Sociedade

Acisa humilhada é parte
da institucionalidade vazia

  DANIEL LIMA - 27/03/2024

A Associação Comercial e Industrial de Santo André foi humilhada pela Administração do prefeito Paulinho Serra numa tarde que antecedia uma noite de homenagem. Um curto circuito fantasioso cortou o fornecimento de energia elétrica no Legislativo de Santo André. Essa foi a medida utilizada para retirar do âmbito político-eleitoral um evento que se transformou em complicação. A emenda foi pior que o soneto. Os empresários de Santo André foram desprezados. A Acisa se calou.   

Poucos se deram conta de que o caso do falso curto-circuito na Câmara de Vereadores de Santo André é muito mais relevante à história da região do que parece. E vou me fixar exclusivamente, nesse sentido, no comportamento das associações comerciais. Especialmente a Acisa, ao longo dos tempos sempre mais prestigiada por causa da proximidade física e administrativa com o Diário do Grande ABC.

Em raríssimas situações a Acisa desenvolveu iniciativas que ultrapassaram o terreno da burocracia. O assistencialismo no atendimento aos associados é a filosofia administrativa.

SEM PROTAGONISMO

Não se pode incluir como exceção dessa trajetória de assistencialismo aos associados os breves anos dourados da região do Fórum da Cidadania.

O dirigente da Acisa e do Diário do Grande ABC, Wilson Ambrósio da Silva, estava mais vinculado ao jornal do que à entidade. A Acisa era o ponto de reuniões, mas participava daquele movimento como tantas outras organizações coletivas. A Acisa era mais um filiado do Fórum da Cidadania.

Portanto, não se deve dar crédito individual e mesmo de liderança à Acisa. Naquele período, o Grande ABC se mobilizou com as cúpulas diretivas de várias entidades, mas as associações comerciais jamais puxaram a fila. O colegiado tinha a força que se esgarçou porque perdeu o foco, entre outras anomalias.

Conforme o andar da carruagem do Fórum da Cidadania se perdeu nas areias de desengajamento, fruto da diversidade sem rumo e prumo, mais as entidades que o compunham voltaram ao estágio anterior de voyerismo social e econômico.

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

A tradição das entidades de classe comercial da região (e a realidade em centenas de municípios paulistas não é diferente) é mesmo de atendimento técnico ao aparato da burocracia municipal, estadual e federal.

Fosse apenas isso estaria ótimo. Mas há mais questões que colocam a Acisa sob o escrutínio de crítica fundamentada.

É tradição também de entidades assemelhadas uma paixão enorme pela Administração Pública da vez. E os administradores públicos sabem tanto disso que o exploram à exaustão. As associações comerciais, em regra, são puxadinhos de luxo do Executivo, quando não do Legislativo.

Há uma mistureba de relacionamentos e dependências de cunho profissional e pessoal não generalizadas, mas inibidoras a mudanças daqueles que entendem a importância de atuarem com independência. Para os adesistas, estar próximo ao Poder Público é um ponto de honra para ingressar numa camada muito específica da sociedade, integrada por formadores de opinião e tomadores de decisões. Juntar-se aos mandachuvas da vez é a porta aberta ao posto de mandachuvinha.

COOPTAÇÃO E SUBMISSÃO

Trocando em miúdos de modo que não falte acerto na interpretação acima, o que temos é um processo de cooptação em troca de submissão institucional. A Acisa e entidades assemelhadas da região não se metem em defesa da livre-iniciativa com firmeza e determinação porque em alguma situação a Administração Municipal pagaria o pato. As entidades, portanto, estão distantes dos associados, que, igualmente, se sentem impelidos ao ensimesmamento.

A exposição de pontos de vista em defesa dos produtores de riqueza e geradores de renda é um risco quando há no meio do caminho tentáculos municipais. O silêncio prevalece. Há leões comentaristas do quadro nacional que viram bichanos ante holofotes da pauta municipal ou regional.

Aliás, o melhor mesmo seria colocar esse tempo no passado, quando o jogo jogado no cenário estadual e nacional era mais que combinado. Agora que a situação é mais acalorada e definidora de valores, o silêncio é impactante. Temem-se consequências retaliatórias. Privilegiam-se relações incestuosas.

DOMÍNIO IMPERIALISTA

A Acisa só aceitou a humilhação imposta por Paulinho Serra e seu grupo porque Santo André está dominada pelo imperialismo. Mas antes dessa hecatombe, é pouco provável que algo parecido fosse motivo de reação demandada subliminarmente pelos associados. Associações comerciais e prefeituras estão amasiados desde sempre.

Tudo isso é lamentável porque a desculpa esfarrapada que entidade de classe empresarial não tem cores partidárias é uma balela. Isso é desculpa de covardes ou dissimulados para bois negligentes à interpretação dos fatos dormirem.

Todos que frequentam entidades de classe tem seus interesses individuais, principalmente. Não podem ser censurados por isso, mas essa característica deveria estar subordinada a pressupostos pétreos em defesa dos respectivos estatutos. Nos casos das associações comerciais, a bandeira do empreendedorismo privado deveria ser indevassável. Com isso, as iniciativas programáticas jamais poderiam sofrer negligência e tampouco acomodamento. Não é o que temos. Desde sempre.

BAIXA PARTICIPAÇÃO

Raramente, para dar um exemplo clássico, as associações comerciais se lançaram com determinação nos debates cada vez mais raros sobre o peso dos impostos municipais, notadamente do IPTU. Não existe nada em nenhuma das entidades que convirja para algo reformista. Nenhum estudo sequer foi encomendado para extração do perfil desse imposto em cada Município. A Acisa e demais entidades estão preocupadas com o carimbo da próxima declaração de Imposto de Renda. Políticas públicas municipais que se lixem.

Outro exemplo? Nunca, jamais e em tempo algum houve consorciamento das associações comerciais para o enfrentamento a determinadas reações provocadas pela desindustrialização e seus efeitos destruidores.

Já imaginaram se em conjunto, ou mesmo individualmente, cada uma no respectivo quadrado municipalista, providenciassem a reorganização das áreas centrais, abandonadas e submetidas a um terceiro-mundismo ocupacional de comerciantes e prestadores de serviços?

Poderia ir muito mais longe em forma de proposições que dinamizariam o tecido econômico de Santo André e da região, mas isso é tarefa também das associações comerciais em demandas independentes junto às prefeituras. Sabe quando isso vai ser possível? Jamais.

Pelo menos enquanto a cultura de boa-vizinha e inoperância for acalentada como forma de estreitar relacionamentos.

HUMILHAÇÃO CONSENTIDA

A Acisa foi humilhada pela Prefeitura de Santo André no dia em que receberia homenagem aos 86 anos de fundação. O convite enviado aos associados pelo vice-prefeito Luiz Zacarias foi o estopim, combinado com a moção de homenagem do vereador Lucas Zacarias, filho do vice-prefeito. Quando Zacarias enviou os convites, já estava rompido com o prefeito, que o preteriu como candidato à sucessão. A homenagem foi retirada da programação do Legislativo após providencial corte de energia.  

A Acisa foi submetida a uma situação constrangedora. E se saiu muito mal porque, de imediato, aceitou a versão oficial e fraudulenta. Poderia ter agido diferente. Deveria procurar investigar o que de fato ocorreu. As evidências eram robustas. Poderia aguardar alguns dias e, com domínio dos fatos sonegados, decidisse por manifestação oficial de repúdio.

Esperar esse desfecho da Acisa comandada por Evenson Dotto seria demais. Como o seria também com presidentes anteriores. O que temos é a calcificação de uma cultura de aproximação tácita. Haja o que houver. O Poder Público controla a Acisa. Em outros municípios ocorre casos iguais ou semelhantes ou as entidades de classe são tão frágeis que nem precisam de tutores públicos.

VOLTANDO AO PASSADO

Aos desavisados ou paranoicos, quando não aos ressentidos por alguma razão, reboco à breve análise de hoje uma das muitas incursões que fiz ao longo da história do melhor jornalismo regional do País.

Na edição de dezembro de 2002 da revista de papel LivreMercado, antecessora de CapitalSocial, abordei o isolacionismo e a baixa produtividade das entidades de classe empresarial na região. Uma abordagem que se encaixa no que estou escrevendo hoje. Afinal, as entidades empresariais já fracassavam como representação dos empreendedores.

A situação só piorou desde então. Especialmente nas associações comerciais, que têm liberdade para atuar. Os Ciesps dependem demais da central na Avenida Paulista.

A mudez da Acisa no caso do curto-circuito fajuto não é um fato isolado, tampouco uma situação em desacordo com as probabilidades. Infelizmente, se trata mesmo de uma derrapada institucional que se repetirá sempre diante de qualquer outro cenário de potencial constrangedor.

As associações comerciais são boas na prestação de serviços, mas devem muito à sociedade em matéria de representatividade político-institucional dos empreendedores no campo de jogo jogado para ganharem competitividade e reduzirem os índices de mortalidade dos negócios. Mais que deverem, são inadimplentes.

 

Já imaginaram a região com

uma única entidade empresarial? 

 DANIEL LIMA - 03/12/2002

 

A integração que se espera como alavanca para a superação de problemas históricos do Grande ABC passa pela racionalidade técnico-institucional dos agentes empresariais subdivididos em diferentes entidades. Enquanto prevalecer o desperdício do separatismo das associações comerciais e dos Ciesps, que, como remadores enlouquecidos, movem suas pás em diferentes sentidos num bote que está à deriva e não consegue sair do redemoinho que o engolfa, dificilmente o desenvolvimento econômico sustentável reunirá essa porção importante do capital social.

Considerando-se o formato atual e pregresso das entidades de classe, no qual prevalece em larga escala a hierarquia de dirigentes cujas atividades principais estão voltadas a seus próprios negócios, a pasmaceira institucional viverá de fluxos e refluxos erráticos, sem táticas nem estratégias definidas. As atividades se darão mais consistentemente como entidades prestadoras de serviços técnicos aos associados. Se por um lado essa vertente é indispensável à manutenção financeira, por outro transforma as entidades em modelo de escritórios de luxo.

APROXIMAÇÕES VACILANTES

Muito se critica e se cobra das organizações públicas do Grande ABC, que a partir do começo dos anos 90 iniciaram morosa e oscilante conjugação de esforços em algumas áreas. As aproximações são vacilantes em muitos pontos nevrálgicos para a importância desse período de fundas perdas regionais. Entretanto, mesmo que o saldo não seja extraordinariamente positivo como alguns tentam vender, ou, para ser mais preciso, está muito aquém das necessidades, pelo menos os prefeitos tiveram o mérito de quebrar o gelo de décadas de distanciamento.

Já as associações comerciais e os Ciesps só se lançaram como protagonistas coletivos, mesmo assim distantes da pauta dos empreendedores locais, durante os primeiros anos de Fórum da Cidadania. Um plano especificamente voltado ao assentamento de questões mais profundamente inquietantes da classe, associado à inserção nos macroproblemas regionais, jamais foi elaborado. Age-se sob influências de pressões pontuais e localizadas em determinados municípios. Regionalidade continua sendo objeto não-identificado das supostas lideranças empresariais. Apenas a Acisa, com determinados programas, de vez em quando dá um choque de extroversão corporativa, mesmo assim sem o aparelhamento técnico específico que se recomenda.

ISOLAMENTO MÚTUO

Pior do que a constatação da falta do acorrentamento voluntário das entidades de classe empresariais é a solidificação do determinismo de manter o isolamento mútuo como prova de independência. Há muitos anos a Acisa, por exemplo, tem procurado sincronizar ações prestadoras de serviço com as demais associações comerciais, para, entre outros aspectos, alcançar o que se tornou dogma na iniciativa privada: o ganho de escala. Qual nada! Para cada eventual passo dado à frente, sempre aparece alguém para provocar dois passos atrás.

Há muitas questões regionais que poderiam ganhar agilidade se as entidades empresariais fossem unidas e reconhecessem humildemente que há especialistas no mercado que, se contratados por tempo determinado, poderiam oferecer adensamento de qualidade de informações estratégicas às próprias entidades.

Outro dia mesmo sugeri que se contasse com um profissional especializado em IPTU para vasculhar todos os municípios da região de forma a detectar os mais variados aspectos do tributo e, com base nas realidades sempre recônditas, se achassem subsídios para a uniformização dos pleitos. É impossível falar com seriedade de competitividade sem que se tenha acesso seguro às especificidades municipais da região. O mesmo vale para o ISS, o ITBI e outros impostos e taxas municipais que são uma caixa-preta porque não temos o que convencionamos chamar de capital social.

RODOANEL AUSENTE

Muitos outros exemplos poderiam ser citados como atribuições que as entidades de classe empresariais compartilhariam com conhecimento de causa com demais agentes sociais da região.

O caso do trecho sul do Rodoanel é escandalosamente claro. Parece que a Associação Comercial e Industrial de Santo André vai à luta, agora com o empenho das demais entidades. Trata-se de reação atenciosa à proposta deste jornalista, mas é muito pouco ainda: a concentração de interesses estratégicos que fujam do formato essencialmente classista é uma exigência destes tempos. Como tal, obriga à constituição, mesmo que informal, de forças-tarefas decididas a valorizar o temário econômico da região.

O que quero dizer com isso? Que até mesmo de forma independente desse modelo arcaico que esbofeteia a regionalidade pretendida é possível encontrar espaço construtor de organização integrativa em questões de responsabilidade institucional. Não é, certamente, a solução ideal, que passa pela compactação e enxugamento das representações classistas dos empresários. Mas é um arremedo que quebra o galho e pode, se bem instrumentalizado, induzir à amarração estrutural mais ampla.

AJUNTAMENTO?

Traduzindo tudo isso de forma bem didática: o ideal é que as associações comerciais e os Ciesps da região se fundissem num único organismo regional, com gestão compartilhada de base representativa igualmente regional e que se debruçasse sobre questões assemelhadas e diferenciadas de forma engenhosa.

 Enquanto o bom senso perde o jogo para o individualismo, que se planejem ações integrativas de cunho institucional e voltadas ao desenvolvimento econômico sustentável, por meio de força-tarefa diretiva que atuaria mutuamente além de suas próprias e antiquadas fronteiras. Seria um remendo interessante para se chegar ao modelo ideal. Um caminho pragmático que ultrapassaria as barreiras provincianas. Um chute nos fundilhos do municipalismo que deveria ser riscado do mapa geoeconômico regional.

Será que nem disso serão capazes os dirigentes das associações comerciais e dos Ciesps e também os demais sindicatos empresariais da região, caso do varejista, dos hotéis e bares, dos moveleiros e tantos outros menos votados? Será que a maioria de seus titulares não entendeu ainda que o jogo da institucionalidade mudou completamente com a globalização e que, exatamente por isso, regionalidade passou a ser palavra de ordem?

IMPONDO O JOGO

O setor público regional — uma variante do setor público estadual e federal — está muito à vontade para impor seu jogo porque não sofre qualquer pressão organizada e planejada de agentes econômicos. É por essas e outras que todos os problemas nacionais e estaduais, sobretudo o avanço pantagruélico sobre o bolso dos contribuintes, têm a mesma fundamentação lógica: a bobagem do restante da sociedade em se manter dividido e individualizado, imaginando que um passo à frente, de vez em quando, não seja apenas uma traquinagem ótica porque, quando isso se dá de fato, o bonde da história há muito passou pela estação da responsabilidade compartilhada e produtiva. Esse jogo em que a sociedade desorganizada sempre perde precisa mudar, como recomenda o teórico da Terceira Via, Anthony Guiddens.

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