Economia

Por que a Toyota demorou
tanto para deixar a região?

  DANIEL LIMA - 06/04/2022

Pode ser chocante, pode-se até excomungar a manchetíssima de hoje nestas terras provincianas, mas não há nada que deva ser colocado na pauta pós-anúncio da última etapa de retirada da Toyota da geografia regional sem atentar para a realidade dos fatos mais uma vez escancarada. 

Qual é a realidade dos fatos? A competitividade do Grande ABC foi para as calendas em partes importantes do setor automotivo, a atividade mais disputada no mundo dos negócios.  

São quase 600 trabalhadores restantes de uma fábrica que já foi muito maior, inclusive nos tempos em que era montadora de verdade, não apenas uma divisão de autopeças que vai desaparecer de São Bernardo.  

TRÊS ALTERNATIVAS 

Minimiza-se o choque com o noticiário de recolocação dos trabalhadores. Sugere-se na imprecisão inicial do enunciado que os empregos continuariam em São Bernardo. Há quem acreditou que a Toyota fosse uma porção mágica, invisível, a ponto de deixar a Capital Econômica do Grande ABC e permanecer com os quadros de trabalhadores aqui.  

Os metalúrgicos que atenderem ao convite poderão ir para uma das três cidades onde a montadora japonesa atua no Interior do Estado (as vizinhas entre si, Sorocaba, Indaiatuba e Porto Feliz).  

A pergunta que faço e refaço para mim mesmo e sobre a qual poucos se deram conta quando explodiu a nova evasão industrial é a seguinte: por que a Toyota só está se mandando agora. Por que já não foi bem antes? 

O questionamento é simples e a resposta parece lógica. 

DIVISÃO IMPRODUTIVA  

Vamos ao questionamento: se todas as operações industriais da Toyota estão no Interior do Estado, a 150 quilômetros de distância de São Bernardo, por qual razão a divisão de autopeças deveria continuar aqui?  

O distanciamento entre as divisões de produção e o berço de suprimento é válido, interessante e providencial em algumas atividades. Inclusive atividades esportivas.  

Os centros de formação de jogadores do São Paulo e de outras grandes equipes (e até mesmo de pequenas) dá-se em pontos isolados dos profissionais. Do São Paulo é em Cotia. Esse é apenas um exemplo. Só existe interação quando as peças forjadas precisam ser colocadas no mercado milionário do futebol. 

No caso de atividades industriais convencionais, ou seja, no setor de transformação, especificamente no setor automotivo de tantas nuances, quanto maior a proximidade entre as divisões gerenciais e produtivas, mais próximos estarão os resultados do que se chama de produtividade, que consiste em produzir mais com cada vez menos custos relativos, entre outros fatores.  

APROXIMAÇÃO FÍSICA   

Um dos conceitos que mais revolucionaram a atividade automotiva refere-se à proximidade física de autopeças e sistemistas da planta central, em operações consorciadas que levam ao extremo as medidas de proximidade-produtividade-integração.  

Pois a Toyota estava jogando pela janela esse princípio básico de competitividade. E vinha perpetrando esse desperdício desde muito tempo. Praticamente desde que parou de produzir o jipe Bandeirantes, em 2001.  

O Bandeirantes foi barrado do baile do mercado nacional porque impactava demais o meio ambiente. A fábrica da Toyota em São Bernardo substituiu, portanto, uma montadora por uma autopeças, embora alguns veículos de comunicação insistam até hoje em considerar a unidade uma fábrica de veículos.  

CINTO APERTADO  

A melhor explicação especulativamente falando para a decisão da Toyota é que já não é mais possível fazer concessões de qualquer espécie, mesmo que no relacionamento com o sindicalismo. O cinto da competição internacional aperta, os tempos são outros, a busca por lucro que contemple os investidores é brutal e tudo o mais.  

Quem quiser conhecer uma das vertentes dessa guerra de guerrilhas por um espaço de sobrevivência no mundo sobrerrodas deveria ler atentamente a reportagem que a jornalista Marli Olmos produziu para o jornal Valor Econômico desta quarta-feira, que trata especificamente do aparelhamento intelectual e técnico dos novos trabalhadores que se exigem às manufaturas cada vez mais revolucionárias do setor.  

Há limites à participação relevante do setor público do Grande ABC no mundo dos negócios automotivos. Políticas corporativas retratam o ambiente internacional da atividade. Entretanto, nada pode ser colocado no acostamento de possibilidades em busca de interlocução preventiva que pode representar correções de rota de modo a evitar ou minimizar os estragos de debandadas ou deserções, como o caso da Ford em 2019 e da Toyota agora. 

CONTA-GOTAS 

Aliás, sobre debandadas, muita gente ainda tem dificuldades de compreender que operações conta-gotas das grandes companhias da indústria de transformação são a regra básica. 

A Toyota começou a deixar São Bernardo a partir do fim da produção do Bandeirantes. A Ford na medida em que também o ambiente trabalhista se tornou hostil, já no fim dos anos 1970 com o surgimento do movimento sindical bravio.  

A General Motors já deixou nacos importantes da produção pesada em São Caetano e se instalou em Mogi das Cruzes.  

E tantos outros empreendimentos industriais seguem o mesmo ritual.  

Pequenas e médias empresas simplesmente desativam operações ou saem em silêncio rumo ao Interior mais próximo. 

CUSTOS DOS EXCESSOS  

Sei que é chocante escrever o que estou escrevendo porque nestas horas o que mais impera no noticiário são lamúrias de crocodilos que, em vários casos, muito contribuíram para a destruição do tecido industrial do Grande ABC.  

Excessos do passado ganharam tração ao longo dos anos e determinaram medidas reativas dos empreendedores, além, claro, de matizes globalizantes que se resumem num verbete próprio do capitalismo de mercado ou de Estado: retorno do capital investido em forma de lucro aos acionistas.  

Não se conhece na prática nada que interesse mais a quem consta do catálogo de empreendedores e investidores no mundo.  

Qualquer argumentação em contrário é hipocrisia. E não me venham com recriminação. Quem mergulhar no significado de “capital social” descobrirá a gênese dos conceitos que me coloca na arena do jornalismo.  

Agora não adianta nem choro nem vela de demagogias impressas e verbalizadas e muito menos passar o pano de falsidades.  

PERDENDO FEIO  

A realidade nua e crua é que o Grande ABC, como produto em forma de região de três milhões de habitantes, não se preparou à altura das transformações no mundo dos negócios. E isso vem de longe, muito longe.  

Não custa lembrar sempre que na primeira edição da revista impressa LivreMercado, antecessora de CapitalSocial, em março de 1990, evasão industrial e dependência da Doença Holandesa Automotiva configuravam o desenho editorial/conceitual execrado pelos mandachuvas e mandachuvinhas.  

E já que estou relembrando aquela edição, vou um pouco mais longe para dizer que não existe na história econômica do Grande ABC uma mídia sequer que possa se aproximar dos insumos históricos (e preocupantes) do desastre da desindustrialização.  

Quem avocar essa bandeira é ruim da cabeça da verdade dos fatos e doente dos pés da tentativa de iludir o distinto público consumidor de informações.  

BANDA PODRE  

Faço esse registro porque engenheiros de obra feita pretendem avocar para sim um histórico que tem nome e sobrenome duplos: LivreMercado/CapitalSocial.  

E o faço sem que transpire esnobismo. Sei o quanto custou em termos profissionais e corporativos à frente de LivreMercado e de CapitalSocial enfrentar a banda podre ou sofismadora dos malversadores de informações influenciados por forças de pressão sem escrúpulos sociais. 

Afirmar que a Toyota demorou para ir embora não é um posicionamento editorial despudorado, desumano ou coisa que o valha. Diferentemente disso. Trata-se de mais um capítulo de centenas de textos produzidos sempre acoplados de inconformismo com o andar da carruagem. 

E por mais que individualidades devam ser escrutinadas nas administrações públicas do passado e do presente, nada é mais significativamente influenciador no processo de empobrecimento regional que a incompetência quase linear daqueles que dirigiram o Clube dos Prefeitos.  

O Clube dos Prefeitos, por razões fundamentadas aqui ao longo dos últimos anos, chegou ao fundo do poço sob a tutela do prefeito Paulinho Serra, de Santo André.  

AÇÃO DESTRUIDORA  

O interesse político-eleitoral soterrou de vez a possibilidade de se ter uma instância técnica, inteligente, prospectiva. Preferiu-se ajoelhar-se a poderosos chefes de partidos políticos, especialmente a Gilberto Kassab.  

A reciprocidade político-eleitoral à entrega do comando da entidade e de outras instâncias de poder em Santo André, esculhambou de vez o Clube dos Prefeitos.  

Cometeu-se, sem exagero, um assassinato institucional. Sob os aplausos de ramificações igualmente interessadas em navegar em supostas ondas de vantagem de uma integração político-eleitoreira. Nada se viu de tão estúpido, aniquilante e irresponsável em 32 anos de Clube dos Prefeitos. 

O Grande ABC, portanto, não tem competitividade institucional para enfrentar a competitividade automotiva. Novas deserções já estão se dando de forma gradual. Até saltarem às manchetes e provocarem choros demagógicos de sempre.  

SILÊNCIO CONDENATÓRIO  

Para completar, ao ser entrevistado pelo Diário do Grande ABC o presidente da companhia japonesa preferiu ignorar uma pergunta que me parecia fadada a uma redundância histórica.  

A tentativa do jornalista de tomar o pulso do chefe da Toyota quanto a incidência do sindicalismo na decisão de fechar a fábrica de autopeças, não obteve resposta alguma.  

Caí do cavalo da expectativa de que se daria um novo lance de relações públicas, isentando-se o sindicalismo de qualquer responsabilidade, como é comum em situações assemelhadas de esconde-esconde dos fatos.  

O silêncio foi mais que esclarecedor. A mídia tem a mania de minimizar os danos diretos e colaterais de exageros sindicais. Capital e trabalho jamais foram diplomáticos no Grande ABC, como é comum, aliás, no mundo dos negócios. O que irrita é a tentativa de negar o óbvio.  

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