Sociedade

Cuidado com os Zocas que
se apresentam como Pelés

  DANIEL LIMA - 06/06/2022

Um lobista do mundo judicial que se mete a especialista no ramo de negócios esportivos, um respeitado advogado eleitoral que trafega pelo marketing político, um conciliador no universo familiar que se movimenta numa intriga raivosa – eis três exemplos, que poderiam ser milhares -- do que separa Pelé de Zoca, ou o especialista do pretensioso.  

Quem já não quebrou a cara ao acreditar que um Pelé ou suposto Pelé sempre será Pelé em qualquer missão e se viu, constrangido, diante de um Zoca desastrado?  

Comprar Zoca por Pelé é o pior dos mundos. Comprar Pelé sem saber que Pelé, mesmo Pelé, tem muito de Zoca, também é de doer.  

Duvido que você já não tenha tido muitos contratempos com Zocas travestidos de Pelés.  Eles abundam e nem sempre são detectados por radares sensoriais do ceticismo. Guarda baixa diante de autointitulados Pelés pode ser uma aventura desastrosa.  

BABAÇÃO DE OVO   

Há um enfeitiçamento no ar quando um especialista se apresenta como multiplamente especialista. Um Pelé em todas as funções em campo e que, portanto, não reúne as limitações de um Zoca.  

Quem acha que Pelé específico é sempre Pelé generalizado está anestesiado. Será praticamente inútil o alerta de quem já enxergou que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. 

Pelé e Zoca são metades da mesma laranja de especialistas e pretensiosos. Em muitas situações são também espertalhões e falsários.  

São oportunistas que, ao dominarem tecnicamente determinados riscados, carregam essa qualidade a terrenos de conhecimentos inférteis, frustrantes e comprometedores.  

PELÉ É ZOCA  

Esquecer o princípio básico de que mesmo Pelé é uma cordilheira de Zoca também é um grande risco que pode por tudo a perder.  

Pelé e Zoca foram irmãos separados pelo destino da bola bem jogada.  

Pelé se tornou o maior jogador de futebol de todos os tempos. Zoca, morto em 2020, era um perna de pau. Até tentou pegar carona no talento e nas benesses do irmão famoso. Jogou uns tempos nos aspirantes do Santos e foi titular em 15 partidas obscuras. Marcou quatro gols.  

Subir a escada da meritocracia do futebol tornou-se impossível. Ainda mais porque aquele time do Santos era o time dos sonhos.  

FORÇA DO COLETIVO 

Pelé provavelmente não seria o Pelé que o mundo conheceu não fosse a força do coletivismo ofensivo do Santos.  

O célebre ataque que qualquer criança conhecia de cor e salteado (Dorval, Mengalvio, Coutinho, Pelé e Pepe) só encantou o mundo porque tinha Pelé e os demais – aprendizes de Pelé.  

Como a bola normalmente não é uma repartição pública de conchavos e protecionismos, já que a democracia da aprovação das arquibancadas e da crítica esportiva (nem sempre, porque em grande proporção clubista), Zoca não teve vida esportiva longa.  

PESO DEMAIS  

Zoca viveu discretamente. O estelar Pelé virou outra coisa. Era a simbologia da perfeição nos gramados. Zoca talvez até pudesse se tornar um jogador comum, como a maioria é, mas a fama de irmão de Pelé o perseguia. Não foi o único a sucumbir ante a comparação. Mesmo não sendo irmãos de Pelé.  

Colocar Pelé e Zoca como antônimos é consequência lógica nas quatro linhas do gramado. Daí à qualificação de especialista e de pretensioso é um passo em tantos outros territórios profissionais.  

Os fanáticos que não enxergam a diferença entre Pelé e Zoca, ou seja, entre especialista e pretensioso, cometem equívocos bárbaros.  

OS INTERMEDIÁRIOS  

O mundo não é feito de uma separação tácita entre Pelé e Zoca. Há muitos Rivellinos, Zicos, Tostões e outros craques a dar a gradação de que o perfeito ou quase perfeito não existe, mas o imperfeito, o deformado, também não é uma norma.  

Na escala de tipificações que distancia Pelé e Zoca, Zoca e Pelé, também existem muitos jogadores anônimos, esforçados. Basta dar uma espiada nas escalações de times de divisões inferiores do futebol brasileiro. E mesmo da Série A do Campeonato Brasileiro.   

Muitos Zocas poderiam ser Pelé ou mesmo esses craques intermediários e anônimos caso encontrassem o caminho da redenção. Descobrir o talento a uma determinada especialidade é um achado da vida.  

ENCONTRO AFORTUNADO  

Nem todos conseguem. Por isso não faltam Zocas ou quase Zocas espalhados por todos os cantos no mercado humano. São Zocas em todos os sentidos. Inclusive na ausência de uma centelha de Pelés. 

Pelés são espécies afortunadas que se destacam por força do talento encaminhado precocemente ou não. Uma situação que lhes permitem deixar o lado predominantemente Zoca a segundo plano. 

Pelé verdadeiro teria sido também um Zoca, o irmão desconhecido, se não fizesse da bola referência e reverência. Zoca teria sido Pelé em qualquer área desde que contasse com o destino como aliado.  

Dizem que Zoca não passava de diligente irmão de Pelé a cuidar dos negócios de Pelé. Não chegara a ser um Pelé burocrático. Sim, há Pelés burocráticos aos montes. E pernas de pau no futebol e em tantas outras atividades. 

Pelé era Pelé e se consagrou Pelé como atacante que reunia as melhores características dos grandes atacantes.  

MUITO DE MUITOS  

Pelé não chegava a ser um Baltazar cabecinha de ouro, um Jairzinho de velocidade em diagonal que deixava a defesa enlouquecida, um Romário dominador de cada centímetro da grande área, um Tostão de visão periférica e posicionamento muito além da intuição preventiva dos zagueiros. 

Pelé era, entretanto, um craque que sistematizava qualidades líquidas das grandes estrelas do ataque.  

Pelé era quase tudo isso num mesmo corpo forte, musculoso, veloz, rompedor do espaço em velocidade olímpica. Pelé além de craque também era atleta.  

TAMBÉM ZOCA  

Sócrates, um dos muitos gênios do futebol, fotograva o espaço sob seu controle físico e principalmente sob a ingerência de adversários e companheiros. Sócrates poderia ser comparado a um desses aplicativos que salvam motoristas de trânsito caótico. Sócrates resolvia questões milimétricas com cognição rápida e passe sob medida.    

Pelé era Pelé porque sintetizava as mais densas qualidades dos principais atacantes que o futebol já fabricou. Inclusive de Sócrates.  

Pelé era um símbolo inesgotável da genialidade como atacante, mas mesmo sendo Pelé, e como prova de que ser Pelé não quer dizer ser perfeito, embora o fosse numa determinada característica, também era Zoca dentro de campo.  

ZOCA DEFENSIVO  

Nem poderia ser diferente. Mesmo com a capacidade de armar jogadas do meio de campo em diante, não era nenhum Rivellino ou Gerson. Portanto, nesse setor, Pelé ganharia uma outra conotação avaliativa caso fosse rigidamente esquadrinhado.  

Mas, contraditoriamente, exatamente por se aproximar também dos craques de coordenação num setor vital do gramado, ganhava tração como atacante que, por sua vez, alimentava o escopo de genialidade ao invadir a defesa adversária. 

Pelé foi Zoca dentro de campo para valer apenas como pretenso defensor. É verdade que o futebol de antigamente era menos intenso, corria-se menos, combatia-se menos, transpirava-se menos, mas é pouco provável que Pelé seria múltiplo em todos os cantos se a modernidade de preparação física e das alquimias de estrategistas técnicos vigesse nos campos do passado de um futebol romântico. 

RELATIVIZANDO PELÉ  

Pelé contava sim com porções menos impactantes de Zoca nos gramados. Zoca jamais teve qualquer resquício de Pelé nos gramados.  

Há ainda mais de Pelé para entender o significado de Zoca e de alerta àqueles que se inebriam como supostos suprassumos. Essa gente que faz da especialidade uma ramificação supostamente perfeita a empreitadas erráticas e que, por isso mesmo, dão com a cara na porta do fracasso.  

Pelé era Pelé dentro de campo e mesmo assim do meio de campo em diante. Talvez essa lição devesse servir de teste de humildade aos que se olham no espelho e veem Pelé plenamente rei.   

Pelé era e continua sendo Zoca em tantas outras coisas. As análises de Pelé sobre a especialidade que o levou ao topo da glória esportiva sempre foram decepcionantes. Jamais enxergou como analista as tramas da bola que esquadrinhava nos gramados e que o tornavam insuperável.  

MAIS PELÉ-ZOCA 

Peguem Pelé como comentarista sazonal de futebol e comparem com qualquer craque do futebol que desnuda os segredos de um jogo. Profissionais que hoje estão na mídia eletrônica e, na maioria dos casos, revelam o quanto muitos jornalistas e radialistas são redundantes e de baixa produtividade intelectual. 

Querem um exemplo? Pedrinho, ex-Vasco e Palmeiras, jamais comparável a Pelé, poucas vezes lembrado com potencial de Seleção Brasileira. Pedrinho é um Pelé dos comentários esportivos. Conhece técnica e tática como poucos. Pedrinho não foi um Zoca dentro dos gramados – longe disso – mas é um Pelé nas cabines e estúdios de TV.  

Pelé técnico? Nem pensar. Pelé é Pelé com suas camadas de Zoca porque a vida é assim mesmo. Uma perfeição relativizada pela especificação.  

PATETICE ESPORTIVA  

O recado constatador de que mesmo Pelé é um Pelé específico serve a todos que se deixam engabelar por farsantes que se acham Pelé em tudo, embora em muitos casos não sejam Pelé em nada – exceto na arte teatral de vender gato por lebre.  

Um suposto Pelé dos corredores do Judiciário, por exemplo, pode revelar-se dramaticamente um Zoca insuperável como negociador de ações de um clube empresarial. Vender-se como Pelé a qualquer empreitada é um jeito especial de ser Pelé na malandragem ocupacional que somente dá certo diante de um Zoca ingênuo que o contrata, mesmo depois de alertado.   

Um suposto Pelé num púlpito religioso raramente faz da eloquência o que o conhecimento de um especialista em Vara de Família recomenda e determina. O voluntarismo que se confunde com a especialidade é o caminho da perdição.  

PATETICE ECONÔMICA  

Ouvir com submissão dedicada aos deuses um Pelé das finanças a projetar o quadro macroeconômico pode ser uma burrada gigantesca entre outros motivos porque a ideologia congela a mente, como definiu o ex-ministro Roberto Campos.  

Os jornais publicam diariamente recomendações de palpiteiros que não abrem mão de vieses partidários nas análises políticas.  

Um ex-ministro da Fazenda não cansa de sugerir medidas para aplacar a sanha inflacionária destes tempos, mas o passado o condena como Zoca. Afinal, com ele a inflação ultrapassou a 80% num único mês. Um único mês.  

Dê uma espiada nas relações que você mantém. Faça uma acareação para distinguir Pelés de Zocas. Procure diminuir a carga prevalecente de Zoca que o rodeia. Ingresse no mundo de craques intermediários ou mesmo de jogadores menos cotados.  

Seja autocrítico saudável: tão improvável quanto ser Pelé, mesmo um Pelé relativizado ao campo de ataque, é reduzir a carga individual de Zoca. Somos uma combinação muito maior de Zocas do que de Pelés.  

Não se deixe, portanto, levar no bico por gente metida a Pelé, mas que não passa mesmo de Zoca.  

A diferença é que o Zoca verdadeiro dos gramados jamais se vendeu como Pelé. Nem poderia. O escrutínio da bola rolando é incontrolável na aferição de quem é quem. Já no cotidiano da vida, é um salve-se-quem-puder. 

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