Caso Celso Daniel

Previsão: jogo eletrizante
no mata-mata da Globoplay

  DANIEL LIMA - 08/02/2022

Estou em êxtase com o desenrolar do Caso Celso Daniel produzido pela Escarlate e levado aos assinantes da Globoplay. Sei lá no que vai dar, mas que o primeiro tempo do jogo de volta desse mata-mata de contraditórios vai ser emocionante não tenho dúvidas. Que quinta-feira chegue logo, portanto.  

Não há outro caminho a trafegar no entusiasmo com essa série documental. Afinal, se foi eletrizante até agora, encerrado o primeiro jogo, de ida, o que dirá o jogo da volta? 

Há várias situações que ainda estão penduradas em pontos de interrogação que possivelmente serão retirados com desfechos que virão. 

Os dois episódios desta semana que passou, e que compõem o que chamei de segundo tempo do primeiro jogo do mata-mata, foram espetaculares. Caíram várias cidadelas que a mídia impressa manteve indevassável durante duas décadas. Máscaras caíram, novas máscaras possivelmente cairão. 

SUCESSÃO DE EXPLICAÇÕES   

A Polícia Civil deu um show de determinação e segurança nas informações. O Ministério Público patinou espetacularmente. Os irmãos se incriminaram na medida que se descobriu que sabiam de tudo sobre os desvios de dinheiro desde antes de se juntarem aos promotores. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh foi para um confronto direto com os promotores. Apareceu o caso da Maria Louca. Apareceu o Suplicy-Beijoqueiro.  

Ficou pendente, entre outros pontos, o aparecimento do bandido Dionísio Severo de Aquino, charlatão metido no enredo pelo delegado Romeu Tuminha em parceria com os promotores criminais, mas que jamais, jamais e em tempo algum participou do arrebatamento do prefeito Celso Daniel. 

Acho que já vivi tempo suficiente como jornalista (e isso vale para desde muito tempo, entre outros tempos a origem do Caso Celso Daniel) que não cometo o deslize de subestimar informação alguma. Tanto não subestimo que assisti cinco vezes cada um dos episódios da Globoplay. Com extremo cuidado e atenção.  

FRAUDE COMO VERDADE 

O assassinato do prefeito de Santo André é algo sobre o qual já escrevi, mas não custa repetir com todas as letras: trata-se de uma das maiores aberrações narrativas da criminalidade estelar deste País.  

O Caso Celso Daniel é uma fraude montada para contrapor-se à politização petista assim que o prefeito foi arrebatado.  

Tudo que gira em torno do enredo de Crime de Encomenda que só ganhou alguma porção de nexo porque no Brasil a mentira bem elaborada vale muito mais que a verdade rudimentar. 

Por isso, mesmo a maior e mais sólida das verdades precisa ser bem articulada. O presente é mais subjetivo e, portanto, muito mais perigoso à compreensão da verdade do que o passado sem a massificação das redes sociais.  

CAINDO EM CONTRADIÇÃO 

Mas é preciso convir e disso não fujo: dadas as condições político-editoriais de então, quando o PT era visto como fantasma a ser combatido a qualquer preço, o Caso Celso Daniel tornou-se extraordinariamente verossímil ao juntar algumas porções de talentos temporais de credibilidade na interlocução com a mídia mais concentrada. Tudo que fizeram foi olimpicamente aceito pela quase totalidade dos formadores de opinião. 

O ponto central que liquida de vez com qualquer tentativa de estender a suposta veracidade da versão de Crime de Encomenda foi gloriosamente desmontado agora pela Escarlate/Globoplay. E de vozes de vários dos personagens da trama.  

Primeiro, o promotor-criminal Roberto Wider Filho, colhido em flagrante delito discursivo nos episódios que estão no ar.  

Disse Wider em 2002 que Celso Daniel fora abatido após o sequestro porque tentou combater o esquema de corrupção em Santo André, ao descobrir malfeitos.  

Disse Wider agora, em 2002, no período de produção da série documental, que Sérgio Gomes da Silva atuava como preposto de Celso Daniel no esquema de propina.  

VEM DO PASSADO  

De fato, Wider caiu nessa contradição bem antes, durante o desenrolar das investigações e das repercussões, mas tudo ficou restrito à mídia impressa e, principalmente, sem que a aferição de uma mídia com algum grau de acuidade.  

Apenas este jornalista detectou a incoerência à época. Mas nada se compara agora que as gravações com o promotor criminal são a expressão da força do audiovisual multiplicada por canais de mídia.  

Sobre os irmãos, Bruno Daniel e João Francisco, é notório que se lascaram e se entregaram em flagrante delito também discursivo: eles sabiam desde uma semana depois do sepultamento do irmão famoso que o irmão famoso integrava o sistema de arrecadação paralela junto às empresas de transporte coletivo.  

Mesmo assim, sabendo que política não se faz sem arrecadação paralela, como bem disse Gilberto Carvalho, secretário-chefe de Celso Daniel, eles foram avante na parceria com o MP para levar o crime ao âmbito político-administrativo, o Crime de Encomenda.  

Bruno Daniel reiterou essa posição agora, no documentário. João Francisco também, mas numa reportagem de 2002, já que fugiu da entrevista à equipe do Estúdio Escarlate.  

CONCORRENCIA FORTE  

São tantas e ofuscantes as evidências de que o Caso Celso Daniel levado à condição de Crime de Encomenda é uma balela sem a mais ínfima possibilidade de prosperar como verdade (e escrevo isso desde sempre) que é uma tarefa complexa hierarquizar os pontos mais acachapantes. A concorrência é fortíssima. 

Ou alguém tem dúvida sobre outro estrangulamento da verdade lógica e incontestável.  Ora, trata-se da ação defensiva de Sérgio Gomes da Silva nos Três Tombos. Alguém de juízo no lugar aceitaria mesmo que fosse apenas razoável um personagem estigmatizado como Sombra virar Holofote? 

Pois foi o que ocorreu com Sérgio Gomes da Silva, a segunda maior vítima do Caso Celso Daniel. Discretíssimo, determinado a honrar o codinome que inimigos do PT de fora do Paço Municipal lhe outorgaram, Sombra jamais cairia na tentação de sair das sombras propriamente dita e, numa espetacular ação de sequestro, tornar-se a estrela maior sobrevivente de algo insano.  

QUEM DEIXA SOMBRA? 

Um Sombra que deixa as sombras por livre e espontânea vontade seria o coroamento autodestrutivo da exposição de tudo que se passava na administração do PT de Santo André e que, deixem a hipocrisia de lado, é o que mais se verifica (e se esconde) no ambiente público deste País. 

 Apenas as travessuras do destino colocariam Sérgio Gomes da Silva na condição de estrela-coadjuvante do Caso Celso Daniel. 

Há um dispositivo de especificação comportamental na sociedade formadora de opinião e consumidora de informação que desvirtua o foco de determinados acontecimentos.  

Um homem que cuidava dos interesses do prefeito de Santo André longe da pauta jornalística e de qualquer outro compromisso passou a ser o vilão do Caso Celso Daniel, embora reunisse todos os atributos para se manter distante da curiosidade alheia.  

Qualquer situação embaraçosa em que se metesse o tornaria compulsoriamente suspeito, um passo inicial à criminalização.    

COMO CONTESTAR?  

Traduzindo tudo isso o que quero dizer é que não seria o fato de ter sido flagrado em delitos administrativos nas investigações do Ministério Público que tornaria Sérgio Gomes da Silva criminoso, ou seja, mandante do assassinato do prefeito.  

Pensem nisso: o homem com o qual poderia dar voos mais amplos em Brasília, vitória de Lula da Silva consumada, decidiu abater o primeiro-amigo pouco tempo depois de jantarem para trocar ideias e decisões sobre o que fazer naquele janeiro de organização partidária rumo a Brasília.  

Não existe na literatura algo que se aproxime de tamanha besteira. O primeiro-amigo daquele que seria um dos homens de linha de frente do partido que caminhava para a vitória eleitoral resolveu matar o primeiro-amigo porque o primeiro-amigo supostamente queria acabar com o esquema de arrecadação paralela quando se sabia que o esquema de arrecadação paralela integrava políticas financeiras de organização do partido para chegar à presidência da República.  

PERSPECTIVA DESANUVIADORA 

Convenhamos que o mínimo que se pode dizer disso é que há gente com a cara de pau de querer fazer com que o outro lado de interlocução seja formado única e exclusivamente por ignorantes ou anencefálicos.  

É subestimar demais a capacidade de raciocínio. Que a sociedade tenha consumido a balela, tudo bem, porque, nesse ponto, a mídia de maneira geral, fez o diabo para assassinar as verdades.  

Minha expectativa em relação ao Caso Celso Daniel da Escarlate/Globoplay é das melhores no sentido de que a seriedade, a independência e a responsabilidade dos diretores do documentário estão se consolidando a cada semana.  

É perceptível aos telespectadores que toda a sutileza do espetáculo semanal da Globoplay não amordaça a compreensão que se tem dos protagonistas desse jogo da verdade, no caso os entrevistados. Diferentemente disso, aliás: o show prescinde de um narrador em off.  

Os próprios convidados a relatar experiência que viveram deixam as digitais. Alguns estão irremediavelmente chamuscados porque abusaram da imaginação fértil, do oportunismo abusivo, da ingenuidade pródiga, dessas coisas que, juntas e misturadas, deixam manchas de fracassos mesmo aos olhos mais desatentos.  

O documentário não precisa ser enfático no que é naturalmente implícito. Basta-se prestar atenção. Há deslizes monumentais na narrativa de Crime de Encomenda.  

Não vejo a hora de quinta-feira chegar de novo com tudo a que tenho direito em matéria de expectativa. Há muita coisa ainda a acontecer para explicar porque tantas coisas inventadas, deturpadas e violentadas viraram verdades.  

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