Caso Celso Daniel

Bomba na Globoplay: Gilberto
Carvalho admite Caixa Dois

  DANIEL LIMA - 04/02/2022

É possível que o ex-ministro-chefe do governo Lula da Silva e secretário-chefe da Prefeitura de Santo André durante a gestão de Celso Daniel esteja aliviado. Gilberto Carvalho admitiu pela primeira vez, em depoimento que consta do terceiro episódio da Globoplay, que tanto existia quanto o prefeito sabia do esquema de arrecadação paralela na Prefeitura de Santo André.  

A declaração de Gilberto Carvalho tem contexto marcante e dinamitador de especulações em torno do assassinato do prefeito, de Crime de Encomenda. Todos com juízo e conhecimentos dos fatos sabem que se trata de Crime Comum. 

O então secretário de governo (é assim que deve ser entendido a função e os desígnios de Gilberto Carvalho em Santo André, indicado por um Lula da Silva que concorreria mais uma vez à presidência da República) relatou a existência de Caixa Dois (com entrelinhas de outros caixas no documentário da Globoplay) aos irmãos João Francisco e Bruno Daniel, uma semana após o sepultamento de Celso Daniel. O tal encontro em que os irmãos dizem que Gilberto Carvalho teria confidenciado a entrega de propinas ao então presidente nacional do PT, José Dirceu.  

QUEBRANDO SIGILO  

O documentário da Globoplay é a mais refinada peça de carpintaria audiovisual já produzida sobre o Caso Celso Daniel, uma polêmica que parece interminável e que completou 20 anos do assassinato no último dia 20 de janeiro. A Globoplay e a Escarlate estão passando literalmente por cima de especulações à direita e à esquerda. 

Até o depoimento de Gilberto Carvalho à Globoplay nenhum integrante da cúpula ou de qualquer instância do PT admitiu essa verdade que, paradoxalmente, desmonta de vez e inexoravelmente a cantilena de Crime de Mando. Que cantilena? De que o prefeito escolhido para comandar o programa de governo do então candidato presidencial Lula da Silva, vitorioso naquele 2002, não teria conhecimento de arrecadação paralela.  

O efeito bombástico da afirmação de Gilberto Carvalho só não é maior do que a história recomenda porque são raros os especialistas no Caso Celso Daniel na mídia em geral. A mídia em geral não sabe nada das entranhas do Caso Celso Daniel além dos primeiros anos de batalhas de versões.  

PRATOS A LIMPO  

Por isso, a declaração que a Globoplay levou ontem aos assinantes, em dois novos capítulos de oito da série documental, não deverá ter grande retumbância aos crentes no Crime de Encomenda é mais uma carga de areia de praia que, utilizada como argamassa, faz desabar o edifício de fantasias.  

Quem é do ramo do Caso Celso Daniel, e também entre os que participaram diretamente e indiretamente das investigações policiais e do Ministério Público de Santo André, sabe que Gilberto Carvalho estilhaçou todos as distorções de interesses políticos que endereçaram a morte do prefeito de Crime Comum para Crime de Encomenda.  

As declarações de Gilberto Carvalho são suficientes para colocar os fatos nos devidos lugares nas prateleiras de idiossincrasias que prosperaram durante duas décadas.  

VERSÃO INSOLVENTE  

Mais que isso:  torna insolvente a credibilidade das investigações da força-tarefa do MP.  Como se as três investigações de forças-tarefas da Polícia Civil de São Paulo e também da Policia Federal já não fossem suficientes.  

Tudo que decorreu do princípio básico e esboroado de que a versão de Crime de Encomenda derivou da revolta de Celso Daniel ao descobrir o esquema de Caixa Dois vai para o beleleu. Como já não o tivesse ido antes, tantas são as provas e fatos em contrário. 

Gilberto Carvalho não foi o único protagonista dos dois novos episódios do Caso Celso Daniel disponíveis na plataforma de streaming.   

O promotor criminal Roberto Wider Filho contribuiu ao fim do quarto episódio com o corolário de uma declaração de agosto de 2002 à mídia e da qual muitos se esqueceram, subestimaram ou, por conta das torcidas organizadas de Crime Comum, descartaram. 

Afinal, o que disse Roberto Wider Filho nos dias subsequentes à intervenção independente dos promotores criminais escalados pelo Palácio dos Bandeirantes do governador Geraldo Alckmin ao entregar a rapadura e fortalecer as declarações de Gilberto Carvalho? 

PRÓPRIA CILADA  

Roberto Wider Filho disse o que simplesmente desmentiu tempos depois, com as investigações em ritmo alucinado para mandar para a cadeia o primeiro-amigo de Celso Daniel, Sérgio Gomes da Silva. Uma autocilada.  

O promotor criminal afirmou na entrevista de 2002, recuperada pela Globoplay, que Celso Daniel foi assassinado porque se rebelou contra o que chamou de esquema de corrupção na Prefeitura.  

O leitor precisa ligar os pontos para chegar ao centro do argumento devassador que torna Gilberto Carvalho libertador de Sérgio Gomes da Silva e portentoso autor de golpe de misericórdia midiática na tese de Crime de Mando.  

Quais pontos o leitor deve ligar? Ora, se Gilberto Carvalho, 20 anos depois, disse o que disse à Globoplay, era mais que evidente que Celso Daniel, como se constatou mais tarde, não só sabia do esquema de arrecadação paralela como provavelmente tinha conhecimento do Caixa Três. Sérgio Gomes da Silva teria permissão do prefeito para conduzir tudo.  

ORTODOXIA HISTÓRICA  

Não há prefeito na historiografia nacional que dispense alguém de confiança para relações externas pouco ortodoxas. Quem negar está mentindo descaradamente. Financiamento eleitoral além do financiamento regulamentado é financiamento eleitoral no paralelo. E paralelo significa formalmente ilegalidade. Que foi naturalizada na cultura política nacional.  

Fosse o Caso Celso Daniel menos abusivamente dominado por falsas verdades e mentiras inteiras, as declarações de Gilberto Carvalho seriam dispensáveis como prova provada de que o Crime de Encomenda é uma baboseira de fundo político-eleitoral que o PSDB impôs ao PT porque o PT transformou o sequestro e a morte do prefeito em peça promocional rumo às disputas eleitorais daquele ano.  

Bastaria reforçar a lógica meridiana. Ou seja: a de que Celso Daniel, integrante do sistema de arrecadação paralela, jamais iria movimentar um dedo sequer para eliminar os fundos especiais em Santo André exatamente porque, entre outras razões, foi chamado pela cúpula petista para coordenar o programa de governo de Lula da Silva. 

TIRO NO PÉ  

Notaram que é um descalabro, um convite à burrice coletiva, simplesmente admitir que Celso Daniel, então muito próximo a Gilberto Carvalho, que fazia parte de sua administração, decidiu jogar no lixo tudo o que vinha construindo para reforçar o caixa do PT porque teria descoberto desvios?  

Mais que isso, e antes disso: a primeira versão do MP para consolidar a tese de Crime de Encomenda é que Celso Daniel desconhecia o sistema de arrecadação paralela. Em seguida, conhecia, mas tolerava. Mais adiante, usufruiria do dinheiro do paralelo do paralelo. Sacos de dinheiros foram encontrados em seu apartamento, disseram os promotores criminais.  

No encontro com os irmãos João Francisco e Bruno Daniel, Gilberto Carvalho deixou claro à Globoplay que o prefeito não usufruía dos recursos financeiros. Sob esse aspecto, nenhum proclamador da versão de Crime de Encomenda ousou avançar o sinal, exceto os promotores criminais que, com isso, mergulharam ainda mais num poço de contradições. 

A ingenuidade dos irmãos João Francisco e Bruno Daniel é que acreditaram no Conto-da-Carochinha de que, ao fazerem todo o estardalhaço em torno do esquema de arrecadação paralela, Celso Daniel não seria envolvido. Mais que isso: iria colar a versão de que, vítima, agiu com heroísmo ao posicionar-se contrário ao sistema. Ou seja:  que a variante de Crime de Encomenda não atingiria a imagem do prefeito e feriria apenas o PT.  

O didatismo deste texto é necessário dado o intrincadíssimo enredo do Caso Celso Daniel. O leitor provavelmente perguntaria por que Gilberto Carvalho demorou 20 anos para um desabafo elegante, contido, mas cortante, no documentário da Globoplay. 

HIPOCRISIA NEGAR  

É nesse ponto que o contexto histórico faz a diferença. A arrecadação de fundos nas áreas de transporte público e mercado imobiliário, principalmente, sempre movimentou a política municipal. É hipocrisia negar. Tanto quanto é uma jornada ingrata combater sem respaldo de autoridades legais. Até hoje é assim e assim continuará. São as empreiteiras dos governos estaduais e federais. 

O próprio Celso Daniel não resistiu ao modus-operandi tradicional de gestores públicos. Ainda em 1982, quando concorreu pela primeira vez à Prefeitura de Santo André, mal completados 30 anos de idade, Celso Daniel aparece numa oratória no documentário da Globoplay.  

Jovem, imaturo e com muitos ideais, Celso Daniel nominou as áreas de transporte público e do mercado imobiliário como focos de corrupção aos quais não cederia à tentação. Mais que isso: os combateria.  

Vinte anos depois, envolvido discretamente na campanha de arrecadação de Lula da Silva à presidência, Celso Daniel foi assassinado por um bando de delinquentes aos quais sempre se mostrou preocupado como crítico da desigualdade social.  

VIRGINALIDADE EM JOGO  

Naquele 2002, com o PT de discurso virginal, de combate à corrupção, qualquer informação saída do próprio partido, sobretudo da cúpula do partido, que colocasse a Prefeitura de Santo André no rol de fundos paralelos teria efeitos catastróficos na campanha presidencial de Lula da Silva. Era preciso repudiar qualquer coisa nesse sentido.  

O que Gilberto Carvalho extravasa agora, 20 anos depois, recoloca as pedras nas respectivas posições anteriores ao assassinato de Celso Daniel. Nada teria se alterado não fosse o imponderável de um crime aleatório que o MP atribuiu digitais de mentoria a Sérgio Gomes da Silva.  

A força-tarefa do MP instalada em Santo André teve conhecimento do sistema de arrecadação paralela assim que começou a investigar a morte de Celso Daniel. Informantes não faltaram.  

Os tucanos de Santo André agiram rapidamente após os primeiros dias de consternação. E foram eficientes. Lançaram os irmãos Daniel e a família Gabrilli para dar conotação de exclusividade delitiva a algo que o setor de transporte de Santo André cultivava havia milênios.  

CRUZ E ESPADA 

Era recomendável unir pontas incompatíveis. Daí a versão de Crime de Encomenda, forjado com base na suposta revolta de Celso Daniel com os desvios.  

O PT ficou entre a cruz de admitir dinheiros inapropriados a campanhas eleitorais, principalmente visando a eleição de Lula da Silva, e a espada de deixar o primeiro-amigo de Celso Daniel, Sérgio Gomes da Silva, sangrar o quanto pudesse.  

E Sérgio Gomes foi levado ao cadafalso do MP como mandante do crime. A versão de Crime de Encomenda jamais teve sustentação testemunhal e de provas, por mais esforços que se fizessem. Diferentemente, portanto, do esquema de desvios de recursos públicos na área de transporte.  

O assassinato de Celso Daniel virou um crime político, um Crime de Encomenda.  

Talvez um dia o ex-ministro de Lula da Silva conte as razões que o levaram a, finalmente, admitir publicamente, num documentário histórico, que Celso Daniel integrava o esquema de arrecadação paralela.  

CAIXAS E CAIXAS  

Gilberto Carvalho não entrou em detalhes sobre os desdobramentos do Caixa Dois, se geraram ou não Caixa Três, quando parte dos recursos financeiros arrecadados no setor de transporte teriam sido desviados a terceiros.  Possivelmente os episódios que restam do documentário tratem disso, mas será dispensável à luz da exatidão. Na maioria dos casos de Caixa Dois, não faltam filhotes de Caixa Três, entre tantos caixas. Intermediários de intermediários também fazem parte da massa bruta da política nacional.  

Da mesma forma que Gilberto Carvalho marcou um gol de placa ao abrir o coração e dizer em 2002 aos irmãos João Francisco e Bruno Daniel que não existe fórmula milagrosa de campanha eleitoral que substitua a energia gerada por recursos financeiros, seria ridículo afirmar que o PT inaugurou o placar de paralelismos em Santo André.  

Não há santidades no mercado de transporte coletivo desde que inventaram algo que possa ser chamado de veículo automotor. Possivelmente até nos tempos das charretes imperava a intermediação.  

FORÇA ORGANIZACIONAL  

A diferença no caso de Santo André e da maioria dos municípios é que o que os demais partidos políticos faziam individualmente em cada endereço, o PT passou a fazer de forma sistêmica, organizada. Desde a redemocratização do País, o PT é a única agremiação com valores organizacionais interdependentes. Uma imensa rede com tentáculos matriciais. Como os grandes partidos do Primeiro Mundo.  

Pois foi pensando nessa engrenagem que lubrificava o sonho de chegar à presidência da República que o Partido dos Trabalhadores de Gilberto Carvalho resistiu bravamente às estocadas do Ministério Público ao fechar o cofre dos segredos de Santo André à invasão investigativa.  

O PT entregou Sérgio Gomes da Silva como recompensa à tese de Crime de Encomenda no contragolpe dos tucanos à realidade desumana do Crime Comum de uma Grande São Paulo enlouquecedoramente dominada por sequestradores naquele começo de novo século. 

Nesta segunda-feira trato de mais aspectos do terceiro e do quarto episódio da Globoplay. Como era esperado, o então senador Eduardo Suplicy foi mais uma vez desmascarado como versão dramática do pitoresco “Beijoqueiro”, personagem do folclore nacional que fazia o possível e o impossível para aparecer na fita de grandes celebridades. Suplicy preferiu o cadáver de Celso Daniel e a desgraça de Sérgio Gomes da Silva para se promover. E se deu mal.  

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