Economia

Eletrificação pode eletrocutar
automotivas do Grande ABC?

  DANIEL LIMA - 24/06/2022

Por razões que vão da frágil institucionalidade regional, passando por vetores macroeconômicos cruciais, a indústria automotiva do Grande ABC (leia-se autopeças e montadoras) está correndo o risco de, após duramente chamuscada pela desindustrialização e descentralização, sofrer as dores da eletrocussão. O choque completaria o serviço de estragos sociais e econômicos iniciado no fim dos anos 1970. 

Escrevo a propósito do que tem sido frequentemente publicado na mídia sobre o processo de eletrificação da frota nacional de veículos hoje predominantemente à combustão fóssil.  

Uma entrevista de Adalberto Maluf, presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico, nas páginas do Diário do Grande ABC de segunda-feira, chamou a atenção por insistir num monocórdio de triunfalismo regional.  

O que é bom para o setor automotivo eletrificado não é necessariamente interessante para o Grande ABC.  

ESTATAL INSTITUCIONAL  

Não somos uma corporação ou um conjunto de corporações públicas e privadas que enxerga o horizonte próximo e distante com visão de mercado adicionado de sustentabilidade ambiental.  

O Grande ABC é uma enorme estatal institucional incapaz de sair da pasmaceira da desindustrialização de um modelo a caminho do sucateamento energético.  

Como se dar bem ante a necessidade de salto extraordinário rumo a novas matrizes de eletromobilidade? 

Em qualquer espaço territorial que dependa tanto de uma determinada atividade (o PIB Automotivo do Grande ABC é o carro-chefe econômico e social da região) há muito seria imperdoável não contar com um grupo específico de estudos e ações envolvendo a iniciativa privada e o setor público.  

MAIS É MENOS  

No Grande ABC isso é heresia. Aqui, desde sempre, se assiste macunaimicamente o andar da carruagem de arrecadação de tributos produtivos em declínio permanente e o aumento substancial do peso de impostos municipais apenas em parte compensatórios. Daí os investimentos das prefeituras caírem ininterruptamente e, como desdobramento, intensifica-se a corrida maluca por recursos de fundos nacionais e internacionais.   

Jamais em tempo algum e para valer de verdade as institucionalidades do Grande ABC se mobilizaram em busca de uma relação intestina e produtiva com o setor automotivo. São mundos dissonantes, quando não conflitantes, quando não intransponíveis.  

De vez em quando aparece alguém no mercado persa de marketing rastaquera para propagar aproximação. Tudo enrolação. Alguns movimentos foram tópicos, circunstanciais, movidos a entusiasmo que se apagou ante a ausência de aprofundamentos e respostas. 

FUZARCA GERAL  

O Grande ABC (nas raras empreitadas de mobilização) tem a mania estúpida de querer resolver todos os problemas de uma vez, sem atribuir à diversidade de pesos a lógica da hierarquização pragmática. Por isso que passa ano, entra não, nade se move. E afundamos cada vez mais. É uma fuzarca geral.  

Por essas e outras é que a eletrificação de veículos que chega aos poucos e é o futuro da atividade no mundo cada vez mais hostil ao uso de combustíveis fósseis e mais inclinado a questões ambientais já é um problema de verdade para o Grande ABC.  

E estamos perdendo a corrida pela modernização combinada com a sustentação de uma atividade na qual a participação nacional das fábricas locais não passa de 10%, segundo os últimos estudos.  

TOM FESTIVO  

O tom festivo do entrevistado do Diário do Grande ABC (não esqueçam que o entusiasmo é de alguém que representa a atividade, não necessariamente de alguém que tem compromisso prioritário com o Grande ABC) perde viço na reta de chegada da entrevista. Os últimos parágrafos dão bem uma ideia da curva de inquietações que espera pelo Grande ABC.  

Eis o que disse o entrevistado do Diário, instado sobre o custo de manutenção dos elétricos: 

 Essa é uma das maiores vantagens do veículo elétrico. A manutenção pode ser entre 50% e 70% mais barata do que a do similar a combustão. O motor do carro elétrico tem menos peças – cerca de 800, contra mais de 2000 do carro à combustão. E a maioria dessas peças é eletrônica, fáceis na identificação de erros e na substituição. Não existe tanto atrito mecânico nessas peças, o que gera um desgaste menor. Portanto, a manutenção é mais econômica, sem a necessidade de óleos e lubrificantes. E por causa disso, a vida útil do veículo é muito maior. Você pode rodar com ele por 10/15 anos sem maiores problemas. A BYD já tem furgões elétricos rodando há mais de cinco anos, que ultrapassaram 300 mil quilômetros, e ainda operam com quase 97% da capacidade inicial das baterias – disse Adalberto Felício Maluf Filho, diretor de marketing, sustentabilidade e novos negócios da BYD Brasil e presidente da ABVE.  

MASSACRE GERAL  

O que há de preocupante na declaração do dirigente? Chama a atenção a clareza do mundo que espera as automotivas que contam com o predomínio monolítico de veículos a combustão e, sobretudo, as autopeças. Se vai haver perda brutal de demanda (de duas mil peças por veículos, restariam apenas 800) é claro que muitos empreendedores vão pagar a conta. Nem pode ser diferente. Não existe atividade industrial intocável ao longo dos tempos.  

Ou seja: o parque automotivo regional que conhecemos hoje e que está bem abaixo do parque automotivo dos anos 1980 em diante, com quedas sucessivas de empresas que se escafederam ou sucumbiram às mudanças, não resistirá na próxima década, e nas décadas seguintes, à eletrificação de veículos.  

A pergunta que insisto em sugerir, subliminarmente ou escancaradamente, é a seguinte: vamos ter alguma capacidade de, sem instituições regionais fortes, influenciar de alguma maneira os investimentos que virão apenas pela natural lei de sobrevivência na selva da livre-concorrência, restrita às corporações privadas?  

SEM CONTROLE  

Da mesma forma que a indústria automotiva se instalou na região sem qualquer organização pública interna tanto no campo político quanto econômico, da mesma forma que a mesma indústria automotiva bateu asas ano após ano sem que o setor público se desse conta do perigo, a indústria automotiva decidirá por conta própria e risco até que ponto sustentará unidades na região.  

A logística urbana interna é o anticlímax a investimentos produtivos no Grande ABC (salva-se aos poucos São Bernardo de obras viscerais à sobrevivência industrial) e se apresenta como empecilho que se junta a vetores institucionais sempre negligenciados, além, claro, da fama de hostilidade do sindicalismo ao capital.  

MUDANÇA DE ENDEREÇO  

Com esses condimentos e outros tantos, possivelmente apenas São Bernardo entraria no portfólio de mais que necessárias intervenções à modernização das plantas automotivas na região.  

É pouco, como se tem provado ao longo dos tempos. Tanto é verdade que no século passado Santo André e São Caetano dividiram as maiores perdas do PIB Industrial, enquanto neste século São Bernardo ganha folgadamente.  

Somente no período 2013-2020, São Bernardo perdeu mais de 30 mil empregos com carteira assinada no setor, o equivalente a 60 fábricas da Toyota local, que está batendo as asas em direção à região de Sorocaba.  

SITUAÇÃO NACIONAL  

Em 15 de junho último a jornalista Marli Olmos, do Valor Econômico, especialista em indústria automotiva, retratou a situação de mudança no setor. Das três montadoras com as maiores estruturas industriais do Brasil – General Motors, Stellantis e Volkswagen – a GM é a única que não está interessada em desenvolver e vender veículos híbridos na América do Sul.  

Diz o texto de Marli Olmos que, seguindo orientação global da companhia, a subsidiária regional irá direto para a fase dos carros 100% elétricos. Tanto que nesta semana a empresa antecipou o nome de mais três modelos totalmente elétricos que venderá na região a partir do segundo semestre. 

A reportagem do Valor diz também que ao apresentar as novidades, o presidente da GM na América do Sul, Santiago Chamorro, disse que a empresa tem o compromisso de liderar o processo de eletrificação na América do Sul.  

TOTALMENTE ELÉTRICO  

Já a vice-presidente de comunicação, relações governamentais e ESG da GM na região, Marina Willisch, destacou que “parte importante do processo é tornar cada vez mais sustentáveis os veículos a combustão até a migração total do mercado para os carros 100% elétricos, os únicos que não emitem qualquer gás poluente”.  

A reportagem do Valor Econômico explica, portanto, que a GM se tornou a primeira grande montadora com fábricas no Brasil que não apoiará o plano que parte da indústria automobilística e governo elaboram para desenvolver veículos híbridos movidos a etanol no País. 

SAINDO NA FRENTE 

E onde está a constatação de que o Grande ABC já começou a perder essa batalha? Duas marcas chinesas, CAOA Chery e Great Wall já estão ativas no Brasil. A CAOA já produz no Brasil – e até 2023 todos os modelos da linha serão 100% elétricos – e apresentou cinco novos modelos esta semana. Um subcompacto chegará às concessionárias no fim do mês. A CAOA suspendeu recentemente a produção em uma de suas fábricas, em Jacareí, para prepará-la a uma transição para a eletrificação.  

A outra marca chinesa, a Great Wall, também prepara a fábrica que comprou da Mercedes-Benz em Iracemápolis, Interior de São Paulo, para produzir veículos 100% elétricos. Com estruturas menores e mais maleáveis a transformações, as marcas chinesas contam, portanto, com vantagens comparativas e de iniciativas, claro.  

FICHA VAI CAIR? 

O universo sobrerrodas eletrificado – híbridos e 100% elétricos – ainda é muito pequeno no País, conforme registra o Valor Econômico. Representou nos cinco primeiros meses deste ano apenas 2,3% das vendas.  

Tomara que a ficha que não caiu no Grande ABC sobrerrodas a combustão a partir do movimento das pedras sindicais e de guerra fiscal dos anos 1980 caia desta vez em forma de atenção redobrada a uma lógica corporativa do setor privado que não guarda qualquer relação de causa e efeito com o setor público: quem sabe faz a hora, não espera acontecer. 

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