Economia

Duas décadas de chumbo
desafiam Santo André

  DANIEL LIMA - 19/07/2022

A perdição de Santo André, antiga capital econômica do Grande ABC, tem uma faixa de tempo extremamente definidora. Entre as décadas de 1980 e 1990, Santo André perdeu a conexão com o futuro respaldado pela diversidade industrial e se distanciou da liderança que São Bernardo impôs assim que consolidou mais competitividade logística.  

Santo André foi impactada por chumbo grosso de alto calibre de enfraquecimento econômico e social. É importante lembrar esse vácuo para compreender o presente e o futuro.  

Pensei em escrever que Santo André viveu duas décadas perdidas entre 1980 e 1999. Não seria o retrato da situação. Perder duas décadas teria sido melhor. Santo André de fato desabou em duas décadas. Perder significaria correr menos que os concorrentes. Santo André, no caso, correu para trás. 

É disso que o prefeito Paulinho Serra e todos os prefeitos que o sucederem não podem esquecer, já que os anteriores, menos Celso Daniel, se descuidaram. Todos preferiram olhar de soslaio às inquietações da viuvez industrial que abateu o Município. 

EFEITOS PERVERSOS  

Chamar a atenção para a Santo André do passado que comprometeu a Santo André do presente é uma forma de sensibilizar agentes públicos e privados e a sociedade em geral. Mais que qualquer outro endereço municipal da região, a Santo André deste século sofre continuamente os efeitos da Santo André das duas últimas décadas do século passado.  

Quem vive neste século os dramas da perda de vitalidade econômica é São Bernardo, refém da indústria automotiva. Mas, mesmo assim, o futuro parece menos problemático porque conta com válvulas de escape no potencial de gerar produtividade industrial ancorada numa diversidade de ramais de transporte associada a investimentos em infraestrutura pública.  

ARQUIVO PRECIOSO  

Encontrei nos meus arquivos dados históricos sobre o comportamento do Índice de Participação dos Municípios, métrica da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo.  

Vou utilizá-lo aqui como ferramenta de análise, à falta de outros indicadores tão longevos a identificar mudanças no tecido econômico-industrial do Grande ABC. 

Nesse material em estado bruto, que não se disponibiliza em plataformas digitais, é possível encontrar o fio da meada de provas contundentes do comportamento do setor industrial da região.  

DESAFIO ESTRUTURAL  

Aos amalucados que não enxergam o óbvio de que a desindustrialização no Grande ABC é estrutural, com direito a alguns respiros circunstanciais soterrados em seguida, como em parte do mandato de Lula da Silva e os seis anos de Dilma Rousseff na presidência da República, convém uma leitura mais cuidadosa do que se passou por aqui.  

O caso de Santo André é emblemático. A derrocada acentuadamente comprometedora se deu mesmo e para valer naquelas duas décadas.  

Tanto é verdade que, atingido o fundo do poço, nestas primeiras décadas do novo século Santo André oferece números menos inquietantes, embora longe de acenar com algo que poderia ser chamado de recuperação. Santo André ainda navega em águas turvas. 

Prometo me embrenhar por números regionais tendo como origem temporal a década de 1970, porque é isso que me abastece o material que acabo de descobrir. Por enquanto, fico com Santo André exatamente por ser o caso mais dramático do século passado, mais propriamente das duas últimas décadas. 

DUPLA QUEDA  

Quando terminou o período dos anos 1970, Santo André contava com participação interna de 30,88% do bolo do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Perdia apenas para São Bernardo, com 41,60%.  

A distribuição da montanha de recursos gerados pelo ICMS é o único medidor disponível em passado tão distante para que se tenha a tomada de pulso da economia dos municípios.  

O PIB dos Municípios Brasileiros, que o IBGE divulga todos os anos com dois anos de atraso, veio muito depois. 

INDICADOR SÓLIDO  

O ICMS distribuído tem tudo a ver com o agregado de riqueza gerada porque é resultado em larga escala do Valor Adicionado de cada Município.  

Quanto mais Valor Adicionado, parente próximo do PIB, mais se recebe de ICMS. Mais de dois terços do Valor Adicionado ancoram o repasse do imposto arrecadado pelo Estado. Em seguida vem o peso da população, entre outros indicadores. 

Pois a Santo André de 1979, última temporada dos anos 1970, representava 4,41% de tudo que era repassado de ICMS no Estado de São Paulo. Era uma participação extraordinária. Só perdia para a Capital do Estado, que contava com 39,33% e para São Bernardo, com 5,94%.  

Já no final dos anos 1990, em 1999, fim de nova década, Santo André ostentava participação de apenas 1,60% no bolo estadual. 

TRIO DE OURO  

O trio de ouro da economia do Grande ABC no século passado perdeu brilho representado por Santo André nas últimas duas décadas, o que comprometeu o futuro da cidade para sempre ou até que apareça um conjunto de fatores que a recoloque nos trilhos.  

A participação interna de Santo André, restrita aos sete municípios, no bolo do ICMS entre as décadas de 1980 e 1990 caiu de 30,88% para 18,12%. Uma queda gigantesca que afetou a participação relativa do trio de ouro internamente.  

Se as três maiores economias da região tinham peso de 84,28%, passou para 78,03%. O desastre foi contido por São Bernardo, que avançou internamente de 41,60% para 47,34%. São Caetano cresceu levemente, de 11,76% para 12,57%. Externamente, ou seja, no confronto estadual, os três endereços perderam naqueles 20 anos: de 12,03% em 1979 para 5,89% no fim dos anos 1990. 

CONJUNTO PERDE  

Santo André perde de goleada na geração de riqueza identificada desde os anos 1970 pela distribuição do ICMS plugado no Valor Adicionado. Se ao fim da década de 1970 o repasse a Santo André significava 74,24% do que São Bernardo recebia do governo do Estado, no final dos anos 1990, antes da chegada do novo século, passou a receber apenas 38,27%.  

Esse resultado é duplamente ruinoso porque São Bernardo também sofreu perdas econômicas no período, já que participava com 5,94% do ICMS distribuído no Estado e passou a receber 4,18%.  

O rebaixamento do Grande ABC nos repasses do imposto estadual se deu obedecendo a duas configurações: por conta de crescimento maior da média dos municípios paulistas e também por causa do efetivo rebaixamento regional da produção industrial em forma de Valor Adicionado.  

ATAQUES MÚLTIPLOS  

Santo André sofreu ataques múltiplos no processo de perda da musculatura industrial nas duas décadas do século passado.  

Primeiro, com a descentralização interna de unidades fabris. Mauá e Diadema, principalmente, foram as rotas preferenciais de deslocamentos de unidades.  

Segundo, com a evasão para territórios externos, ou seja, em direção a outros endereços estaduais.  

O mais grave, entretanto, foi a desativação de indústrias de pequeno porte, de predomínio familiar, sobretudo ligadas ao setor metalúrgico. A atuação sindical não distinguia empresas por tamanhos econômicos e o governo Fernando Henrique Cardoso concedeu privilégios fiscais às montadoras de veículos e discriminou as autopeças nacionais.

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