Esportes

Quem disse que futebol é
uma caixinha de surpresa? (2)

  DANIEL LIMA - 20/07/2022

Faça esforço redobrado se estiver diante de um aparelho de televisão, porque certamente vai faltar amplitude de visão --mesmo se reconhecendo que as tomadas das câmeras melhoraram muito. Se estiver no estádio, é mais fácil. Basta fixar os olhos além de um alvo específico. Olhe para o gramado como um todo. Dimensionalmente amplo.  

Tanto num caso de espectador domiciliar quanto no outro, de espectador presencial, ao vivo e em cores, o que você observar no gramado pode expressar uma premissa que vale a pena como âncora do comportamento de uma equipe de futebol, ou das duas equipes em confronto.  

Afinal, do que se trata? Das condições espaciais do jogo, ou seja, da distribuição dos jogadores nos espaços disponíveis em formato de retângulo mais que simbólico de um dos mais apaixonantes espetáculos da terra. 

O time perfeito ainda está para ser preparado, organizado e aplicado.  

TIME PERFEITO 

O time perfeito tem tudo a ver com o sistema de ocupação de espaço, mas não se restringe a isso, claro. A expressão-conceito básica tem várias denominações.  

Talvez a mais incisiva, mais facilmente identificada como definição verbal e identificação visual, é compactação. Isso mesmo, compactação.  

Possivelmente nenhuma palavra além de compactação se enquadre tão perfeitamente bem no futebol dos sonhos.  

Repetir a expressão máxima, a gênese de perfeição tática de uma equipe, não custa nada. Compactação é a materialidade do essencial em forma de desempenho de uma equipe de futebol.  

Quanto mais jogadores tomarem conta de determinadas faixas de um gramado, e coletivamente do gramado como um todo, mais se poderá dizer que se está mais próximo do recomendável para quem quer, precisa e aplica uma outra qualificação coletiva: competitividade.  

As recomendações àquilo que seria o ponto-chave de compactação é a divisão do retângulo de um gramado de futebol em três terços. Com a bola dominada ou com a bola nos pés dos adversários, os três terços precisam estar o mais próximo possível. Como se fosse um todo.  

Se você olhar para o gramado e enxergar um time em bloco defensivo, em bloco intermediário e em bloco ofensivo imune a vazios, mais se estará diante de um time em busca da perfeição.  

Quanto mais compacto for uma equipe na distribuição espacial, mais se terá dúvida, santa dúvida, de que existiria mesmo compartimentos diferentes a juntá-los e harmonizá-los. Parecerão únicos e exclusivos. A expressão defesa-organização-ataque perderia sentido, porque formaria o mesmo organismo indescartável.  

OBRA DE ARTE  

A simbiose entre as áreas de defesa, organização e complementação é uma obra de arte que expressa a última etapa dos estágios de formação de uma equipe competitiva.  

Quanto menos espaço houver entre os setores de destruição, organização e complementação, mais se encontrará o caminho do sucesso. Uma equipe que chegue a esse ponto é uma equipe que já teria ultrapassado todos os demais obstáculos à organização coletiva. 

A comparação talvez não seja feliz, mas é emblemática: você certamente já viu e ficou encantado com desfiles tão bem ajustados no tempo e no espaço que parecem tudo, menos a presença de centenas ou milhares de militares e seus passos únicos. Todos parecem ser um só ou um grupinho de imagens multiplicadas pela tecnologia.  

GENIOS DA INTERNET 

Os desfiles marciais chineses transmitem a ideia de que são efeitos especiais desses gênios da Internet.  

O que separa futebol e desfile militar é que no futebol os movimentos são livres e dão campo à fantasia de evoluções mecanizadas ou inventivas, mas evoluções que destravam o burocratismo treinado à exaustão.  

Procurar explicar que futebol não é uma caixinha de surpresa tendo-se a reta de chegada de uma corrida longa que leva ao suprassumo da qualificação de uma equipe pode parecer estranho.  

Seria mais fácil iniciar o processo explicativo começando do começo, ou seja, de qualquer coisa menos o pretendido ápice organizacional. Os apressados podem até dizer que se pretende construir um edifício a partir da última laje, ignorando-se as bases que a sustentam.  

COMO CHEGAR LÁ? 

A reversão pedagógica é uma medida provocativa e também desafiadora. Afinal, chegar próximo da compactação consagradora das linhas defensiva, organizacional e ofensiva de uma equipe significa que existe um modelo teórico acabado que sustentará toda a estrutura técnico-tática que a mantém exuberante.   

Um time coletivamente compacto é um time com múltiplas possibilidades de atuação, explorando diferentes ações para superar o adversário.  

A redução e a multiplicação de espaços são inerentes à compactação, à aproximação constante, permanente, intensa, entre os três setores. Ir e voltar, voltar e ir, e no meio disso contar com o fluxo moderador a uma e a outra ação de modo a dar ao conjunto a modulação mais apropriada são sinfonias contínuas de uma equipe destruidora de espaços vazios e multiplicadora de espaços em potencial.   

PARADOXO ESPACIAL  

O paradoxo de um time compacto e que sugere a premissa de que os três setores em harmonia se provarão retroalimentadores de eficiência é que justamente porque se tornam blocos homogêneos a desbravar os segredos do sucesso o que teremos, ao fim, será a destruição da premissa de três setores.  

Explicando: quanto mais um time de futebol for mais o conjunto de conexões entre defensores, organizadores e finalizadores, mais esse mesmo time de futebol parecerá uma peça exclusiva na aplicação de recursos técnicos e táticos que estão na base dos resultados.  

Ou seja: defensores, organizadores e atacantes seriam identificados por conta de padrões convencionais em escalações também padronizadas pela cultura do futebol, mas na medida em que desenvolvem habilidades, mais subverterão esse mesmo convencionalismo. 

CRESCER E DIMINUIR  

Defender, organizar e atacar são funções distintas dos jogadores de times convencionais. Defender, organizar e atacar são desafios praticamente inalcançáveis, mas essenciais ao sucesso de equipes que procuram a perfeição entre funções tradicionais e ações contemporâneas.  

Resta saber, para distinguir equipes diferenciadas de equipes comuns, quem mais se aproxima dos limites sempre elásticos dos times perfeitos.   

Esqueçam, por enquanto, filigranas táticas e técnicas, que virão em outros capítulos. A essência agora é essa mesma: olhe para o gramado e veja se o time que você observa está muito distante ou não dos pressupostos da multiplicação e da redução dos espaços aparentemente congelados de um campo de futebol.  

MESMA ÁREA  

A área disponível para praticar futebol é a mesma para os dois times. Resta saber – e é aí que entra em campo a compactação multiplicadora de opções – quem tem mais qualificações e preparo para fazer gato e sapato de cada metro quadrado.  

Os gramados sempre parecerão de dimensões mais rígidas, imutáveis, padronizadas, às equipes que não entenderem o sentido revolucionário de compactação e suas variáveis.  

Há equipes de futebol que dão aos gramados o mesmo sentido de uma estrada para os motoristas: são incapazes de observar que não estão numa passarela asfáltica que desbrava o espaço rumo a um endereço qualquer sem que se possa tomar iniciativa inventiva. É linha reta, mesmo que aqui e ali tortuosa, e está acabado.  

INICIAL OU FINAL?  

A indagação que pode desafiar a objetividade de ver futebol com olhos aguçadamente críticos é se o estágio de compactação em busca da perfeição é a etapa final ou a etapa inicial de uma grande equipe de futebol.  

O que surge primeiro, o ovo de preparação para tornar o retângulo do gramado uma área íntima, prospectivamente dominada, ou a galinha de um ponto consequente às iniciativas individuais e conjuntas que visem o que poderia ser chamado de medidas básicas e, portanto, ainda descoladas da cientificidade de ampliar e reduzir o espaço geral de um gramado?  

Se você encontrou dificuldade para entender que uma coisa supostamente é uma coisa e outra coisa supostamente outra coisa, nada melhor que uma metáfora.  

INDIVIDUAL OU COLETIVO?  

Se você vai comandar uma empresa, quais seriam as providências básicas a tomar? Adotaria um padrão de idealização de comportamento coletivo que induziria à prática mais produtivista das tarefas consequentes ou cuidaria primeiro das emergências de tarefas pontuais individuais e grupais para se alcançar o patamar de ações coletivas mais amplas?  

A escolha do melhor figurino segue necessidades e emergências. Um técnico pode preferir, sempre no campo técnico e tático, arrumar uma equipe por setor, de acordo com observações básicas.  

É comum no futebol a preferência por arrumar o sistema defensivo e, em seguida, estabilidade alcançada, partir para a melhoria da área de criação para que, finalmente, se chegue à última linha, do sistema ofensivo. São etapas complementares sem as quais não se alcança o estágio esperado. 

Não existe, entretanto, barreiras para que a sincronia temporal dessas medidas conte com o acasalamento conceitual da compactação dos espaços.  

MÁGICAS GEOMÉTRICAS  

Mas a verdadeira obra-prima de encaixes espaciais entre setores complementares leva tempo e se tem comprovado que é inatingível na quase totalidade dos casos. E quando é atingida, está longe da perfeição, meta a ser alcançada mesmo que se saiba de antemão que jamais o será.  

Seria pouco ajuizado acreditar que se terá tempo e condições ambientais, de pressão e temperatura sempre incandescentes do futebol, para projetar e executar o desempenho de uma equipe tendo como prioridade o reformismo do espaço retangular do gramado que, no decorrer de treinamentos, pode ganhar outras geometrias internas.  

Quanto mais uma equipe de futebol produzir mágicas geométricas no interior de um retângulo imenso, mais o adversário se sentirá asfixiado. Quadrados, triângulos, losangos, linhas retas, linhas perpendiculares, circunferências e muito mais são alquimias das grandes equipes.    

TUDO É POSSÍVEL?  

Entretanto, como no futebol tudo é possível, menos um time qualquer, de pernas de pau e desorganizado, ganhar qualquer título na temporada, a flexibilidade, a mutabilidade e a engenhosidade de modelos geométricos não são a garantia de sucesso.  

Há interconexões que precisam ser levadas em conta. Uma coreografia mais ousada e supostamente mais produtiva pode dar com os burros nágua porque o processo coletivo sempre encontrará uma barreira chamada individualidade.  

Até que ponto as individualidades podem soterrar planos moldados cuidadosamente e levados ao gramado com robusta base da ciência da preparação coletiva? Essa é uma resposta que male milhões de dólares. E que só será respondida, com condicionantes inerentes ao direito de cautela, no decorrer desta série.

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