Sociedade

Uma vez Borralheira,
sempre Borralheira (12)

  DANIEL LIMA - 06/07/2022

GRANDE ABC – Francamente, não estou entendendo vocês à minha frente, sentadinhos, depois de um chá da tarde espetacular e de uma brincadeira séria de quebra-cabeça, conforme o combinado. Todos estão de cara amarrada. Parece que viram um fantasma. O que é que houve, gente? 

ESTADO DE SÃO PAULO – Como maior autoridade presente nesse Residencial, caro Grande ABC, acho que posso dizer como porta-voz da turma que houve um desrespeito enorme com todos nós. 

GRANDE ABC – Não estou entendendo tanta insatisfação. Repito: parece que viram fantasma. E esse negócio de porta-voz nem sempre significa algo positivo. Porta-voz de erros, de equívocos, de omissão, não tem nenhum significado saudável. O que aconteceu, Estadão? 

ESTADO DE SÃO PAULO – É a primeira vez que você me chama de Estadão. Parece provocação. Tenho nome e sobrenome e nada está relacionado ao jornal. Anões me chamarem de Estadão já é uma ofensa. Agora você, Grande ABC, não dá mesmo.  

GRANDE ABC – Desculpe meu ato falho.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Tudo bem, isso eu desculpo, mas o que combinamos não foi levado em conta. Você disse para todos nós, e somos nove testemunhas, que teríamos uma cabine indevassável e 30 minutos para montar o quebra-cabeça.  

GRANDE ABC – E qual é o problema? 

SÃO BERNARDO – Posso falar, Estado de São Paulo? 

ESTADO DE SÃO PAULO – Fale, fale, porque estou muito irritado com a molecagem. 

SÃO BERNARDO – Acontece, Grande ABC, que ficamos uma hora em cada cabine. Primeiro, nos entregaram um quebra-cabeça naquela caixinha que parece mesmo um porta-joias. Meia hora depois, quando imaginávamos que seria encerrado o desafio, recolheram as peças e nos entregaram outro quebra-cabeça, com novo prazo de meia hora para montagem. 

GRANDE ABC – Garanto a todos que não partiu de mim essa decisão. Acho que a produção agiu por conta própria. Qual é o problema de passar meia horinha a mais na cabine quando o objetivo é colaborar? 

SANTO ANDRÉ – Olha, Grande ABC, acho que está faltando tanto para o Estado de São Paulo como para São Bernardo um ponto que de fato nos deixou invocados, irritados, diria. Se eles não falaram, vou falar. 

SÃO CAETANO – Gostei de sua intervenção minha vizinha de segunda linha, gostei mesmo. 

SANTO ANDRÉ – Vizinha de segunda linha? Essa é nova cantilena de me ofender só porque nasceu de mim. 

SÃO CAETANO – Claro que é de segunda linha, porque de primeira linha é a Cidade de São Paulo, nossa Cinderela. 

CIDADE DE SÃO PAULO – Alguém tem alguma dúvida? 

MAUÁ – Nem pensar, nem pensar. 

RIBEIRÃO PIRES – Não sou louco de pedra. 

RIO GRANDE DA SERRA— Sou pequenininha demais para opor resistência sobre qualquer coisa, muito menos quanto à grandiosidade da Cidade de São Paulo. 

DIADEMA – Estou com São Caetano e não abro.   Santo André está para São Caetano como vizinha de segunda linha assim como São Bernardo está para mim, porque minha vizinha poderosa é a Cinderela. 

GRANDE ABC – Viu só, Estado de São Paulo. Basta um descuido e essa cambada de anões muda de assunto. Vamos voltar ao quebra-cabeça, porque isso é o que interessa.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Exatamente. 

GRANDE ABC – Acho que Santo André tem que ser chamada agora para dizer o que pretendeu dizer quando disse que está faltando um ponto que estaria subjetivamente ligado ao descontentamento de todos vocês com a experiência da cabine isolada. Fala Santo André. 

SANTO ANDRÉ – O fato é o seguinte: todos nós concordamos, num simples olhar, fazer um pacto de reprovação ao que foi combinado e o que foi levado adiante em matéria de pós-chá da tarde. Eram 30 minutos para montar um quebra-cabeça e ficamos uma hora dividida em duas partes para montar dois quebra-cabeças. E daí que ninguém montou absolutamente nada. Nem o primeiro, nem o segundo quebra-cabeça. 

GRANDE ABC – Como antecipei, nenhum de vocês conseguiria superar o desafio. Jamais se safariam do desafio. Mas vamos por parte. Qual foi o primeiro quebra-cabeça que vocês não montaram? Tentem explicar enquanto faço um contato rápido com a produção. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Olha, Grande ABC: havia tantas peças, mas tantas peças, que não soubemos nem por onde começar. Não tenho a menor ideia de quantas peças eram, mas eram muitas. Quando achava que tinha o fio da meada, tudo se desmanchava. 

SANTO ANDRÉ – Foi um tal de tentativa e erro que parecia não ter fim. Eram mesmo peças demais. 

SÃO BERNARDO – Já imaginava que os demais participantes não conseguiriam encaixar as peças, que é minha especialidade com a indústria automotiva. Se não dei conta do recado, muito menos eles.  

RIO GRANDE DA SERRA – Com tantas peças do primeiro quebra-cabeça me senti menor do que já sou. 

RIBEIRÃO PIRES – Imaginei que as peças que me foram entregues seriam uma réplica de uma fábrica de chocolate, porque esse negócio de festa do chocolate é minha praia de atração, mas não deu jeito de montar nada. 

SÃO BERNARDO – Lembrou bem, Ribeirão Pires. Eu pensei que minhas muitas peças fossem, se encaixadas, uma fábrica de veículos. Uma fachada da Volkswagen, por exemplo. Ou da Scania. Jamais uma Ford que se foi. 

SANTO ANDRÉ – Sabem que pensei a mesma coisa? Eram peças a dar com pau. Imaginei também que tinha a ver com minhas entranhas identificatórias. Imaginei que fosse o Polo Petroquímico, que, mais que quebra-cabeça, quebra meu galho econômico porque esconde a desindustrialização de outros setores. 

MAUÁ – Coincidentemente, pensei a mesma coisa. E também no Polo Petroquímico montado peça a peça. Afinal, sem Capuava eu estaria no mato sem cachorro. 

GRANDE ABC – E você, Diadema, também achou que seu quebra-cabeça era personalizado? 

DIADEMA – Claro que sim. Era a conclusão óbvia. O que pergunto é o seguinte: como um desafio de montagem não faria referência direta ao meu território? Imaginava que apareceria alguma marca de meus programas sociais, que são muitos.  

SÃO CAETANO – Acho que era tão óbvio que o quebra-cabeça que recebi remeteria a algo relacionado à minha realidade territorial que tratei logo de seguir um determinado caminho de construção de imagem. Pensei na fábrica da General Motors, me fixei nisso, mas não apareceu nada que levasse à reprodução da imagem. Nem tentei a fachada da Casas Bahia, porque perdemos essa referência.  

SÃO PAULO – Parti logo para os finalmentes. Achava que tinha à mão as peças do Edifício Itália, da Avenida Paulista, da Avenida Faria Lima, de alguma entre muitas coisas que tenho como atração econômica e turística. Pensei até no Museu do Ipiranga. Não deu em nada. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Pensei nas minhas estradas que levam o progresso ao Interior, pensei na agropecuária, pensei nos trens do metrô, pensei em muitas coisas. E cai do cavalo. 

GRANDE ABC – Viram que nem tudo que parece óbvio é óbvio de fato? Ou quem sabe tudo que parece óbvio é tão óbvio que o óbvio escancarado não salta aos olhos? 

ESTADO DE SÃO PAULO – Não compreendi, caro Grande ABC, onde quer chegar? 

GRANDE ABC – Vou chegar lá. O que quero saber agora, como se não soubesse, é sobre a experiência fracassada também na segunda etapa, do novo quebra-cabeça. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Esse foi um vexame singular que a todos nos pegou de calças curtas. Todos mesmos. Veja, Grande ABC, que eram tão poucas peças, mas tão poucas peças, que achava impossível não dar encaixe. Pois não é que não deu mesmo? 

SANTO ANDRÉ – Estou inconsolável. Passamos por um vexame. 

SÃO BERNARDO – Verdade, verdade. Até achei que havia uma peça que tinha alguma coisa a ver comigo, mas não deu aquele estalo, sabe aquele estalo?  

SÃO CAETANO – Tive o mesmo sentimento de que reconhecia uma das peças, mas quando olhava às demais persistiam dúvidas. 

SANTO ANDRÉ – Não chore São Caetano. Estamos juntos nessa experiência decepcionante. Tão poucas peças do segundo quebra-cabeça e nada de solução. 

CIDADE DE SÃO PAULO – Não vi nada nas peças do segundo quebra-cabeça que me fosse íntimo, que me tenha despertado atenção a ponto de, quem sabe, iniciar a construção de um encaixe perfeito. 

MAUÁ – Eu tive um sentimento de que algo me era particularmente próximo. 

RIBEIRÃO PIRES – Senti a mesma coisa. 

RIO GRANDE DA SERRA – Acho que comigo aconteceu a mesma coisa. Aquela peça especialmente maior que meu PIB me pareceu íntima. Mas, e as demais?  

ESTADO DE SÃO PAULO – Fracassei terrivelmente. Não me vi em nenhuma das peças. 

GRANDE ABC – Vamos encerrar essas lamúrias. Vou contar em detalhes por que vocês fracassaram. O resumo da ópera é simples: vocês, meus anões, são incapazes de enxergar a si próprios. E o Estado de São Paulo e a Cidade de São Paulo, então, não estão nem aí com o cheiro da nossa brilhantina. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Continue, Grande ABC. 

GRANDE ABC – Vamos lá, então. O primeiro quebra-cabeça, que vocês disseram ter muitas peças, tinha exatamente 49 peças.  

CIDADE DE SÃO PAULO – Por que 49 peças? 

GRANDE ABC – Era a reprodução do mapa cartográfico de minhas terras. Sete pedaços para cada um dos sete municípios. Repito: sete pedaços para cada Município.  

CIDADE DE SÃO PAULO – Por que tanto eu quanto o Estado de São Paulo não fomos incluídos no mapa cartográfico, também com sete peças cada? 

GRANDE ABC – Porque vocês não estão integrados aos sete anões e os sete anões não estão integrados a vocês. Seria muito cinismo botar vocês nove no mesmo saco, ou melhor, no mesmo mapa. Até porque, o que nos move nesses tempos é exatamente o futuro dos sete municípios. Se subordinássemos o mapa da região à geografia da Cidade de São Paulo e do Estado de São Paulo, teríamos minimizado nossa importância nesse encontro. Além do que, e isso é o principal, não reproduziria a realidade histórica dos fatos, dos relacionamentos. Não somos Gata Borralheira por acaso.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Eu que estou na cabeceira inferior dessa mesa retangular me sinto no direito de fazer mais perguntas-chave. A questão do primeiro quebra-cabeça com essa pegadinha de 49 peças sem que houvesse uma dica sequer para a gente destrinchar o desafio foi o que consideraria uma covardia, algo para nos colocar de quatro. Mas tudo bem. Agora, por outro lado, todavia, contudo, o segundo quebra-cabeça é que nos deixou desmoralizados de vez. E desta vez acho que a culpa é nossa, ou seja, minha, da Cidade de São Paulo e dos sete anões. 

GRANDE ABC – Obrigado, Estado de São Paulo. Você me desobrigou a dar explicações. Vamos aceitar que 49 peças são mesmo um negócio complexo, mas as poucas peças do segundo quebra-cabeça foram uma mamata à resposta, mas vocês, sem entenderem o jogo, só confirmaram que o óbvio nem sempre é tão óbvio assim. 

CIDADE DE SÃO PAULO – Nem me lembro mais quantas peças eram para ser encaixadas. Sei que eram poucas, muito poucas. 

SANTO ANDRÉ – Estava tão atrapalhado que nem notei também. Só sei que tinha cores diferentes e iguais entre si. 

SÃO BERNARDO – Acho que ninguém atentou para o número de peças. Aqui a gente sabe quantas peças vão para o motor de um veículo. São muitas, mas muitas de fato. Mas como nesse caso eram tão poucas, nem dei bola. Me atrapalhei todo. 

GRANDE ABC – Vou encurtar a história. Sabia que vocês nove não dariam atenção ao número de peças do segundo quebra-cabeça. Achariam que eram uma mamata e nem se preocupariam com a resposta que estava exatamente no total de peças a encaixar. 

ESTADO DE SÃO PAULO – Diga logo, Grande ABC, Mostre a nossa patetice. 

GRANDE ABC – Pedido feito, pedido atendido. Eram sete peças. Sete peças, entenderam? Isso significa alguma coisa para vocês? Sete peças, sete cidades, sete multiplicado por sete do primeiro quebra-cabeça totalizavam 49 peças. 

DIADEMA – Minha nossa senhora, como somos idiotas. Não enxergamos o óbvio. Fico metendo o olho na Cidade de São Paulo e esqueço daqui. 

GRANDE ABC – Põe idiota nessa conta, Diadema. Muitos idiotas. O quebra-cabeça de sete peças foi entregue a todos porque o que queríamos era a montagem, a configuração, o desenho, do meu território. E com as cores representativas da identidade político-partidária de cada endereço municipal e suas respectivas nuances. O vermelho mais proeminente em Diadema, menos em Mauá, menos um pouco em São Bernardo, um pouco maior em Rio Grande da Serra. E o azul fortíssimo em São Caetano, forte também em Santo André e em Ribeirão Pires e menos forte em São Bernardo.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Jamais vivi um vexame tão grande. Mas tenho a desculpa de que não sou daqui. Duro é quem está no mapa daqui e não se dá conta da própria identidade cromática e territorial. Quando se chega à conclusão de que cada anão da região não se enxerga, não se reconhece, chegamos ao estágio mais deprimente em matéria de cidadania. 

SANTO ANDRÉ – Acho melhor mudar de assunto, porque cidadania aqui nas minhas entranhas já foi para o espaço há muito tempo. 

DIADEMA – Eu pensei que tinha, mas não tenho como deveria. Deve ser porque recebi muitos habitantes nos últimos anos, gente que veio principalmente da Capital. Tanto é verdade que até meu vermelho que era um vermelho intocável sofreu mutação com oito anos de governo municipal azulado. E até no front federal andei cedendo espaço ao amarelo.  

SÃO CAETANO – Acho que o meu caso de não-identificação visual do território é algo semelhante ao que ocorre com Diadema. Também tenho recebido muita gente da Cidade de São Paulo, porque minha qualidade de vida é melhor, e, ao mesmo tempo, essa gente trabalha em São Paulo e não vive meu dia-a-dia. Pareço ser o mesmo, parece que não mudei, mas quando me olham de perto, ou quanto eu mesmo me olho de perto, não me reconheço.  

MAUÁ – Minha população economicamente ativa se vira como pode. A maioria trabalha fora. Basta pegar o trem e descer na Cidade de São Paulo. Somos quase estranhos a nós mesmos. 

RIBEIRÃO PIRES – Tenho parte da população mais antiga, menos migrantes, mas passo pelo mesmo processo de dissolução de identidade própria. Vivemos na escuridão midiática de massa e isso tem um peso decisivo.  

RIO GRANDE DA SERRA – Estou no fim da linha, longe da maioria. Estou tão isolado e sou tão pequenininho que não me dou conta de mim mesmo. Se olho para o espelho em forma de quebra-cabeça, não tenho a menor ideia do meu pedaço entre os sete pedaços do segundo quebra-cabeça. Imaginem então do primeiro, de 49 peças.  

GRANDE ABC – Vou ser obrigado a interromper essa choradeira e atender a um telefonema. Acabo de receber uma informação de minha assessoria. Brasília quer falar comigo. Brasília, vejam só que piada. Nós é que somos Brasília. Vou atender por descargo de consciência. Volto num minuto para informar a todos e dar o encaminhamento final a esse encontro. Estamos todos cansados. Até já-já. 

Leia mais matérias desta seção: