DIÁRIO, MARCELO,
MORANDO E NOTAS

De vez em quando coloco minha sanidade mental em dúvida. Todos deveriam fazer o mesmo. Acho, de vez em quando, que o tiro no rosto à queima-roupa mexeu com meus miolos. Querem um exemplo? A manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) de hoje do Diário do Grande ABC é um desafio cerebral. Não consegui entender os enunciados. Há conflitos a serem dirimidos. Há imprecisões também. Há de tudo que exige a ação de um ombudsman metido a besta.
Por tudo isso, encerrei a leitura de ombudsman não autorizado repleto de questionamentos. E questionamentos levam a especulações. Sofro como ombudsman da região, um ombudsman autorizado pelos serviços prestados. Já expliquei várias vezes que ler como leitor é uma coisa. Ler como ombudsman é outra coisa. É algo como assistir a um jogo e participar de um jogo. Se você acha que estou exagerando, pegue a manchetíssima de hoje do Diário do Grande ABC e leia tudo. Faça isso antes de continuar esta leitura. Duvido que você encontrará as inconformidades que encontrei. Se me lançasse à leitura como você e a maioria se lançam, não captaria bulhufas do que encontrei como ombudsman.
MANCHETÍSSIMA DO DIA
Para tentar chegar o mais próximo possível da elucidação do caso de hoje, e quem sabe à conclusão de que o maluco não é este jornalista, tomei a decisão que sempre tomo: vou reproduzir o texto publicado e, em seguida, preparo mal-traçadas linhas na tentativa de encontrar um eixo de sustentabilidade que me retire da enrascada. Estou lúcido ou flerto com a loucura?. Detenho conhecimento comprovado na área ou sou um ignorante pretensioso?
Vamos partir do começo, e o começo é a manchetíssima do Diário do Grande ABC: “Notas mostram que Morando deixou dívida a Marcelo Lima”.
Agora, o texto de primeira página, conhecido no jargão jornalístico como “chamada de primeira página”, que vem logo em seguida à “linha auxiliar”. Vamos então primeiro à linha auxiliar?: “Diário obteve oito faturas em aberto da gestão do ex-prefeito de São Bernardo, que havia desafiado a apresentação de provas”. Feito isso, agora sim, vamos ao texto de chamada da manchetíssima de primeira página:
Oito notas fiscais obtidas pelo Diário mostram que o prefeito Orlando Morando (sem partido) deixou dívidas vencidas em sua gestão, encerrada em 31 de dezembro de 2024, para o sucessor, Marcelo Lima (Podemos), pagar. Em live na quinta-feira, o ex-chefe do Executivo tinha negado a informação e desafiado: “Se alguém tem alguma dúvida, quero que apresente a fatura vencida”. Uma delas é da Fundação do ABC, que gerencia a rede municipal de saúde. Com o número 465.772, o documento fiscal no valor de R$ 445.369,08 vencera em 31 de outubro de 2024, mas a quitação, via TED, somente foi autorizada e realizada em 3 de janeiro de 2025. Questionado ontem, Morando inicialmente manteve a versão original, mas, ao ser apresentado ao documento emitido pela FUABC, disse que o valor devido foi deixado em caixa para ser efetuado o pagamento em janeiro de 2025” – escreveu o Diário do Grande ABC na primeira página de hoje.
PÁGINA INTERNA
Agora, vamos à página interna, sob o título “Notas provam dívida de Morando”, e a linha auxiliar ‘‘Diário obteve cópias de oito faturas cujo vencimento era anterior a 31 de dezembro de 2024, mas foram quitadas pela gestão Marcelo Lima”.
Oito notas fiscais obtidas pelo Diário mostram que o prefeito Orlando Morando (sem partido) deixou dívidas vencidas durante sua gestão, encerrada em 31 de dezembro de 2024, para o sucessor, Marcelo Lima (Podemos), pagar. Em live realizada na quinta-feira, o ex-chefe do Executivo tinha negado a informação e desafiado que se apresentassem provas. Em 20 de fevereiro, o jornal mostrou que Morando não quitou R$ 274 milhões de faturas vencidas em sua administração. Alguns boletos atrasados, quitados em janeiro, datavam do mês de setembro. Naquela noite, em vídeo nas redes sociais, o ex-prefeito negou a informação. “Se alguém tem alguma dúvida, quero que apresente a fatura vencida”, disse. “Respeito a crítica, mas a verdade é essa”, completou. Nos últimos dias, a reportagem obteve com fontes ligadas à Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Bernardo cópias de oito notas fiscais com vencimentos anteriores ao último dia do ano passado e os respectivos comprovantes de pagamentos realizados já na nova gestão. Uma das notas é da FUABC (Fundação do ABC), que gerencia a rede municipal de saúde de São Bernardo. Com o número 46.772, o documento fiscal no valor de R$ 445.369,08 tem vencimento em 31 de outubro de 2024. O pagamento da fatura, via TED, foi autorizado e realizado em 3 de janeiro de 2025. Há uma diferença entre os valores cobrados e o efetivamente pago, de R$ 16.014,83. Questionada pela reportagem do Diário, a Prefeitura explicou que se tratam dos descontos relacionados à alimentação fornecida aos funcionários ligados à FUABC e à emissão de segundas vias de crachás. Mesmo diante das provas, o ex-prefeito seguiu dizendo que honrou todas as notas vencidas até o fim da administração. “A gestão do então prefeito de São Bernardo, Orlando Morando, não deixou débitos a pagar”, posicionou-se, via assessoria de imprensa. Ao ser apresentado à nota 46.772 da FUABC, relativa aos serviços prestados em setembro, o ex-prefeito mudou a versão e disse que reservou dinheiro para a quitação da dívida. “Informa-se que a prefeitura não paga nada antecipado e o valor devido foi deixado em caixa para ser efetuado o pagamento em janeiro de 2025.”
AOS ESCLARECIMENTOS
Vamos tentar esclarecer o que está mais que confuso, porque a semântica permeia a reportagem do Diário do Grande ABC tanto quanto a mísera (em termos espaciais) defesa do prefeito Orlando Morando.
Antes de expor a análise crítica, e como eixo de equilíbrio ao que se segue, diria que qualquer manchetíssima de jornal só poderia ser rotulada como manchetíssima de jornal obedecendo-se alguns princípios. Em nenhum se encaixa a manchetíssima do Diário do Grande ABC de hoje, como se verá adiante. Manchetíssima que é manchetíssima tem robustez informativa. Não deixa pedra sobre pedra, mesmo que dúvidas assaltem o leitor. Manchetíssima (um neologismo deste jornalista) é o suprassumo da edição porque não se pode prender apenas à informação bombástica ou não, mas à estrutura conceitual da própria publicação, ou seja, seguindo cláusulas pétreas de um jornalismo consistente e confiável.
PRIMEIRA INCONFORMIDADE
A manchetíssima “Notas mostram que Morando deixou dívidas a Marcelo Lima” está parcialmente correta -- a semântica está embutida no enunciado. Faltou dizer – e isso é uma conclusão temporária, precária, porque faltam informações básicas na reportagem – que a dívida paga cronologicamente no mandato de Marcelo Lima foi tecnicamente honrada no mandato de Orlando Morando. Como assim? O montante, no caso, estaria reservado no caixa da Prefeitura. Ao que parece, essa informação é inquestionável, porque a dívida foi paga no terceiro dia útil do novo prefeito. Um histórico cronológico das relações entre a Prefeitura e a Fundação do ABC eliminaria dúvidas sobre procedimentos de quitações.
SEGUNDA INCONFORMIDADE
Embora o Diário do Grande ABC faça referência a um combo de oito notas fiscais que teriam fugido do controle de pagamento do prefeito Orlando Morando, a reportagem só se refere a uma situação. Ficou um buraco imenso à curiosidade dos leitores. Também valeria para essas supostas dívidas o mesmo tratamento procedimental sugerido, ou seja, da ordem de pagamento em termos de cumprimento de prazos fixados.
TERCEIRA INCONFORMIDADE
Afirma o Diário do Grande ABC que, ao ser questionado sobre a cronologia de pagamento à Fundação do ABC, o prefeito teria alterado a versão inicialmente exposta. Morando dissera anteriormente, segundo o relato do jornal, que “se alguém tem alguma dúvida, quero que apresente a fatura vencida”. Já na suposta nova versão atribuída pelo jornal, Morando disse que o valor devido foi deixado em caixa para ser efetuado o pagamento em janeiro”. Viram como a semântica jornalística e a semântica técnica se chocam? Resta, nesse caso, uma explicação elementar e irrebatível até prova em contrário: o dinheiro, conforme disse o prefeito, estava reservado em caixa ao pagamento nos primeiros dias de janeiro. E o pagamento foi feito nos primeiros dias de janeiro. Seria alucinação afirmar que Orlando Morando não deixou dívida alguma nesse caso? Se a fatura não houvesse sido quitada, o ex-prefeito de São Bernardo poderia perder o argumento de defesa.
QUARTA INCONFORMIDADE
Há clamorosa desproporção tanto em termos quantitativos como principalmente editorial na reportagem da manchetíssima de hoje do Diário do Grande ABC. Reservaram-se apenas as últimas linhas às explicações do ex-prefeito. Algo protocolar que geralmente tem o falso sentido de sugerir informações de mão dupla. Não é a primeira vez nem será a última que o jornalismo de papel, que se proclama inume às diabruras das redes sociais, atua deliberadamente ou não para confirmar os enunciados previamente definidos, independentemente da consecução da reportagem tendo como base, sobretudo, ouvir o outro lado com presteza. E, também, se necessário, como parece o caso, contar com fontes de informações, no caso gente do ramo de execução orçamentária que poderia traçar o roteiro padrão de pagamento de prefeitos a cada temporada de mandato.
EQUIDADE DE TRATAMENTO
O que se nota na reportagem do Diário do Grande ABC de hoje e de há muito tempo é a preferência por praticar jornalismo investigativo (o que é ótimo) levando-se em conta cores administrativas nos sete municípios. Para ser pragmático: ontem mesmo, enquanto o Diário do Grande ABC preparava a reportagem publicada hoje, o vereador psolista Ricardo Alvarez trombeteava nas redes sociais um rombo estratosférico na gestão de Paulinho Serra, em Santo André. Alvarez não é um vereador qualquer. Está sempre atento às contas publicas em Santo André. Mais que isso: há fontes de todos os calibres, ligadíssimas ao ex-prefeito Paulinho Serra, dano conta de que o rombo orçamentário é mesmo gigantesco. Seria uma pauta interessante a todas as mídias. O Diário do Grande ABC deveria ouvi-lo. Alvarez é um vereador de lastro ou um fanfarrão?
PROPOSTA AOS PREFEITOS
Por fim, vou ser breve na proposta ao Clube dos Prefeitos: que tal o prefeito de São Bernardo e prefeito dos prefeitos, Marcelo Lima, reunir os titulares dos paços municipais e propor prestação de contas em fevereiro de cada ano, num encontro aberto com representantes da sociedade servil e desorganizada? Um encontro didático, compreensível, com tradução instantânea do economês para a linguagem da cidadania. Vou voltar a esse assunto. Marcelo Lima tem uma grande oportunidade de brilhar como inovador no Clube dos Prefeitos.
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