Política

PESQUISAS ELEITORAIS
ALÉM DOS NÚMEROS (27)

  DANIEL LIMA - 29/11/2024

Mais uma vez pego no cangote jornalístico-estatístico da Folha de S. Paulo e do Datafolha, irmãos siameses na arte de fazer dos números múltiplas derivações interpretativas geralmente dando um peteleco na racionalidade. Em abril do ano passado analisei uma pesquisa do Datafolha sobre evangélicos e católicos e o mundo político. Acho que vale a pena você dar uma espionada no que se segue. Se puder, ganhe um fôlego mental entre alguns trechos e outros trechos para que o treco do entendimento não seja desvirtuado. Não estou exagerando. Nestes tempos de leituras dinâmicas por conta da diversidade de fontes de informações, muitas das quais inúteis, toda atenção não é a atenção total. 

 

Folha envolve evangélicos

e católicos em fake news

 DANIEL LIMA - 12/04/2023

A Folha de S. Paulo publicou no último sábado uma reportagem que só não é mentirosa porque também é manipuladora e só não é mentirosa e manipuladora porque também subestima a inteligência dos leitores. É uma parruda fake news. Da manchete ao último parágrafo. Vou enviar uma cópia desta análise ao ombudsman da Folha. O ombudsman da Folha é ombudsman chapa-branca que se finge ombudsman da Folha.  

A reportagem (com dados do Instituto Datafolha) contrapõe evangélicos e católicos na avaliação do governo Lula da Silva. O trabalho jornalístico feito sob medida para enganar o distinto público nem deveria ser base de reportagem porque estatela-se no pecado capital de numa metodologia que agride a ciência.  

Já a partir do título (“Evangélicos ainda provocam estragos em avaliação de Lula, indica Datafolha”), a reportagem do Datafolha comete o crime ético de apontar uma porção religiosa pelo conjunto da obra de descaminho do governo de Lula da Silva. O que o título sugere é que somente os evangélicos, vistos sempre e discriminadamente como segmento conservador no sentido mais crítico do termo, estariam impedindo que Lula da Silva saísse para comemorar com a galera os primeiros 100 dias de governo. Uma balela.  

PARA ENTENDER   

Vamos ao que interessa. Vou reproduzir o texto completo da Folha de S. Paulo, de forma escalonada, com as respectivas intervenções explicativas e críticas.   

Os leitores vão entender o que nenhum ministro do Supremo Tribunal Federal jamais decifrariam fosse instado a analisar a reportagem da Folha. Nada que o incriminasse tecnicamente. Não é da alçada do Judiciário entender as armadilhas do jornalismo. Tudo a incriminar o Judiciário por atuar fora do quadrado de conhecimento, quando se verifica que alguns pretendem construir conceitos sobre as chamadas fake news.  

A reportagem da Folha de S. Paulo é uma sequência de retalhos de fake news e formam uma rede imensa de fake news porque junta algumas verdades submersas a meias-verdades, meias-mentiras, mentiras inteiras e prevaricações ética ao se concentrar em unilateralidades discriminatórias. Vamos à análise.  

FOLHA DE S. PAULO 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não conseguiu reverter até aqui o azedume do meio evangélico com sua figura. Pesquisa Datafolha feita no apagar do seu primeiro trimestre no novo mandato detectou abismos persistentes na forma como os dois maiores blocos religiosos do país, católico e evangélico, veem o petista. A porção de crentes que define a atual gestão como ótima ou boa é de 28%, bem abaixo dos 45% de seguidores do papa Francisco que a aprovam. A média, na população geral, é de 38%. Já os evangélicos que acham o governo ruim ou péssimo somam 35%, dez pontos percentuais a mais do que no estrato católico.  

CAPITALSOCIAL 

Tratar como “azedume” o eleitorado evangélico no trato com o presidente da República soa como algo passageiro, ocasional, circunstancial, quando se sabe que as razões são profundas e vão além do aplauso fácil da Velha Imprensa.   

FOLHA DE S. PAULO  

A polarização que rachou o eleitorado no ano passado ainda causa estragos na popularidade de Lula nas igrejas evangélicas, com apenas 21% de seus fiéis se dizendo esperançosos de que o presidente cumprirá a maioria das promessas feitas no pleito. A fatia confiante, no catolicismo, é mais generosa: 32%. A base de apoio a Jair Bolsonaro (PL) nos templos, por outro lado, não minguou. Um exemplo é a reação do segmento à possibilidade de uma ação tornar o ex-presidente inelegível, se condenado por atacar sem provas as urnas eletrônicas. Metade da população diz que, sim, a Justiça Eleitoral deveria enquadrá-lo. Já os crentes que concordam com isso totalizam 39%, enquanto 58% desejam vê-lo inocentado. Católicos nutrem menos simpatia pela hipótese: 56% querem Bolsonaro vetado nas próximas eleições, contra 39% que preferem sua absolvição.  

CAPITALSOCIAL  

Quando se trata de algo desfavorável ao ex-presidente, a reportagem da Folha deixa de lado qualquer adjetivação que exale transitoriedade, vulnerabilidade, e trata os resultados com segurança estrutural.   

FOLHA DE S. PAULO  

Também é mais misericordiosa a visão que evangélicos têm da parcela de culpa que cabe ao antecessor de Lula na depredação em Brasília no 8 de janeiro. Não creditam a Bolsonaro qualquer responsabilidade pelos ataques 46% do grupo. Pensam igual 37% dos subordinados ao Vaticano.  

CAPITALSOCIAL  

Mais uma vez a reportagem não deixa margem a qualquer tipo de mudança nos resultados.  O uso do termo “misericordiosa” relacionado à visão de evangélicos sobre a suposta culpa de Bolsonaro nos episódios de oito de janeiro também carrega uma carga de fanatismo inocentador, com o intuito de descredenciar o comportamento do segmento. Mensagens subliminares têm força indutiva maior que, em muitos casos, que o escracho.  

FOLHA DE S. PAULO 

Estamos falando dos dois maiores estratos religiosos do Brasil, que juntos correspondem a 73% dos 2.028 entrevistados pelo Datafolha em 126 cidades, nos dias 29 e 30 de março. Evangélicos formam 27% da amostra, e católicos, 46%. A margem de erro é de quatro pontos percentuais, para mais ou para menos, no caso dos primeiros, e de três pontos para o segundo bloco. 

CAPITALSOCIAL 

Esse é o ponto metodológico que descredencia os resultados e também a interpretação maliciosa dos resultados. A margem de erro é muito maior, extraordinariamente maior, do que é mencionado na reportagem. A margem de erro de dois pontos percentuais para cima ou para baixo da pesquisa do Datafolha só é válida à integralidade de mais de duas mil entrevistas. Na medida em que questões laterais, viram ponto central de avaliação, estoura completamente a margem de segurança. Os 27% de evangélicos que responderam aos entrevistados, tanto quanto os 46% dos católicos, são menos da metade do total de entrevistados que responderam às questões nucleares. Os 27% dos evangélicos significam 540 entrevistados, enquanto os 46% de católicos não alcançam metade dos mais de dois mil entrevistados. A margem de erro para cada segmento ultrapassa os limites máximos à sustentabilidade cientifica. Ou seja: como em tantas outras situações análogas, os desdobramentos das pesquisas do Datafolha são uma fraude porque tratam um determinado estrato temático suplementar como base do trabalho.   

FOLHA DE S. PAULO  

O levantamento também mediu o quão afeita ao petismo ou ao bolsonarismo a pessoa se considera, a partir de uma escala de 1 a 5 —1 sendo bolsonarista, 2, mais próximo do ex-presidente, 3, neutro, 4, mais alinhado ao PT e 5, petista. No cômputo geral, 30% da população se declara petista, e 22%, bolsonarista. Quando levamos em conta apenas evangélicos, 29% se encontram no bolsonarismo versus 23% que optam pelo petismo —ponderando as margens de erro específicas, um cenário de empate. Entre católicos fica assim: 19% estão engajados nos valores simbolizados pelo ex-presidente, enquanto 36% se dizem fiéis ao partido de Lula.  

CAPITALSOCIAL 

Verifica-se a incorreção de erro metodológico já apontado. Não existe possibilidade alguma de o resultado alardeado pela reportagem ter consistência cientifica. É chutometria pura. Para que se obtivesse o resultado propagado ou provavelmente outro bem diferente ou não, seria necessário, como na questão anterior, que fossem entrevistados mais de dois mil bolsonaristas (foram apenas 22% desse total) e, em outra pesquisa, mais de dois mil lulistas (foram apenas 30% desse total). Aí sim a margem de erro de dois pontos asseguraria os resultados.   

FOLHA DE S. PAULO  

O renitente apego a Bolsonaro e tudo o que ele representa é em parte explicado por uma retórica do pânico ainda muito popular nos púlpitos, diz a antropóloga Lívia Reis, do ISER (Instituto de Estudos da Religião). "Ainda que, logo após as eleições, lideranças religiosas midiáticas tenham prometido orar pelo presidente eleito, isso não significou trégua. Nas igrejas e na internet, acusações de corrupção e perseguição à fé cristã ainda são pauta." Aposta-se, portanto, "na mobilização pelo medo e na narrativa que aponta a incompetência de Lula e de quem ele escolheu para compor o governo".  

CAPITALSOCIAL  

Mais uma vez o texto da Folha de S. Paulo está carregado de discriminação. Frase como “O renitente apego a Bolsonaro e tudo o que ele representa é em parte explicado por uma retórica do pânico ainda muito popular nos púlpitos”. Tanto quanto a declaração da entrevistada de que “nas igrejas e na internet, acusações de corrupção e perseguição à fé cristã ainda são pauta”, como se tanto uma coisa quanto a outra não fossem porções de realidades de intolerâncias e conhecimentos mútuos. Negar que o governo Lula da Silva é a síntese de corrupção e que a perseguição à fé cristã não tem parentesco com ditadores latinos e de outras plagas com os quais lideranças do PT flertam o tempo todo é subestimar os acontecimentos.    

FOLHA DE S. PAULO 

Para Reis, o pressuposto de que a tradicional família brasileira e o próprio cristianismo estão sob ameaça nos anos Lula revela como a disputa narrativa será conduzida nos próximos anos: no campo da cultura. "Criminalização do funk e críticas ainda mais ferozes à discussão de gênero voltaram a ocupar o centro do debate não só nas redes, mas também no Congresso." O deputado federal Mario Frias (PL-SP), ela lembra, protocolou um projeto de lei que, em linha gerais, propõe criminalizar o gênero musical exportado pelas periferias. Na internet, influenciadores religiosos produzem vídeos que associam o funk ao aumento de casos de abuso sexual infantil. 

CAPITALSOCIAL 

A reportagem da Folha trata as questões mencionadas como suporte à intolerância bolsonarista, como se de outro lado não houvessem pecadores. O mundo-cão da Internet é tão democrático quanto demolidor – e isso vale para os dois times ideológicos que dividem a arena nacional. Tanto a esquerda quanto a direita contam com exemplares que ultrapassam todos os limites de civilidade, mas isso faz parte do jogo da liberdade de expressão. Tanto quanto, embora de formas diferentes, a reportagem manipuladora da Folha de S. Paulo – um recheadíssimo prato de fake news.    

FOLHA DE S. PAULO   

O aborto, claro, não fica de fora das guerras culturais que encorajam embates entre o conservadorismo encarnado na liderança de Bolsonaro e o progressismo arvorado em Lula. O cientista político Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, destaca ainda o papel das fake news. Quinhão expressivo dos evangélicos, afinal, acostumou-se a se basear "nesse ecossistema informacional bolsonarista", hábito que não foi embora com as eleições. "Tem uma série de notícias falsas que circulam ali. Muita coisa relacionada à questão da segurança pública, papos sobre Lula soltando bandidos." 

CAPITALSOCIAL 

De novo a recíproca é verdadeira. Entretanto, para quem não acompanha a cena nacional tanto na Velha Imprensa quanto nas redes sociais a impressão que se passa, ao ler a reportagem da Folha de S. Paulo, é que só existe um lado de pecadores e que os chamados progressistas são anjos de plantão, consternados por acompanhar silenciosamente todas as barbaridades humanas do outro lado do balcão ideológico. 

FOLHA DE S. PAULO  

Empesteiam as redes, por exemplo, vídeos de supostos criminosos festejando enquanto fazem o "L", famosa deferência ao presidente. Para Valle, o governo não tem conseguido trazer uma pauta direcionada a evangélicos, mas a falta de esforço seria atenuada por um ponto positivo: a tão propalada caça aos cristãos, como a fake news de que Lula fecharia igrejas, não aconteceu.  

CAPITALSOCIAL  

Repete-se a cantilena de exageros de um lado para desclassificar o conjunto da obra desse mesmo lado. Quem acompanha as redes sociais com isenção e observa atento os dois lados de intolerância sabe que muitos vídeos de criminosos que fazem o “L” não são supostos vídeos de criminosos, são realidade de um País tão desigual quanto em busca de proteção fora da lei. Quanto ao fechamento de igrejas, o que estimula a imaginação e o empesteamento de suposições é o alinhamento de Lula da Silva a ditadores latinos que perseguem cristãos.    

FOLHA DE S. PAULO  

Se a economia prosperar, melhor ainda para a relação entre PT e evangélicos, uma camada composta sobretudo por mulheres negras e pobres, mais vulneráveis às oscilações econômicas. Haveria margem, portanto, para uma conciliação com o segmento, que pode vir após o arrefecimento de ânimos eleitorais, afirma o cientista político. Pastores mais belicosos sempre existirão, e Silas Malafaia seria um exemplo pronto disso, mas boa parte dos líderes não é intransigente a Lula, diz. Mas ainda é cedo. "Uma aproximação muito forte agora seria até estranho de ver, visto que houve campanha forte para que evangélicos demonizassem a esquerda."  

CAPITALSOCIAL 

É exageradíssima a suposição de que evangélicos e petistas se encontrarão e darão as mãos em algum lugar no futuro, de acordo com a recomposição mais forte do tecido econômico da nação. Há tanta divergência explicita e subjetiva entre as duas porções, emulada diariamente nas redes sociais, que parece mais sensato imaginar o aprofundamento do fosso que as separa. Qualquer prognóstico sem considerar o estágio a que chegou o nível de rejeição dos evangélicos ao petismo lulista, incrementado nas redes sociais, tendo como base o passado remoto sem a densidade de aparelhinhos celulares, não passa de ignorância juramentada. Tanto quanto imaginar que níveis de aprovação de presidentes do passado, também sem smartfone, se reproduziriam nestes tempos de tanta visibilidade do ambiente político.

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