Celso Daniel: bom de voto
e também bom de governo
DANIEL LIMA - 21/02/2024
Ao lançar a série “Paulinho Serra, bom de voto e ruim de governo”, parti de um planejamento editorial que começo a explicar neste texto. Vou reproduzir logo abaixo duas amplas análises que produzi em 1996 e em 2000. Na primeira, com título “Celso Daniel: bom de voto, bom de governo?” a revista de papel LivreMercado (antecessora deste CapitalSocial) lançava espécie de desafio ao vencedor da disputa daquele outubro. Quatro anos depois, em agosto de 2000, produzi uma pequena travessura editorial também na capa de LivreMercado com o título “Celso Daniel: bom de governo, bom de voto?”. Observem com atenção porque os dois enunciados fazem a diferença – e explicam tudo.
Passadas mais de duas décadas desde a morte precoce e controversa de Celso Daniel (precoce sem dúvida alguma, e controversa porque decidiram carnavalizar os motivos) me sinto na obrigação de reproduzir aqueles textos. O material é indispensável a quem não tem o domínio de informações sobre as gestões de Celso Daniel à frente da Prefeitura de Santo André e da institucionalidade regional. É uma oportunidade de exercitar alguma porção de cautela, humildade e curiosidade. O preço a quem infringir a sugestão pode ser caro.
DESRESPEITO AOS FATOS
Como não sou de mandar recado, penso especialmente no prefeito Paulinho Serra. Ainda outro dia ele perdeu o respeito à memória de Celso Daniel ao se referir ao maior prefeito regional e ao mais inovador prefeito municipal como um administrador público qualquer. Paulinho Serra se viu no espelho da vaidade e da arrogância ao desdenhar da imagem daquele que um dia apontou como fonte de maior inspiração.
Recomendo a quem não pretende trocar os dois pés em que sustenta o corpo por quatro patas de propagadores de emburrecimento coletivo que leiam com atenção máxima o que se segue. As duas análises são incorrigivelmente fieis aos fatos, aos contextos, às especificidades e, sobretudo, à grandeza intelectual e gerencial de Celso Daniel.
Sei que não faltarão os obtusos destes tempos de extremismos calcificados (bem melhores esses tempos que os tempos de acertos íntimos de falsos adversários, como já escrevi aqui outro dia) ataques aos textos de mais de 20 anos, quando não de quase 30 (no caso o primeiro, de 1996) que chegariam aos limites de assassinatos de reputação.
Os desdobramentos conhecidos de todos da política nacional, que tem em Santo André de Celso Daniel ramificações relevantes de todos os matizes, não poderão ser arguidos pelos radicais na tentativa de mudar o processo temporal dos acontecimentos.
TEMPOS DIFERENTES
Traduzindo: não se macula o passado vivido por conta do futuro que chegou de forma diferente do que se apresentava até então. Se o futuro não é pertencimento do homem de hoje, não há por que também o passado ser apropriado pelos homens de hoje.
No caso das duas gestões sequenciais de Celso Daniel, incompletas por conta daquele janeiro de 2002 torturantemente inesquecível, o que temos é um compêndio de definições, propostas, sugestões, enunciados, planejamentos e ações que deveriam ter inspirado todos os prefeitos da região que há duas décadas batem cabeça em torno do melhor antídoto contra o esvaziamento econômico -- essa é a chave-mestra da questão regional que Celso Daniel já defendia há quase 30 anos.
MUITA DIFERENÇA
Talvez por conta da necessidade de buscar motivação no período vivido por Celso Daniel (e que me colocou no centro do maior laboratório nacional de institucionalidades em regime de instalação e operação) essa incursão no passado me leve à exuberante centralidade de Celso Daniel.
Celso Daniel, bom de governo e bom de voto é uma frase simbólica e mais que necessária a uma região que perdeu o eixo. Tanto perdeu que assiste estarrecida a um jovem prefeito (com a idade de Celso Daniel ao ser assassinado) incapaz de entender que há um oceano de competências a distingui-los. Celso Daniel foi um reformista descentralizador. Paulinho Serra é um passadista sequestrado.
Celso Daniel garante que vai ser
prefeito de toda a comunidade
DANIEL LIMA - 10/11/1996
O prefeito eleito de Santo André, Celso Daniel, engenheiro civil e professor da Fundação Getúlio Vargas, não se deixou encantar pelo volume de votos que recebeu em 3 de outubro e que lhe conferiu a maior votação em números absolutos e relativos do Grande ABC. Foram 205.317 eleitores, ou 61% dos votos válidos, que o recolocam a partir de 1º de janeiro no Paço Municipal de Santo André.
Aos 46 anos de idade e experiência de parlamentar federal de quase três anos de mandato, Celso Daniel transmite a impressão de que marcará nova gestão à frente da Prefeitura pela flexibilidade. Para começar, garante em tom firme que pretende administrar com o partido (PT), mas não sob as rédeas do partido, num aviso emblemático às bases mais radicais de que não vai repetir os descuidos de comando do primeiro mandato.
O Celso Daniel Bom de Voto quer também se consagrar como Bom de Governo. O rompimento com o passado recente de administrador vinculado demais ao Partido dos Trabalhadores não lhe provoca frases de rebeldia explícita.
MAIS QUE PT
Com a polidez usual, afirma que não se prenderá a eventuais obstruções para nomear todos os membros do secretariado, os quais pretende anunciar até o final deste mês. Uma das primeiras providências depois da avalanche de votos de outubro foi reunir-se com os principais integrantes do PT em Santo André. Entre os assuntos abordados, posicionou-se quanto aos executivos públicos que vão lhe dar suporte técnico-operacional.
“Posso garantir que o nível de renovação do quadro de secretários em relação à primeira gestão é grande. E teremos pessoas não necessariamente vinculadas ao partido, mas sim comprometidas com nosso programa de governo” – disse Celso Daniel durante encontro informal com membros do Fórum da Cidadania, três dias antes de embarcar para a Europa, onde pretende colecionar novos exemplares de gestão pública para eventuais adaptações não só em Santo André, sua maior base eleitoral, mas em todo o Grande ABC, aí como integrante do Consórcio Intermunicipal.
CONCEITO DE GOVERNANÇA
A visão de Celso Daniel sobre administração pública conflita com os modelos usuais no Brasil. Ele é contrário ao Estado-todo-poderoso, em suas várias esferas: “É preciso mudar o conceito de governo para conceito de governança” – costuma afirmar. Isto quer dizer que quer trocar o autoritarismo histórico de administração pública de gabinete pela democracia da representatividade social. Neste ponto também se antagoniza com os padrões socialistas que o próprio PT disseminou em várias de suas administrações pelo País.
Celso Daniel chama atenção para o fato de que, desde o final da década passada, escreve artigos sobre a necessidade de horizontalizar as decisões públicas sem, entretanto, cair no extremo oposto do preconceito contra a classe de empreendedores e de estratos sociais mais nobres. Enfim, o novo prefeito de Santo André contesta o antigo modelo soviético de conselhos populares que exalam repulsa à integração de camadas sociais, econômicas e políticas distintas.
UNIDADE DO CONSÓRCIO
Recusando-se a assumir postura de liderança do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, por entender que isso significaria disputa de poder e de espaço político que não lhe interessa e que não convém a quem espera revitalizar o Grande ABC, Celso Daniel só antecipa que não lhe faltará empenho para dar ao organismo formado pelos sete prefeitos caráter de unidade que faltou na atual gestão.
Elogiou Valdírio Prisco, atual presidente do Consórcio, pelas iniciativas tomadas, mas não deixou de lamentar a ausência coletiva dos demais. Embora não tenha dito formalmente, deu a entender que o desempenho do Consórcio Intermunicipal interrompeu processo de integração regional alcançado durante a gestão dos prefeitos que antecederam os atuais.
A unidade do Consórcio é prioritária para Celso Daniel, mas deve ser acompanhada, numa segunda etapa, da profissionalização de sua estrutura. A nova formatação incluiria também a participação deliberativa da sociedade civil, democratizando-se a responsabilidade de conduzir a necessária reviravolta socioeconômica, atuando como instância suprema de planejamento estratégico do Grande ABC.
NOVA IDENTIDADE
O pretendido novo Consórcio Intermunicipal provavelmente, se depender de Celso Daniel, mudaria até de identidade. Teria outra denominação e se transformaria numa autarquia metropolitana do Grande ABC, com recursos financeiros próprios para desenvolver atividades de estudos, planejamento e obras individuais ou em conjunto entre os próprios Municípios ou também com a participação do Estado e da União. Enfim, comporia um novo arranjo institucional.
Esse fortalecimento intrarregional permitiria relação menos dependente do governo estadual. Celso Daniel não diz com todas as letras, mas a concepção de integração do Grande ABC não cede espaços para uma participação igualitária ou prevalecedora do Estado. Ele não hostiliza o governo estadual, ouve com atenção interlocutores do Fórum da Cidadania que falam sobre os avanços dos últimos tempos, entre os quais promessas de secretários estaduais de investimentos na infra-estrutura regional, mas a autonomia institucional do Grande ABC transpira em suas frases.
FALTA COMUNIDADE
Tanto que critica o figurino adotado pela Baixada Santista, que já virou região metropolitana, segundo projeto do governador Mário Covas aprovado pela Assembleia Legislativa. A Baixada está criando autarquia pública que gerenciará a metropolização em parceria paritária com o governo estadual. Celso Daniel afirma que falta comunidade para avalizar a nova configuração jurídico-institucional de Baixada Santista. “Nesse ponto, estamos mais avançados, porque temos o Fórum da Cidadania como aglutinador da sociedade” — disse durante o encontro na Associação Comercial e Industrial de Santo André, referindo-se ao fato de que o avanço na Baixada Santista se deu apenas entre a cúpula político-administrativa dos nove Municípios.
Celso Daniel teve também de explicar posição sobre a convivência entre o Fórum da Cidadania e a autarquia regional que pretende ver constituída: “Jamais disse ou insinuei que o Fórum devesse ser esvaziado. Pelo contrário: acho que é imprescindível a participação de representantes do Fórum da Cidadania nas ações de planejamento e deliberativas da autarquia. Não pretendemos cooptar ninguém. Nosso objetivo é participação com igualdade” — reforçou sua defesa.
SECRETARIADO ECLÉTICO
Um dos sinais evidentes de que o Celso Daniel que venceu Duílio Pisaneschi nas últimas eleições é mais maduro que o Celso Daniel que derrotou o já falecido José Amazonas em 1988, e de que as amarras do PT não lhe prendem mais os passos, gestos e ações na mesma intensidade de antes, é a composição de secretariado não exclusivamente petista. Para quem não infere importância nessa decisão, basta dizer que o exclusivismo é uma das vacas sagradas de parcela ainda ponderável das bases do partido, extremamente corporativas. Celso Daniel reafirmou decisão de implantar no organograma da Prefeitura a Secretaria de Indústria e Comércio em caráter impostergável. “A economia é o tema-eixo de qualquer administrador que pretende ajudar a mudar a realidade do Grande ABC” — disse.
O ambiente descontraído do encontro na sala de reuniões da Acisa permitiu até especulações sobre o perfil do futuro secretário da área econômica. Celso Daniel não se furtou a dizer que quer um executivo público eminentemente operador e suficientemente versátil no relacionamento interpessoal para estabelecer negociações com os parceiros sociais.
SECRETÁRIO EMPRESARIAL
Mais não disse. Interlocutores do novo prefeito de Santo André acreditam que ele pode surpreender com um nome ligado ao setor empresarial.
Um dos que despontariam na bolsa de apostas é Fausto Cestari, diretor de metalúrgica em Mauá e coordenador-geral do Fórum da Cidadania. Cestari é habilidoso nos contatos pessoais, tem formação empresarial diferenciada porque ressalta aspectos sociais normalmente desprezados pela classe, provavelmente porque em realidade é mais médico pediatra que o convencional representante do capital, e alcançou grau de respeitabilidade que lhe franqueia todos os segmentos.
Além disso, é velho amigo de Celso Daniel. Ambos jogaram basquetebol na Pirelli nos tempos de juventude. Fausto Cestari participou do encontro na Acisa, mas os demais interlocutores preferiram a discrição de não o apontar como secretariável. Diferente de Valter Moura, presidente da Associação Comercial e Industrial de São Bernardo, e Filipe dos Anjos Marques, presidente da Associação Comercial e Industrial de Diadema, apontados durante a reunião como virtuais secretários de indústria e comércio de seus Municípios.
SEMPRE NA FRENTE
A nomeação do economista Antonio Carlos Granado, ex-supersecretário na primeira gestão de Celso Daniel, também ganha força na bolsa de apostas. Homem de extrema confiança do prefeito eleito, bem articulado, Granado só não conseguiu indicação do PT para concorrer com Newton Brandão nas eleições de 1993 porque a ala sindical atropelou Celso Daniel e apoiou o então deputado federal e vice-prefeito José Cicote, pouco afinado com o Paço. Granado ainda estaria na alça de mira de Celso Daniel como eventual concorrente ao Paço nas próximas eleições e a Secretaria relacionada ao desenvolvimento econômico, potencialmente a de maior visibilidade na próxima gestão, lhe daria generosos espaços na mídia, bem como permitiria maior aproximação com representantes do capital, algo que o PT tem muitas dificuldades de alcançar.
CUIDADO PESSOAL
Seja qual for o nome indicado — um sindicalista experiente preencheria o perfil descrito por Celso Daniel, mas carregaria carga de histórica beligerância entre capital e trabalho que não conviria ao marketing de aproximação entre o Poder Público e a iniciativa privada — o prefeito eleito de Santo André não deixou de acrescentar, com a sinceridade de quem é apaixonado por Economia, que exercerá pessoalmente espécie de supervisão especial da Secretaria, acima até da natural atribuição reservada a quem foi eleito para comandar o município. Celso Daniel reconhece que o futuro de Santo André e da região está nas linhas do desenvolvimento econômico.
Um bateria de encontros com sindicalistas, empresários, intelectuais e administradores públicos marca a viagem de Celso Daniel à Alemanha e à Itália. O prefeito eleito de Santo André embarcou no último 21 de outubro e só retorna em 8 de novembro.
O roteiro da viagem não chega a lembrar a maratona da campanha eleitoral, quando chegou a cumprir 17 compromissos num mesmo dia, mas certamente será exaustiva. “Vão me sobrar o sábado e o domingo para descansar; afinal não sou de ferro” – brincou Celso Daniel, duas horas antes do embarque.
MUNDO MUDADO
A viagem teria sido cancelada se Celso Daniel perdesse a eleição. Afinal, ele vai tratar de gestão pública e suas variáveis. Passará 21 dias no coração das grandes transformações que ocorrem na Europa, onde o Estado-do-Bem-Estar-Social está sucumbindo diante da globalização e onde o neoliberalismo não é visto como melhor alternativa. A grande interrogação que marca o mundo nestes dias, de fracasso do Estado e da graduação do livre-mercado, seduz Celso Daniel. Autorizado pela Câmara Federal, ele viaja em missão oficial mas todas as despesas constarão de sua contabilidade pessoal.
Celso Daniel só não alimentou expectativas de que voltará com a bagagem repleta de novidades, “bem ao gosto da imprensa”. Ele vai enriquecer conhecimentos pessoais e profissionais na esperança de que possa somar também vantagens municipais ou regionais. Citou, para expressar esperança de que não ficará apenas no terreno da teoria, a aplicação de regime tripartite de debates sobre o Porto de Santos pela ex-prefeita Telma de Souza, quando fez viagem semelhante e conheceu o sistema portuário de Barcelona, na Espanha.
Celso Daniel pretende propor ao prefeito de Sesto San Giovanni, no Norte da Itália, região onde concentrará contatos, o selo de cidade-irmã de Santo André, por observar semelhanças econômicas entre os dois municípios, igualmente industrializados e em processo de esvaziamento. Cidades-irmãs costumam trocar experiências em vários campos, num intercâmbio que Celso Daniel observa com atenção de quem sabe que a globalização veio para ficar.
Embora nem fale alemão e italiano, Celso Daniel seguiu para os dois países certo de que as dificuldades serão superadas por intérpretes colocados à disposição por organizações anfitriãs, entre as quais fundações privadas e públicas. Com fama de político em tempo integral, Celso Daniel provavelmente ocupará os sábados e domingos para consolidar projetos como novo prefeito de Santo André, a partir de 1° de janeiro.
Bom de governo,
bom de voto?
DANIEL LIMA - 05/08/2000
Bom de voto, bom de governo? Quase quatro anos depois de entrevista exclusiva, logo após ser eleito pela segunda vez prefeito de Santo André com a maior votação regional em números absolutos e proporcionais (205.317 eleitores, ou 52,38% dos votos válidos), o prefeito Celso Daniel está novamente em campanha com a vantagem do favoritismo nas pesquisas. Tudo indica que ele conseguirá eliminar de vez a interrogação da capa de LivreMercado de novembro de 1996. Por enquanto, prevalece a interrogação numa sutil e providencial inversão no título de capa, que passou a ser Bom de governo, bom de voto?
Calma! Isso não significa que o agora cinquentão administrador do Partido dos Trabalhadores seja modelo supremo de gestor público que o Grande ABC em crise econômica e social necessita. Celso Daniel ainda não atingiu o patamar imaginado pelos mais exigentes.
Terá mais quatro anos para se consagrar provavelmente como o maior homem público que já passou pela Prefeitura de Santo André e pelo Grande ABC. Ou então como grande esperança que se desvaneceu no enfrentamento de problemas que exigem mais que preparo técnico e experiência. Exigem dose sobreposta de ousadia.
RISCO DE NAUFRAGAR
Esqueçam o varejo político e administrativo que costuma pontuar no noticiário e construir reputações que a história trata de desmistificar, para o bem ou para o mal.
Uma administração pública não deve ser examinada prioritariamente sob a lupa ideológica, partidária ou mesmo pragmática de questões circunstanciais.
O administrador de recursos do contribuinte que se escraviza em contemporizar as adversidades do dia-a-dia ou de lamber a própria cria de factoides corre o grande risco de naufragar.
Apagar incêndios ou festejar banalidades não é a melhor alternativa para quem está decidido a ficar na história. Essa é uma vantagem singular de Celso Daniel em relação a grande parte dos políticos brasileiros.
Engenheiro e economista, Celso Daniel foi moldado pela lógica de que dois mais dois são quatro, algo que a usual interpretação política muitas vezes transforma em heresia. Mais maduro nos últimos quatro anos, esse filho de político que ocupou o Legislativo de Santo André e hoje dá nome ao Estádio Municipal conseguiu acertar as contas com uma promessa pós-eleição de 1995: governaria Santo André com a comunidade.
LIVRE DE SECTARISMO
Conseguiu desvencilhar-se na medida do possível e do viável do sectarismo do PT que ainda se manifesta nos corredores do Paço Municipal. Enfim, conseguiu administrar as principais questões acima da parcela exageradamente esquerdista do partido, o que não é tarefa que se despreze quando se trata da agremiação política mais coerente, e por isso mesmo mais complexa, do País.
A aprovação de seu segundo mandato está comprovada pelas pesquisas e também pelo desespero dos opositores. Ou não é algo exótico rebocar a candidatura do deputado federal e apresentador de televisão Celso Russomanno, cuja intimidade com Santo André é semelhante à de Mike Tyson com a diplomacia?
Mas não é necessariamente por causa dos indicadores eleitorais que Celso Daniel tirou a interrogação da Reportagem de Capa de quatro anos atrás e ao que tudo indica caminha para supressão em relação à Reportagem de Capa desta edição.
LIDERANDO TRANFORMAÇÕES
Afinal, eleitores têm preferências que nem sempre resistem ao compromisso com o futuro. Geralmente vivem de populismos imediatos cujos efeitos em forma de déficit público e de corrupção são fartamente conhecidos.
Celso Daniel está aprovado porque liderou transformações domésticas, no âmbito de Santo André, e regionais, como um dos principais condutores do processo de regionalização institucional que o Grande ABC simplesmente desconhecia.
Celso Daniel é dos raros administradores públicos que conseguem ser simultaneamente centralizadores e descentralizadores. Delega sem perder as rédeas. O aparato que lhe dá sustentação administrativa consegue torná-lo capitalizador dos sucessos e socializador dos eventuais tropeços.
DESCENTRALIZAÇÃO
Exemplos? Quando estourou a crise do corte de funcionários e salários na Prefeitura, quem apareceu mais no noticiário? A secretária Miriam Belchior. Quando emergiu a polêmica da chamada indústria das multas, quem botou a cara para bater? O também secretário Klinger de Oliveira. Quando se anunciou que o Semasa andou exagerando nas contas de água, quem se meteu a tourear a Imprensa? O superintendente Maurício Mindrisz. Quando desencadeou a controvérsia sobre a mudança de rumo do Parque Guaraciaba, que de reserva verde passaria a recepcionar um lixão, quem foi para a linha de combate? Celso Daniel não, certamente.
Os exemplos não tornam o prefeito um oportunista contumaz, como tentam fazer crer os opositores. O princípio de decisões colegiadas com secretários e auxiliares diretos é o preço natural de cobranças. A vantagem de ceder em nome do grupo de comando de uma administração, um dos pilares da esquerda mais contemporânea, é que o ônus dos contratempos também é pulverizado.
VISÃO REGIONALISTA
Critica-se a atomização controlada da gestão de Celso Daniel sob o conceito ultrapassado do centralismo de decisões, postura tipicamente de direita escorraçada nas empresas mais modernas e que aos poucos invade o Poder Público endemicamente refratário à modernidade.
O que sublinha o traço diferencial de Celso Daniel em relação aos prefeitos que o antecederam em Santo André e também em outros municípios é sua visão regionalista conectada aos movimentos internacionais sob a força avassaladora da globalização.
Pode parecer simples praticar regionalismo num Grande ABC tão intensamente regional, onde limites territoriais, econômicos e culturais praticamente se confundem. Apenas aparentemente isso é verdade. Tanto que somente de 1996 para cá, quando assumiu a leva de atuais prefeitos, conceitos de regionalidade passaram a ser exercitados. Mesmo assim, em grau apenas razoavelmente satisfatório, porque nem todos os titulares de Executivo abrem mão de atribuições domésticas.
CONSÓRCIO GANHA VIDA
Celso Daniel pertence ao grupo de lideranças políticas que fizeram ressuscitar o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos. A Câmara Regional, composição de gestores públicos, privados e sociais da região com participação do governo do Estado, também teve seu empenho. A Agência de Desenvolvimento Econômico, braço estatístico e de marketing da Câmara Regional, é fruto de seu esforço e de sua presidência.
Todas essas entidades colocaram fogo nas relações institucionais na região. Saiu-se da etapa de marasmo, do chove-não-molha. Os altos e baixos dessas relações, fundamentalmente por questões ligadas ao calendário eleitoral, não retiram a importância das transformações regionais.
O candidato que busca ser triprefeito em Santo André, façanha que só o antecessor Newton Brandão conseguiu na história, exagera apenas na entonação que dá ao sentimento regionalista. Por convicção e não por teimosia, é um dos poucos defensores do não desmembramento do Grande ABC da Região Metropolitana de São Paulo. Nenhum argumento de Celso Daniel resiste ao fato de que a RMSP é um fracasso de 30 anos que marginalizou o Grande ABC em praticamente todas as deliberações. Tanto é verdade que foi preciso criar a informal Câmara Regional.
FANTASMA DA SEPARAÇÃO
Celso Daniel vê o fantasma da separação como algo que comprometeria a natural sinergia entre a região e a Capital. A Região Metropolitana do Grande ABC, ao contrário do que imagina o prefeito, aproximaria o governo do Estado da região simplesmente porque essa relação está estimulada na legislação que já premiou a Baixada Santista e a Grande Campinas. A informalidade que marca a Câmara Regional é uma deficiência congênita porque num período como o atual, de disputa eleitoral, praticamente desativa a organização.
O escorregão conceitual sobre a metropolização do Grande ABC é pouco, entretanto, para obscurecer o desempenho de Celso Daniel em âmbito regional. Até porque há tempo para reformular a posição. Quem sabe num novo mandato à frente do Consórcio Intermunicipal Celso Daniel possa ter massa crítica para retomar o tema com mais força e sob ótica mais apropriada.
Para isso, terá de costurar articulações mais consistentes e retomar o projeto de metropolização de direito com o suporte de deputados estaduais e do Palácio dos Bandeirantes. São tarefas para as quais a atuação como comandante do Paço Municipal de Santo André não confere o mesmo respaldo da presidência do Consórcio de Prefeitos.
Por isso, os eventuais quatro novos anos de Prefeitura vão ser importantíssimos para Celso Daniel consolidar prestígio regional e, com isso, tentar traduzir em fatos o que a imaginação política estimula, colocando-o como predileto do presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, para uma das vagas do partido para o Senado.
NOVO SENADOR?
À parte os naturais obstáculos partidários, já que também o PT não se desvencilha de disputas internas pelo estrelato, Celso Daniel sabe que a densidade eleitoral de que necessita precisa extrapolar os limites de uma região que só atrai a mídia da Capital quando se trata de desgraças do cotidiano.
Esses devaneios político-eleitorais devem ser descartados como sustentação da ascensão de Celso Daniel. Não seria o fato de ganhar a disputa no partido e virar candidato a senador que o tornaria obrigatoriamente competente. A avaliação de seu segundo mandato tem o peso do regionalismo em primeiro plano e das ações domésticas como complementaridade.
Nada mais compreensivo, entretanto, que, para o eleitor de Santo André, a gestão de Celso Daniel como prefeito vale mais que a de Celso Daniel como regionalista. Aliás, é por isso que está tão bem nas pesquisas já que o eleitorado ainda tem visão extremamente municipalista. A situação, porém, não descarta uma possibilidade que também poderia tornar sua gestão aprovada.
Se Celso Daniel não tivesse avançado em macroproblemas de Santo André mas confirmasse comportamento regional que o coloca entre os principais responsáveis pela integração do Grande ABC, mesmo assim seu mandato teria valido a pena para a região e também para seu currículo pessoal. Tanto quanto, para seu equilíbrio físico-emocional, o bate-bola de basquete que pratica na Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Santo André toda semana, lembrando os velhos tempos de atleta da Pirelli.
QUEBRANDO PARADÍGMAS
Ao superar as armadilhas do cotidiano, principalmente porque soube utilizar auxiliares-chaves tanto no pelotão de choque quando na mesa de deliberações, Celso Daniel pode usufruir das conquistas. Ou não terá sido ponto importante para sua administração quebrar o distanciamento entre Poder Público e contribuintes ao criar a inédita figura municipal do ombudsman?
A secretária Miriam Belchior deu tratos à bola, acompanhou todo o processo, enquanto o prefeito atuava nos encontros públicos com a humildade de simples auxiliar. Para coroar a proposta, que passou pela democracia do Fórum da Cidadania antes de chegar ao Legislativo, foi eleito um representante das chamadas forças conservadoras de Santo André, o ex-presidente da Acisa (Associação Comercial e Industrial), Saul Gelman.
Por mais que o processo de eleição de Gelman tenha sido transparente, não faltaram ações de bastidores para instalá-lo no cargo. Era importante para a pluralidade perseguida por Celso Daniel ter um representante da tradição empresarial de Santo André para ouvir as queixas dos moradores contra a própria administração pública.
A inovação não se limitou ao ombudsman. Um feixe de programas sociais e administrativos que une qualidade de serviços públicos e visibilidade de marketing passou a ser reconhecido pelos resultados e coleciona títulos.
São os casos do Programa de Modernidade Administrativa, que revolucionou o atendimento ao contribuinte dentro e fora do Paço Municipal, liderado operacionalmente pela secretária Miriam Belchior, e o Programa de Orçamento Participativo, que tornou Pedro Pontual seu principal condutor.
EIXO TAMANDUATEHY
Celso Daniel também lançou estacas para o futuro ao anunciar o ambicioso Eixo Tamanduatehy como nova centralidade econômica e social do Município e ao levar para a comunidade o projeto Santo André Cidade Futuro.
No primeiro caso, alguns resultados já apareceram, como a reestruturação da Avenida Industrial, a nova estação rodoviária, a iminente Cidade Pirelli e o adiado mas já em fase final de construção Globalshopping.
No segundo caso, uma grande assembleia com 400 representantes da comunidade formalizou extensa carta de intenções com referências globais para os próximos 20 anos, num processo que passou pelo crivo de quatro mil participantes nas várias etapas preliminares. Os programas também tiveram auxiliares do prefeito elevados ao primeiro plano. No caso do Tamanduatehy, foi o ex-vereador paulistano Maurício Faria. No caso de Santo André Cidade Futuro, Teresinha dos Santos ocupou a ribalta.
ESPAÇO INDUSTRIAL
O prefeito de Santo André demorou sete anos — a soma de seus dois mandatos –, mas conseguiu fazer aprovar legislação que acaba com as amarras para instalação e ampliação de unidades industriais. E radicalizou na medida, eliminando da geografia municipal qualquer tipo de restrição. Um monumento ao pragmatismo, já que herdou do passado de riqueza de investimentos um dinossáurico rosário de impedimentos que ajudam a explicar a ruína financeira do Município com a perda de 66% de arrecadação de ICMS nos últimos 25 anos.
Celso Daniel também resolveu abrir as porteiras do setor comercial e de serviços ao enviar há pouco um pacote de mudanças que deverão ser aprovadas pelo Legislativo. Santo André deixará de ter reserva de mercado territorial para empreendimentos como farmácias e postos de combustíveis, entre outras novidades. Quem for mais competente, vai se estabelecer.
A gênese das tentativas de recuperar a economia local está na criação da Secretaria de Desenvolvimento e Emprego, um dos primeiros atos no segundo mandato. O convite para Nelson Tadeu Pereira comandar a secretaria prova que Celso Daniel já não estava preso ao conservadorismo petista. Nelson Tadeu Pereira era executivo da Rhodia Têxtil de Santo André e sua nomeação causou mal-estar entre esquerdistas de carteirinha, que sugeriam um sindicalista para o cargo.
ESTRUTURA RETICENTE
A administração de Celso Daniel no setor de desenvolvimento econômico é relativamente reticente se comparada à vertiginosa inquietação regional e à dedicação pública aos programas sociais. Mas mesmo assim não é justo sacrificá-lo. Se a estrutura física, material e de recursos humanos da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Emprego está muito aquém das necessidades emergenciais do Município, e se as medidas profiláticas vinculadas à legislação foram tomadas com atraso, também é verdadeiro que o prefeito em campanha ainda enfrenta dificuldades operacionais na área.
O colegiado da Prefeitura não está integralmente convencido de que a saída imediata para os problemas sociais que a exclusão econômica multiplica está no apressamento de terapias de desenvolvimento econômico. Para agravar o quadro, representantes do capital preferem a transpiração de apagar incêndios do dia-a-dia dos negócios à inspiração de movimentos de classe.
Embora muito mais atento que todos os antecessores, cujo desprezo à economia se justificava pela crença obtusa de que jamais Santo André perderia o tônus industrial, Celso Daniel não conseguiu acompanhar o ritmo do esfarelamento econômico local.
PEQUENOS INVADIDOS
A invasão de grandes negócios em forma de supermercados, hipermercados, redes de franquias e shoppings foi observada em sua gestão com o mesmo olhar de encantamento dos índios à chegada dos colonizadores. As consequências da disparidade de forças entre os competidores domésticos e os descobridores do potencial de consumo da região estão nas estatísticas de mortalidade empresarial e nas placas de vende-se e aluga-se fixadas em portas cerradas que se enfileiram pelos centros comerciais e também na periferia abatida igualmente pela ascensão da criminalidade.
Com prováveis quatro novos anos de mandato pela frente, Celso Daniel poderá corrigir a rota do transatlântico de dificuldades da economia de Santo André. São inadiáveis as medidas para proteger e dar competitividade aos pequenos negócios comerciais e de serviços.
A recuperação física parcial do Calçadão da Oliveira Lima, retrato da decadência econômica de Santo André, precisa ser acompanhada pela restauração da confiança dos empreendedores atuais e novos, estratégia da qual a Prefeitura não pode se omitir.
CENTRO DOS BAIRROS
O projeto Centro de Bairros, que contempla alguns pontos nobres do comércio da periferia, tem o efeito positivo da intenção de manter consumidores em seus respectivos habitats, mas também está sacrificado pela exuberância dos grandes concorrentes.
Políticas de desenvolvimento dos pequenos negócios industriais também devem merecer atenção redobrada, por mais que esse segmento sofra consequências de ações extra-Grande ABC, à esteira de solavancos macroeconômicos.
Espécie de discípulo de Tony Blair, primeiro-ministro britânico que nem se deixou converter ao radicalismo liberal da antecessora Margareth Thatcher nem ao extremismo socialista francês do também primeiro-ministro Lionel Jospin, Celso Daniel escolheu a chamada Terceira Via para exorcizar dois fantasmas que ainda atormentam Santo André e o Grande ABC às portas do Terceiro Milênio — o direitismo populista de quem só tem olhos para a megalomania de obras reluzentes e o esquerdismo exacerbado de quem só enxerga virtudes no outro lado do balcão das relações entre capital e trabalho — no trabalhador, é claro.
A composição diversificada do Grupo Coordenador do Projeto Santo André Cidade Futuro, a estruturação mista da Agência de Desenvolvimento Econômico e a multiplicidade de atores na Câmara Regional, instituições onde tanto representantes do capital como do trabalho se fazem presentes, revelam o amadurecimento de Celso Daniel e de outros atores políticos da região.
Trata-se, como se nota, de uma viagem sem volta, sejam quais forem os protagonistas do futuro. Até porque, bom senso não pode mesmo permitir retrocesso.
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30/09/2024 Quem é o melhor entre prefeitos reeleitos? (5)
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