Caso Celso Daniel

Irmãos colaboraram demais
para estragos do assassinato

  DANIEL LIMA - 15/02/2022

Não adianta fugir de uma constatação que vem de longe e se confirmou dolorosamente agora que o Estúdio Escarlate e a Globoplay produziram imbatível documentário sobre o assassinato do prefeito Celso Daniel: os irmãos João Francisco Daniel e Bruno Daniel colaboraram intensamente para destruir parte da memória de grandeza do melhor prefeito regional do Grande ABC. 

Os equívocos do irmão mais velho, João Francisco Daniel, estão sacramentados no passado, mas também sobraram para o presente do documentário.  

Bruno Daniel e João Francisco Daniel são fregueses de caderneta de CapitalSocial. Há, relativos ao Caso Celso Daniel, nada menos que 61 textos com participação de João Francisco e 49 com Bruno Daniel, cumulativamente ou não.  

Embora tenha se negado a participar da produção cinematográfica referencial à avaliação mais sensata do Caso Celso Daniel, João Francisco apareceu num ou noutro trecho da narrativa. O passado flagrado em som e imagem sempre vira presente quando a recuperação dos fatos é respeitada.  

O irmão mais novo, Bruno Daniel, lascou-se por inteiro. O poder de convencimento de um discurso comedido, às vezes indignado, às vezes debochado, caiu na gandaia do proselitismo vazio quando se confrontam também o passado e o presente.  

NEGANDO RELAÇÕES  

Bruno Daniel transparece sinceridade, mas é preciso conciliar credibilidade no rosto de um acadêmico bem adestrado com atitudes mensuráveis. Houve clara interdição entre uma coisa e outra em várias situações em que foi flagrado em contradição.  

Um exemplo: quando disse que não mantinha relações próximas com o primeiro-amigo de Celso Daniel, Sérgio Gomes da Silva, Bruno Daniel mentiu. Sérgio Gomes era tão presente na vida do casal (a mulher Marilena Nakano, também personagem do documentário, não cometeu o desatino de negar a proximidade) que até mesmo favores fez em forma de amizade. Socorreu um dos filhos do casal numa determinada situação.  

Sei disso e muito mais porque mantive dezenas de encontros com Sérgio Gomes da Silva no apartamento em que morava na Rua Santo André. Foram tardes de conversas variadas e divertidas. Além de esclarecedoras.  

BOI DE PIRANHA  

Sérgio Gomes da Silva foi o boi de piranha do Caso Celso Daniel, segundo todas as investigações criminais, menos do MP. Não o conhecia antes do assassinato. Depois, o conheci relativamente bem. Mas isso conto mais profundamente em outra ocasião.  

A maior e mais desastrosa atuação dos dois irmãos vem do passado, praticamente na esteira do assassinato de Celso Daniel. E está documentada na Globoplay e em todas as publicações impressas e digitais sérias deste País.  

Eles defenderam desde o início que Celso Daniel fora morto porque se rebelou contra os desvios de dinheiros oriundos do transporte público. Entretanto, foram mudando de posicionamento, tanto quanto a força-tarefa do Ministério Público instalada em Santo André pelo governo de Geraldo Alckmin para combater a politização do crime pelo PT.  

Descobriu-se agora, no documentário, nas palavras de Bruno Daniel e de Gilberto Carvalho, então chefe-de-governo de Celso Daniel, que, desde o princípio, ou seja, uma semana após o assassinato, eles, os irmãos, tinham conhecimento da gestão paralela de recursos irregulares. Gilberto Carvalho lhes disse que Celso Daniel tinha pleno conhecimento das operações, com as quais concordava em nome do projeto petista de chegar à Presidência da República.  

ABRINDO O JOGO  

Gilberto Carvalho teve a sinceridade de revelar publicamente uma verdade inédita que o PT sempre refutou, mas não deixou de lado o cuidado de preservar a memória de Celso Daniel com outra verdade: o prefeito não usufruía de qualquer vantagem financeira da arrecadação paralela.   

Esclarecendo: quando se juntaram ao MP e aos irmãos da família Gabrilli, concessionária de transporte público contrariada com a política de divisão do mercado com indicados pela Administração Municipal, os irmãos de Celso Daniel sabiam o risco que estavam patrocinando. 

Que risco? O risco de que as investigações do próprio MP poderiam manchar a reputação do irmão famoso. Não só irmão famoso, brilhante, como também irmão distante dos dois, por razões ideológicas, principalmente.  

Aliás, foi a atuação do MP que colocou Celso Daniel na cena do crime de gestão irregular, porque essa era a âncora que fez estalar os dedos dos sábios à conexão entre crime administrativo e crime urbano, de uma Grande São Paulo ensandecida.  

Juntar um caso ao outro foi o amálgama do MP para a versão de Crime de Encomenda. Que o próprio MP, como mostrei ontem, desclassifica como sustentável. 

BARBEIRAGENS HISTÓRICAS  

As reportagens do passado que lançam os irmãos no presente do documentário da Globoplay são uma sucessão de barbeiragens que fermentaram o ambiente de Crime de Encomenda, em oposição a todas as investigações policiais que concluíram por Crime Comum.  

Descobriu-se que os irmãos de Celso Daniel se juntaram ao MP e às patacoadas que se sucederam. Desde a versão de que o médico-legista Carlos Delmonte morreu de morte matada e não de morte propositada (o MP reconhece o suicídio no documentário), passando pela manipulação do conceito de tortura (sempre contando com o médico-legista como informante), ingressando nas fake news da Folha de S. Paulo sobre sete mortes supostamente correlacionadas ao assassinato do prefeito (que também o MP descarta agora), entre outras variáveis vexatórias.  

Jamais fiz um desafio aos irmãos de Celso Daniel, mas que gostaria de levar adiante uma proposta que os integrantes do MP nunca aceitaram: eles não resistem a um debate público, arbitrado com responsabilidade. Seriam duramente encalacrados pelas verdades do Caso Celso Daniel que eles, por razões nobres ou pecaminosas, trataram de retirar do compartimento das forças policiais, ou seja, do ambiente criminal desumano que infestava a Grande São Paulo.  

Na sequência, reproduzimos alguns trechos de três textos que produzi ao longo dos anos para a revista impressa LivreMercado e sua sucessora digital, CapitalSocial. Todas tratam da atuação dos irmãos de Celso Daniel.  

Como entender depoimentos

conflitantes dos irmãos? 

 DANIEL LIMA - 05/01/2006 

Os irmãos João Francisco Daniel e Bruno José Daniel Filho transformaram o caso Celso Daniel em depositário de mentiras, ou então suas declarações são lembranças retardatariamente seletivas. Estaria João Francisco Daniel dizendo a verdade quando afirmou que, em setembro de 2001, quatro meses antes da morte de Celso Daniel, ouviu de Miriam Belchior, ex-mulher do prefeito e então secretária municipal, que havia mal-estar na administração de Santo André? A base do descontentamento seria o fato de que Celso Daniel teria descoberto esquema de propina na Prefeitura, liderado pelo então secretário Klinger Sousa, com a participação de Sérgio Gomes, espécie de primeiro amigo do prefeito, e o empresário Ronan Maria Pinto. 

João Francisco não estaria mentindo quando disse à Imprensa, tempos depois da morte de Celso Daniel, que o prefeito teria sido morto porque se rebelou contra suposta rede de propina, da qual discordava? Mais tarde, mudou a versão: disse que Celso Daniel sabia do esquema de propina, tolerava-o, mas foi assassinado porque descobriu desvios. Uma terceira versão surgiu tempos depois: o Ministério Público, com base em depoimento de uma ex-diarista, anunciou que Celso Daniel participava do esquema de propina diretamente, já que teriam sido encontrados três sacos plásticos de dinheiro na área de serviço do apartamento do prefeito. 

Mas as mentiras ou as lembranças seletivamente retardatárias não param por aí. Na CPI dos Bingos, em depoimento prestado em outubro último, João Francisco disse que Celso Daniel lhe confidenciou, cinco dias antes do assassinato, que estava preocupado com a segurança pessoal por causa de supostos desentendimentos que teria tido com o secretário Klinger Sousa, numa igualmente suposta discussão no Paço Municipal. João Francisco e Bruno Daniel também disseram à CPI dos Bingos que Gilberto Carvalho, hoje chefe de gabinete do presidente Lula da Silva e ocupante de posto semelhante no governo Celso Daniel, lhes teria confessado, num encontro em sua residência, enquanto degustava pedaços de bolo de aipim, que carregou R$ 1,2 milhão do suposto esquema de propina no Corsa de sua propriedade e os entregou a José Dirceu, então um dos principais dirigentes da cúpula petista que pretendia chegar ao governo federal.

Afinal, quais são as provas de que os irmãos Daniel participam ativamente de duas faces improváveis do caso Celso Daniel, o suposto esquema de propina de um lado, o assassinato de outro? Simples: apesar de toda a lista de supostas informações que detinham, tanto João Francisco quanto Bruno Daniel não fizeram qualquer denúncia à Polícia Civil nos dias que se seguiram ao assassinato de Celso Daniel. João Francisco foi ouvido pelos delegados Armando de Oliveira, titular do DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa) em depoimento tomado pelo também delegado José Masi, no dia três de fevereiro de 2002.  

Entenda por que Bruno Daniel foi

patético na entrevista ao Roda Viva 

 DANIEL LIMA - 29/02/2012 

É impossível deixar de traçar paralelo entre Celso Daniel e o irmão Bruno Daniel Filho após assistir ao programa Roda Viva da última segunda-feira. O irmão mais novo do prefeito de Santo André que se foi em 20 de janeiro de 2002 é autoexplicativo das motivações que os levaram ao afastamento em vida e da aproximação unilateral após a morte. Bruno Daniel Filho é uma sombra pálida do brilho do irmão famoso. A distância que os separa explica fartamente as dificuldades de relacionamento em vida e o arrependimento pós-morte, seguido de uma luta árdua para provar o que todas as evidências policiais descaracterizam e desmoralizam, ou seja, que Celso Daniel foi vítima de uma orquestração engendrada por gente que se beneficiava de suposto esquema de arrecadação de propinas na Prefeitura de Santo André.   

Bruno Daniel Filho foi implacavelmente marcado no programa Roda Viva. O enquadramento nas normas de um jornalismo inquiridor o tornou patético. Sobretudo quando submetido às indagações do apresentador Mário Sérgio Conti. Os questionamentos foram providenciais e cortantes. Quem imaginava que por ser uma emissora de TV ligada ao governo do Estado tudo estaria preparado para embalar os chutes às redes de Bruno Daniel Filho deu-se mal. Roda Viva foi suficientemente independente para demarcar um território que as viuvinhas da tese de crime encomendado não suportam: o sequestro e o assassinato de Celso Daniel não têm qualquer relação com o suposto esquema de financiamento eleitoral montado pelo PT em Santo André. Exatamente o que três investigações da Polícia Civil de São Paulo e uma investigação da Polícia Federal concluíram.   

Bruno Daniel Filho não foi apenas um apagado entrevistado, a repetir com a monocórdia dos acadêmicos sem carisma tudo o que o Ministério Público defendeu ao longo do processo, com a desvantagem de que não tem nem a veemência nem a contundência dos promotores criminais alojados no Gaerco, o grupo especial que o então e hoje novamente governador do Estado, Geraldo Alckmin, criou em Santo André para contrapor-se à avalanche exploratória do PT que jogou a responsabilidade do crime no colo do PSDB. Naquele janeiro de 2002 a Região Metropolitana de São Paulo era um enxame de sequestros. Após a morte de Celso Daniel e a troca de comando na Secretaria de Segurança, saindo o deus dos Direitos Humanos, Marco Antonio Petrelluzzi, e entrando o implacável Saulo de Castro Abreu, tudo se alterou.   

Analisamos os pontos principais da entrevista no programa Roda Viva. Bruno Daniel Filho foi tão repetitivo quanto vazio. Procurou demonstrar tranquilidade, mas expôs viés discriminatório à mulher de Celso Daniel. Procurou tourear a realidade dos fatos com afirmações sem sustentação histórica e material. Mais especulou do que clareou um temário para muitos obscuro. O caso Celso Daniel é formado por duas veredas que jamais se encontraram nas investigações policiais. O sequestro e o assassinato jamais tiveram qualquer relação com supostas irregularidades na Administração de Santo André. O que o Ministério Público fez ao longo dos anos foi a junção de uma coisa à outra, sempre sob o silêncio da Polícia Civil, proibida pelo governo do Estado, até 2005, de dar entrevistas à Imprensa. Massificou-se a teoria de crime administrativo, também chamado de crime político. Sufocou-se a conclusão técnica de crime comum.   

Tempo destrói de vez versão do

irmão do prefeito assassinado 

 DANIEL LIMA - 17/06/2019 

Vira e mexe o caso Celso Daniel volta ao noticiário em forma de notícias, de entrevistas, de artigos, de tudo que possa contribuir para servir a algum propósito nem sempre nobre – ou politicamente pouco nobre. Como se transformou num incidente eterno sobre o qual não faltarão evoluções intelectualmente honestas e infiltrações oportunistas, eis que decidi dar uma passada no gramado de controvérsias que jamais cessam para avocar o tempo como testemunho do quanto se pretendeu manipular os fatos.  

Celso Daniel, segundo três investigações da Policia Civil de São Paulo (do governo tucano de Geraldo Alckmin) e uma da Polícia Federal (sob o governo do também tucano Fernando Henrique Cardoso) foi vítima de crime comum. Para a mídia espetaculosa que caiu no conto do vigário da investigação solitária da força-tarefa do Ministério Público Estadual de Santo André, tudo foi resultado do esquema de propina na Prefeitura comandada por Celso Daniel.  

Jamais se viu na história criminal do País uma tese tão absurda ganhar tantos apoiadores. Expliquei essa conclusão ao longo dos anos, mas neste novo texto reforçarei a avaliação.  

Um novo achado que o tempo reservou para dinamitar a versão de crime de encomenda martelado pelo MP é uma entrevista que a Folha de S. Paulo fez em 21 de junho de 2002 (portanto, seis meses após o crime) com João Francisco Daniel. 

O que a uma análise fria já pareceria inverossímil naquela data, tornou-se motivo de ridicularização mais tarde e, agora, consolidadamente uma agressão ao contexto do assassinato.  

João Francisco Daniel é um dos irmãos de Celso Daniel. Falavam-se pouco. Eram ideologicamente antagônicos. João, conservador de direita. Celso, moderado esquerdista. Filhos de família de classe média em Santo André. O pai, Bruno Daniel, também pendia à direita ideológica. O oposto de Bruno Daniel Filho, esquerdista à esquerda de Celso Daniel. Eles se encontravam somente nos eventos de família, como aniversários mais representativos. Falavam-se com a frequência das chuvas no Nordeste. Formavam uma família que se antecipou no processo de distanciamento provocado pelas plataformas tecnológicas. A diferença é que não havia nem sobra de Internet massificada e aparelhos portáteis devastadores.  

Mas isso não importa, exceto como retrato de uma particularidade de afastamento prático gerado sobretudo pela ideologia de contrastes.

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