mente que me movem. É desafiador conciliar demandas e ofertas de um produto chamado vida. Tenho apanhado um bocado por conta disso.

O jornalismo exige saúde mental e física que nem sempre é possível de responder. Entre o Daniel José de Lima, pessoa física, e o Daniel Lima, pessoa jurídica, há imensidão de distância. Sou esquizofrênico por isso. Acho que é o caso típico, também metaforicamente, de médico e monstro.

APENAS BRINCADEIRA

Disse recentemente ao maluco que apareceu como meu biógrafo (ele desistiu não sei por que, mas está de volta, e vou contar outro dia por que ele insiste em me escrutinar) que me sinto mesmo um esquizofrênico. Ele, o biógrafo, levou a brincadeira (acredito que seja mesmo uma brincadeira) ao pé da letra medicinal. Deve ter razões para isso.

É mesmo muito raro, acredito, tanta diferença entre uma pessoa centrada na própria vida e entorno familiar, no caso Daniel José de Lima, e outra pessoa sem limites consequenciais para exercer a profissão, inclusive em prejuízo da própria família. Daniel José de Lima sofre com Daniel Lima.

Daniel José de Lima suporta as consequências de também ser Daniel Lima, e não consegue vantagem alguma, ou prêmio algum.

Como pode alguém que não se mete na vida de ninguém, que não faz qualquer reparo de ordem pessoal em conversa séria, que não questiona posicionamentos de diversas ordens nestes tempos de radicalismos e transformações comportamentais, como pode esse alguém, no caso Daniel José de Lima, navegar por águas completamente diferentes como questionador e perscrutador de resultados, caso do jornalista, de Daniel Lima?

FALTA CORAGEM

Essa é a dualidade que me maltrata como subproduto da esquizofrenia. E me maltrata porque ainda não tomei coragem de romper com essas contradições que tanto me prejudicam no campo pessoal e me faz sentir culpado no campo profissional.

Ainda não criei coragem para desativar o lado profissional, pegar minhas malas e maletas e viver apenas como pessoa física, o tal de Daniel José de Lima. O mesmo Daniel José de Lima que, contraste dos contrastes, levou um tiro na cara num pet shop quando, conscientemente, sufocou o Daniel Lima que existe nele. Entenderam?  Talvez o Daniel Lima devesse ter entrado em campo, mas ficou quietinho. Preferiu deixar tudo para Daniel José de Lima de chinelos de dedos, bermuda e camiseta surrada.

Daniel José de Lima, que quase foi para o beleleu após o homicídio frustrado, manteve-se em todos os momentos daquele incidente como Daniel José de Lima. E contrariou o Daniel Lima. Até hoje me pergunto, como Daniel Lima, se não deveria ter sido Daniel Lima naquele episódio, ao invés de deixar que Daniel José de Lima permanecesse intocável.

ATRAPALHANDO A VIDA

Por que Daniel Lima preferiu deixar que a passividade quase covarde de Daniel José de Lima dominasse o ambiente quando quase morreu sem esboçar qualquer reação? Não teria sido melhor que, repito, entrasse em campo Daniel Lima, desde o primeiro lance de agressividade daquele jovem atirador?

O que posso confidenciar é que, na maioria dos casos, Daniel Lima atrapalha muito a vida do Daniel José de Lima. Daniel Lima leva tão a sério a missão profissional de décadas que se sente impotente ante a simples sugestão de que devesse abandonar a luta e deixar a esquizofrenia de lado.

O Daniel José de Lima que passeia diariamente com duas cachorras, que alimenta as duas cachorras, que dá banho nas duas cachorras, que coloca para dormir as duas cachorras no mesmo quarto que ocupa, esse Daniel José de Lima doméstico, que reza para não ter que entrar em qualquer embate, porque os embates o fragilizam emocionalmente, principalmente após aquele primeiro de fevereiro, esse Daniel José de Lima seria muito melhor sem as intervenções do Daniel Lima jornalista que não dá espaço a tergiversações e, com isso, ergue muralhas de adversários,  assaltantes de conceitos que imprime a cada análise.

UM DUELO INFERNAL

Há um duelo infernal entre o médico e o monstro. Tanto que me vejo diante de uma cruel dúvida existencial: será que o médico seria a pessoa física que só quer paz e amor, carinho e compreensão, e que chora à toa, e o monstro seria a pessoa jurídica que faz questão de exercer publicamente uma atividade que lhe provoca dissabores e horrores, quando não detratores e tudo o mais, mas que arranca do fundo da alma uma energia de combatividade intelectual sem esmorecimento e arrependimento?

Uma dúvida sempre me assalta, e me tira o sono: quem seria afinal o médico e o monstro dentro de mim?

Seria Daniel José de Lima,  avesso a badalações, a disputas, a contendas de qualquer natureza, sempre disposto a dar um bom dia, boa tarde ou boa noite a quem encontra pelo caminho, que não resiste ao chamamento à porta do sobrado em que mora e atende a todos, e compra coisas das quais não precisa,  seria esse Daniel José de Lima o médico em questão, ou o monstro do Daniel Lima, destemido e tudo o mais, que por força da profissão acaba de fato sendo mais útil à sociedade, cumprindo rigorosamente as demandas que abraça, seria também um outro tipo de médico, aquele de palavras duras mas providenciais?

QUEM É QUEM MESMO?

Viu como tudo é uma questão de encaixe conceitual, para não dizer estrutural? Será que Daniel Lima é mesmo um monstro por insistir tanto em revelar a realidade da região, as barbaridades de mandachuvas e mandachuvinhas que o detestam?

Sei que a maioria não tem dualidades tão pronunciadas porque agregam a felicidade de não exercerem atividade pública em forma de jornalismo crítico. São uma maioria que não tem por que se olhar no espelho e se achar esquizofrênica.  Age, essa maioria, com elevado grau de segurança e equilíbrio, quando não de aprovação formal da sociedade da qual faz parte. Raramente saem dos trilhos.

O pessoal e o profissional não têm as mesmas configurações de um combatente social, que o jornalismo determina. E quando o fazem, ou seja, quando exercitam lados beligerantes, carregam a segurança de que não ultrapassarão os limites de grupos corporativos e associativos avalizadores das ações. Tudo ficará seguramente mantido e preservado entre quatro paredes.

Juro que gostaria de ser apenas Daniel José de Lima, porque o Daniel Lima me atormenta. Para que o Daniel Lima se sinta em plena forma emocional, física e intelectual de modo a exercer a profissão que abraçou, tenho que me dobrar às exigências nesses e em outros campos.

CORRENDO PELO OUTRO

Vou às ruas correr como Daniel José de Lima porque o Daniel Lima precisa de dinamismo físico e cognitividade cerebral para cumprir o papel que estupidamente se atribui. Minha tarefa é facilitada. Daniel José de Lima nem bebe nem fuma e é concentradíssimo numa dieta quase mediterrânea. Dou uma tremenda ajuda também porque não saio de casa, não gosto de estrada, de avião, de motocicleta e também da possibilidade de ver algum animal atropelado.

Daniel Lima é leitor voraz, ouve músicas sem parar quando lhe dá na telha, assiste a séries e filmes na Netflix e fica hipnotizado diante de um bom jogo de futebol. Vão dizer que tudo isso é supostamente virtude de Daniel José de Lima. Diga isso para o Daniel Lima. Ele vai responder que não é uma máquina sem engrenagens lubrificadas pelo humanismo.  

Numa sessão de psicanalise rudimentar a que me imponho, algo que posso traduzir como pura reflexão diária, principalmente durante as corridas de rua, penso muito sobre isso, sobre essa guerra intestina, orgânica, entre identificações inconciliáveis, de Daniel Lima e Daniel José de Lima.

DUAS ALMAS

Vivo um conflito interior que, ao mesmo tempo em que me debilita, também me fortalece. Acredito que seria impossível ao Daniel Lima viver sem somatizar muitas das características de Daniel José de Lima. E a recíproca é verdadeira. São duas almas num mesmo corpo.

A alma do menino do Interior acanhado e pobre que se satisfaz com o que é possível em termos materiais e a alma pragmática do adulto ambicioso demais quando se trata de investir em conhecimento como base às incursões muitas vezes cáusticas, antagônicas.  

Não está sendo fácil botar tudo isso no papel. Imagino que não faltarão avaliações apressadas, quando não maldosas. Mas acho que vale a pena me expor como dois-em-um ou um-em-dois. Possivelmente outros profissionais com características semelhantes se vejam no mesmo conflito psicológico.

Conciliar duas personalidades completamente distintas, a primeira, de pessoa física, que detesta conflitos, e a segunda, de pessoa jurídica, exatamente o oposto, provavelmente para preencher os vácuos da primeira, não é tarefa qualquer.

QUEM É MARIONETE?

Acreditem em mim, pessoa jurídica. No fundo, sou potencialmente marionete nas mãos da pessoa física, e faço da pessoa física algo semelhante. E vamos tocando a vida, cada um de uma maneira diferente do outro.

O Daniel José de Lima não rompe a barreira que o separa de Daniel Lima, mas o Daniel Lima de vez em quando tem a sensação de que pode se deixar levar pelo Daniel José de Lima. Nada mais contraproducente. A antítese os move em direções aleatórias, mas complementares e inseparáveis. São linhas sinuosas que jamais se encontram, mesmo com flertes de um lado e de outro que sugerem aproximações ruinosas.

Faço um esforço redobrado desde aquele dia do tiro para não fracassar como Daniel Lima. O Daniel José de Lima ainda sente reflexos e desdobramentos do que viveu e vive e tem a mania de querer dominar o pedaço da alma resiliente ao pragmatismo profissional. O sonho de Daniel José de Lima suprimir Daniel Lima é uma permanente emboscada emocional, quando não racional.

PAZ DESTRUIDORA

No dia em que Daniel José de Lima e Daniel Lima pretenderem conviver em paz, tenham certeza todos de que ambos estarão inutilizados. Esse encaixe de uma só pessoa, uma só personalidade, precisa se dar de forma gradual, consensual, alegre e redentora. Tudo isso, ainda, não passa de especulação.

O médico e o monstro controversos que vivem dentro de mim, separados pelo RG e pelo CNPJ, são poderosos em se manterem indevassáveis um ao outro. Eles sabem que, se não houver mesmo um acordo em que as almas sejam consultadas, o inferno se estabelecerá.

O risco de que poderiam ceder à fórceps é a pior das alternativas. Eles sabem que só permanecerão em conflitos e sobreviverão às intempéries sob o ponto comum da liberdade que injunções autoritárias sempre pretendem sufocar.

O médico e o monstro, não interessa quem seja um, quem seja outro, ou mesmo que nem sejam mesmo, são parceiros inseparáveis enquanto entenderem que assim devem ser. As discordâncias são notas distintas do mesmo piano, mas inseparáveis a um concerto de vida. O jornalismo me faz estragos. Não saberia viver sem meu dia a dia de Daniel Lima.

O Daniel José de Lima que me perdoe por lhe dar tanto trabalho, por açoitá-lo tanto, sabendo que sei, como Daniel Lima, que aquele menino que veio em cima de um caminhão de mudanças do Interior de São Paulo gostaria mesmo é de viver na calmaria da cidadezinha em que nasceu. Mas o que se pode fazer se a alma jornalística não é pequena?

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