Sociedade

Triângulo Escaleno vira
Triângulo das Bermudas

  DANIEL LIMA - 02/04/2024

Você vai entender completamente o que quero dizer e vou dizer porque tenho que dizer sob pena de ser um pecador crítico. Decidi buscar no fundo do baú deste CapitalSocial, de junho de 2004, portanto há  20 anos, uma análise à qual vou impor sobreposição providencial e projeção indescartável.

Vou provar que do Triângulo Escaleno nos aprofundamos tanto em pecaminosidades institucionais que viramos, como previ naquela análise, no último parágrafo, o Triângulo das Bermudas.

Não vou entrar em detalhes sobre o significado sociológico de Triângulo Escaleno. Tudo está ao que parece bem escritinho logo abaixo, na análise à qual fiz menção.

Em suma (e sem detalhamentos porque perderia a graça), já naqueles distantes 20 anos fazia um alerta sobre o domínio do ambiente municipal e regional, quando não estadual e federal, pelo Estado, em detrimento do Mercado e da Sociedade.

Chamava a atenção para aquela situação, levada a cabo sob a inspiração de um dos muitos ideólogos que cultivei ao longo de minha carreira profissional, identidade igualmente reservada ao texto abaixo.

DOIS TRIÂNGULOS

O título daquela análise publicada originalmente na coluna  Campo Aberto, que criei no Diário do Grande ABC (estava naquele período Diretor de Redação do jornal) é o mesmo título que consta da primeira linha da manchetíssima aí de cima, “Triangulo Escaleno”.

Quem não sabe o que é triângulo escaleno como figura geométrica e como metáfora sociológica vai saber lendo o que está logo abaixo.

Não seria desimportante lembrar que aquele texto de 20 anos atrás de fato não brotou naquela data como num passe de mágica. O que apresentei ali foi na verdade mais um ramal editorial da cláusula pétrea que desenvolvi e apliquei na revista de papel LivreMercado, predecessora deste CapitalSocial.

Desde a primeira edição, LivreMercado tinha uma concepção do que seria  -- e o que seria estava definido em cada pensamento deste jornalista: a defesa da livre-iniciativa, principalmente dos pequenos negócios.

Em seguida, até porque não adotamos a premissa de exclusão de qualquer temática relevante à sociedade, introduzimos o Estado enxuto e competente como peça indispensável e de prospecção contínua.

Logo em seguida vieram os cases voltados a questões sociais. Por fim, LivreMercado antecessora de CapitalSocial,  foi uma publicação completa, abordando tudo que fosse de interesse social e econômico dos leitores.

As Madres Terezas, os Freis Galvão, filhotes do Prêmio Desempenho, não foram obras do acaso. Tudo foi planejado.

LINHA MATRICIAL

Exceto alguns jornalistas com os quais dividi a responsabilidade de fazer a melhor revista regional que este País já teve (sobretudo pelo guarda-chuva editorial que adotamos), poucos daqueles que atuaram na publicação, e mesmo os leitores, captaram a mensagem que se aprofundou e se consolidou em duas décadas. A linha editorial matricial da publicação, que se segue com CapitalSocial, dispensa memória deste jornalista, porque é a própria extensão deste jornalista.

Tudo o que os leitores vão ler em seguida sob o título “Triângulo Escaleno”, está conectado no tempo e no espaço com o que estamos escrevendo agora sob o título complementar “Triângulo das Bermudas”. Nem poderia ser diferente. É o que temos para o almoço, para o jantar e para as horas de pesadelo em que se transformou a institucionalidade da região.

Nem nos meus piores (ou melhores?) momentos de prostração, atordoamento e tudo o mais que pudesse ter vivido no passado, como de fato vivi como jornalista comprometido com a região em que vivo, poderia ter imaginado que a maldita última frase, na qual faço referência ao “Triângulo das Bermudas”, poderia ter sido introduzida em momento de inspiração mediúnica, prevendo o que seria o pior dos cenários.

PIOR REALIDADE POSSÍVEL

Lamentavelmente, o que apontei como potencial destino naquela última frase do que você vai ler logo abaixo, acabou se convertendo mesmo em realidade. A pior realidade possível.

O Grande ABC do passado hoje ABC Paulista se tornou um monumental abacaxi social e econômico porque ao longo de 20 anos fomos incapazes de reunir meia dúzia de malucos para jogar uma pelada de comprometimento para valer com o futuro.

Ainda poderei escrever muito sobre esse confronto do passado com o presente em forma de triângulos, mas não seria hoje.

Certo mesmo é que, quem me acompanha, sabe que o que vai encontrar logo abaixo é café pequeno perto do que somos de fato. Perdemos força, equilíbrio, tenacidade, coragem e tudo o mais como região revitalizadora.

Entregamos os pontos para os bandidos sociais que infestam a região. Somos uma decadência sem limites. Decadência bajulada, festejada e comemorada por extrativistas sem alma e sem lei.

Espero sinceramente que, em novos 20 anos, no não tão distante 2044, possa comparar o estágio que virá com os dois estágios anteriores, já passados. A dificuldade vai ser desafiar aquela vidente do Guarujá que me garantiu vida até, coincidentemente, 2044. Levando-se isso a sério, será que só bateria as botas após uma nova análise vintenária?

Não tenho dúvida alguma de que em 2044 estaremos muito piores do que estávamos em 2004 e também do que somos neste 2024. Somos uma nau sem rumo, sem prumo e sem-vergonha. Somente o acaso nos salvaria. A chegada das montadoras de veículos nos fez fortes. A debanda das montadoras de veículos é o nosso cadafalso.

Grande ABC escaleno  

 DANIEL LIMA - 20/06/2004

Se o mapa territorial dos sete municípios do Grande ABC fosse redesenhado sob critérios sociológicos, a figura geométrica que saltaria das pranchetas de especialistas mais atentos seria bastante diferente dos traços da cartografia convencional que enfeita nossas paredes como simbolismo exclusivo da conformação geográfica. O que temos como contornos da região não lembra especificamente nada do que poderiam se fartar os sempre imaginativos ilustradores de jornais. Mas se o critério fosse a transposição do que chamo de capital social, provavelmente iríamos nos converter em triângulo escaleno.

Quem fugiu da escola ou levou pouco a sério as aulas de geometria possivelmente encontrará dificuldade para constituir a genealogia dos triângulos. Os mais conhecidos são o equilátero, de ângulos iguais; os isósceles, de dois ângulos iguais; e, finalmente, o Grande ABC, ou melhor, o escaleno, que tem todos os ângulos e lados desiguais. Somos desiguais? Completamente desiguais.

Uma das obras mais instigantes ao erguimento de paredes sólidas de uma comunidade comprometida com as próximas gerações foi dividida em dois volumes pelo economista Anthony Giddens, guru da chamada terceira via que mudou os rumos de políticas públicas na Grã-Bretanha. Giddens trata dos perigos e das oportunidades que se apresentam à comunidade. É impossível não transplantar aqueles preceitos ao Grande ABC tão desigual, tão escaleno.

MUITA DESIGUALDADE

Estamos distantes do capital social defendido pelo britânico porque as três instâncias que preparam o futuro de uma nação, de uma cidade, de uma região, estão em estágios diferentes de percepção e ação. E nenhuma em estado da arte. Dividida em três partes — governo, mercado e comunidade — uma sociedade não pode se submeter ao domínio de qualquer um desses compartimentos.

Entretanto, há muito o Grande ABC está escravizado pelo desequilíbrio governista. Entenda-se como governo a soma de prefeituras, do Estado e da instância federal. Os agentes econômicos — empresários e sindicatos — e a comunidade, respectivamente na hierarquia, estão muito abaixo da potencialização de interlocução.

Se a realidade fosse outra e em vez de governos controladores do jogo fosse a comunidade quem desse as cartas, o perigo da arrogância dos primeiros seria sobreposto pelo risco da barafunda. Também não seria nada promissor uma terceira hipótese, de agentes econômicos acima de valores institucionais de governos e da comunidade. Caminharíamos para o absolutismo.

Portanto, a desigualdade do Grande ABC escaleno pode, na sequência de fatos, tanto nos tirar do agarramento indecente dos governos como nos levar ao mata-burros de comunidade exacerbadamente fortalecida ou mesmo nos impingir o exclusivismo de empresários e sindicalistas. Num passado não muito distante vivenciamos a fase de absolutismo. O que mais interessava aos digladiadores econômicos eram vantagens corporativas. A comunidade ficou alijada de benefícios, embora lhe atribuíssem, indevidamente, a coroa supostamente consagradora de participação democrática quando, de fato, apenas acompanhou os acontecimentos com ímpeto voyeurista.

ESPERANDO DEMAIS

Vivemos há muito a fase escalena porque viraram pó ou quase isso as ferramentas que pretensamente colocariam os governos municipais, estadual e federal no eixo de responsabilidade socioeconômica. Como o Fórum da Cidadania não passou de sopro de esperança que virou arrematado golpe e diante de entidades empresariais e sindicais ensimesmadas em objetivos quase que exclusivamente corporativos, os ângulos escalenos de agentes econômicos e comunidade contraíram-se em medida inversamente proporcional à fome pantagruélica de controle da situação dos governos. Esse é o estágio em que nos encontramos como região e, convenhamos, como Nação.

Por mais bem intencionados que sejam os prefeitos, os legisladores municipais, os secretários municipais e estaduais, os deputados estaduais, os deputados federais, o governador, o presidente da República, os ministros de Estados, Deus e quem sabe até o diabo, não existe antídoto para o desinteresse, o pouco caso, o fingimento colaborativo, senão pela reformatação do triângulo. Ou chegamos ao equilátero, ou continuaremos a dançar miudinho.

A alternativa, num processo pós-escaleno, é um outro tipo de triângulo. O Triângulo das Bermudas. Onde tudo desaparece. Estamos esperando o quê?

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