Esportes

Quem disse que futebol é
uma caixinha de surpresa? (1)

  DANIEL LIMA - 17/06/2022

Esta série que começa agora e que não tem data para terminar, nem mesmo um período regular de novos capítulos, não é indicada a alguns tipos de aficionados do futebol. As recomendações devem ser antecipadas porque podem ser entendidas como ônus ou como bônus. Depende de cada leitor. 

1. A leitura não é uma boa ideia para quem tem certeza, acha ou desconfia que futebol é uma caixinha de surpresa. 

2. A leitura não é uma sugestão das mais digeríveis para quem não quer abrir mão, em hipótese alguma, de ver futebol com o fanatismo de torcedor organizado ou não-organizado, ou seja, de quem acompanha futebol pelo vetor seletivo do fundamentalismo sem qualquer preocupação com detalhes que poderiam remeter a uma leitura prévia, por exemplo, de críticos de cinema.  

3. A leitura também não é um bom conselho para quem não quer perder tempo com qualquer coisa que lembre inquietação com o que vê nos gramados e o que serviu de preparação dos profissionais que vão a campo ou estão no banco de reservas. 

4. Não se recomenda também que a série sirva de alguma forma a analogias com outras atividades humanas estruturadas sob conceitos cada vez mais apurados e questionados e que tiram senão todos os resquícios de aleatoriedade no resultado final, mas contam com peso expressivo quanto a isso.   

CAIXINHA FURADA 

Por outro lado, esta série deverá ser produtiva para quem estiver no polo oposto. Ou seja, de quem observa o futebol sob o ângulo de competividade meritocrática, engenharia de preparação e de execução, análises estatísticas que procuram explicar os resultados e tudo que tenha a ver com o fim da incidentalidade do esporte mais praticado no mundo, quem assistir a futebol assim estará preparado para não sofrer desgaste emocional maior. Tudo estará mais ou menos esquematizado contra sacolejos. A previsibilidade antes descartada, quando não ironizada, acabará prevalecendo.  

O resumo da ópera dessa prospecção é a conclusão que retira o ponto de interrogação da manchetíssima desta série. Ou seja: futebol não é uma caixinha de surpresa.  

Já foi grandemente, já foi relativamente, mas agora é apenas ocasionalmente uma caixinha de surpresa, sem que a aleatoriedade interrompa a cadeia de produção rumo ao sucesso, ao fracasso ou a uma marcha batida de mediocridade.  

ZEBRAS RESISTEM  

Para que não sobreviva um pingo de dúvida a respeito desta série vale a pena ressaltar que futebol não é mais uma caixinha de surpresa como definição estruturalizada. Mas também é vulnerável a uma caixinha de surpresa circunstancial.  

Ou seja: um Jabaquara qualquer do futebol pode aprontar num determinado jogo ante adversário mais poderoso, mas jamais será campeão em nível de competição elevado. Zebras continuarão a existir no futebol esquadrinhado pelos analistas de desempenho, mas não passarão mesmo de zebras.  

O olhar que se transformará em observações e análises desta série levará fundamentalmente em conta o coletivo do futebol.  

As individualistas e reverberações no coletivo ficarão para o fim da fila. Não que craques, jogadores medianos e pernas de pau não sejam relevantes ao conceito de que futebol não é uma caixinha de surpresa. Eles são sim, mas cada vez mais terão pesos relativos mitigados.  

TIRO NO PÉ  

Não é por acaso que não foge da bitola da lógica de resultados sincronizados ao longo de uma temporada o prevalecimento vitorioso de equipes que tenham sido mais competentemente dirigidas por comissões técnicas mais longevas. Interromper seguidamente o circuito de treinadores e auxiliares é um tiro no pé tanto quanto a troca incessante de jogadores. Nesse ponto, o futebol brasileiro bom com a bola nos pés tem muito a aprender como provam as estatísticas.   

O olhar preferencial ao coletivo que dominará esta série segue desenho explicativo da máxima de que o tempo é o melhor conselheiro para quem quer ver uma equipe organizada em campo.  

E que por mais debates que existam sobre o que é melhor, o conjunto ou as individualidades, o modelo ideal rumo ao sucesso é uma combinação das duas fórmulas, ou seja, o coletivo e o individual. Com adendo esclarecedor: o individual será sempre mais efetivo ao contar com o suporte do coletivo próspero.  

DEMOCRACIA PARA VALER  

Havia muito tempo (pelo menos quatro anos) pretendia destrinchar o desafio de mostrar que futebol não é uma caixinha de surpresa. Mais que isso: que futebol é uma atividade humana resplandecente e pedagógica a outras ações.  

A democracia exposta pelo futebol nos gramados, com predomínio da categorização dos melhores disponíveis, é uma lição que não pode ser esquecida fora de campo. Vivemos tempos em que disputas identitárias que, em muitas situações, a pretexto de eliminar manchas de discriminação, adubam o terreno de privilégios reversos.  

Defini já há muito tempo os quesitos que supostamente seriam mais apropriados a uma curadoria do que se vê exposto nos gramados.  

BARCELONA DEPOIS  

Metabolizei tanto aqueles pontos que fui devorado pelos princípios a que dei vazão. Ou seja: passei a acompanhar cada jogo de futebol com apetrechos avaliativos mais apurados e depurados.  

Para que os leitores tenham ideia do tempo em que formulei o que chamaria de estrutura básica do que se verá nesta série, o Barcelona de Messi, Xavi, Iniesta e tantos outros craques, o melhor time que já se viu destes tempos modernos, nem existia na forma gloriosa em que se consagrou. 

Vou explicar e repetir: o Barcelona campeão da Europa e do Mundo não existia ainda com aquele bem-acabado modelo de jogar futebol quando, no meu canto, já havia esculpido o que chamaria de time dos sonhos para quem vê futebol muito além do entretenimento sem parentesco com o fanatismo enlouquecedor e cego.  

Aquele modelo pretérito ao Barcelona é o que vou reproduzir aqui. O time espanhol foi o que mais se apresentou proximamente àqueles conceitos traçados com a exigência de perfeccionista. 

PERFECCIONISMO 

E é justamente esse perfeccionismo que nem mesmo o Barcelona conseguiu amalgamar que me tornou incapaz de encontrar no futebol que vejo sempre e de diversas divisões algo no qual existiria a perspectiva de um encaixe perfeito.  

Traduzindo: o futebol que se verá nesta série como projeção do ideal se manterá exatamente assim, como projeção de um ideal que provavelmente jamais será alcançado.  

Entretanto, não se pense que a inatingibilidade abriria as portas ao infortúnio irreparável a quem gosta de futebol.  

HORIZONTE MOTIVADOR  

A paixão permanecerá intocável entre outras razões porque o horizonte sempre apontará num sentido desafiador de que, quem sabe, de repente, como num passe de mágica, o futebol perfeito, aparecerá nos gramados?  

Mas é preciso ser minimamente sincero: não acredito nessa possibilidade. Tanto não acredito que estou previamente conformado de que bastaria ao melhor time do mundo alcançar dois terços do que se apresenta como desafio de um coletivismo capaz de, com sua força encantadora e resolutiva, minimizar o encanto ponderada das individualidades, por melhores que sejam as individualidades, mas paradoxalmente, apurando ainda mais cada peça da equipe.  

O melhor time nacional desde a implantação do Campeonato Brasileiro no calendário da CBF, em 1971, é o Flamengo de 2019, do técnico português Jorge Jesus. O conjunto de indicadores que tornaram aquele Flamengo insuperável entre os campeões nacionais está quantificado nos quesitos que preparei como base a qualquer análise tática.  

Aquele Flamengo, maior fazedor de pontos da competição, ultrapassou todos os limites convencionais de produtividade numa temporada. Ganhou a Taça Libertadores num jogo final em que esteve abaixo do adversário argentino River Plate, e disputou o título mundial em igualdade de condições com o campeão Liverpool da Inglaterra, algo inédito desde o título do Corinthians em 2012 diante do Chelsea, também da Inglaterra.  

O Flamengo era um time fantástico. Menos que o Barcelona dos bons tempos. Mas nenhum dos dois jamais passou de determinadas exigências que passei a parametrizar. 

Claro que o Barcelona era melhor que o Flamengo, mesmo que tenham brilhado em períodos diferentes. Se jogassem, o resultado não seria nem mesmo uma caixinha de surpresa circunstancial.  

PALMEIRAS NOTA 5 

Para os leitores terem uma ideia do que se trata o que poderia ser chamado de “Manual de um time perfeito”, são quase quatro dezenas de indicadores interdependentes, portanto associados, que estão na raiz e na alma do projeto que dimensiona o estágio de rendimento tático e técnico de equipes sob observação.  

Sob esse ponto de vista, para que os leitores tenham uma ideia mais precisa do significado desse trabalho, o Palmeiras de Abel Ferreira, neste momento o melhor time do País e da América do Sul, não teria uma nota média superior a cinco, numa escala de zero a 10. O Flamengo de Jorge Jesus chegou a seis e o Barcelona a oito.  

Uma das razões de ter contido o ímpeto de fazer exatamente o que estou fazendo agora, ou seja, dar corda à imaginação e partir de vez a uma série em forma de “Manual de um time perfeito” é a crônica dificuldade de resistir a temários do dia a dia, sobretudo voltados à regionalidade do Grande ABC.  

AGORA VAI  

Mas agora não tem mais jeito: iremos adiante, com capítulos erráticos na cronologia, mas que não sofrerão vácuo temporal tão profundo a ponto de os leitores esquecerem desse projeto.  

A troca numérica de cada edição que constará da manchete fixa não terá a velocidade de um ventilador em tarde de verão, mas, por outro lado, não correrá o risco de desaparecer da sensibilidade dos leitores que decidirem consumir um prato indigesto ao romantismo da bola.   

Os leitores alertados sobre os inconvenientes de acompanhar esta série que se preparem para não recriminarem o autor. Quem avisa amigo é.  

Sou propagador e vítima da proposta que finalmente ganha letras de forma. O futebol que assisto não é o mesmo futebol de antes de me meter nessa jornada de perfeição nos gramados.  

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