Sociedade

Cartão de crédito, de débito
e o passaporte da felicidade

  DANIEL LIMA - 21/01/2022

É muito provável que você tenha disponível exemplares de cartão de crédito, de débito e, quem sabe, também de passaporte. Não, não é o que você está pensando. Trata-se de Cartão de Crédito de Solidariedade, Cartão de Débito de Revanchismo e Passaporte da Felicidade.  

Também é muito provável que você tenha muitas unidades dos três cartões, ou mais seletivamente, dos dois primeiros. O terceiro não está assim tão fácil de encontrar. E de usar. 

Quem vive em sociedade onde tudo se sabe e se submete aos sacolejos na disputa por espaço com embaraços de sempre acaba industrializando cartões comportamentais que também poderiam ser chamados de cartões existenciais, quando não de resiliência.  Mesmo de resiliência no sentido torpe.  

TORMENTO MOTIVADOR 

Quem provavelmente se dá mais conta desses cartões passou por um grande trauma, por exemplo. É impossível não pensar nos cartões quando se recupera de um tormento em que a vida correu por um fio.  

A sensibilidade de viver a cada dia torna a vítima mais suscetível a nuances que antes passavam quase despercebidas.  

Os usuários dos cartões são qualquer um na medida em que o homem é suas circunstâncias. O alvo da cobrança dos dois primeiros pode ser um ex-namorado, uma ex-mulher, um ex-patrão, um ex-qualquer coisa. Muitas vezes não precisa ser ex-nenhum. Basta pensar diferente, estar do lado de cá e não do lado de lá da política, da religião. As redes sociais não cansam de provar isso. 

CARTÃO INTRIGANTE  

De todos os modelos disponíveis, o Cartão de Crédito de Solidariedade é provavelmente o mais intrigante, quando não decepcionante, porque o usuário pode ser um desalmado programado, meticulosamente programado.  

Os usuários, em geral, não abrem mão de cobrar a fatura. E há também quem quer mais que a fatura convencional. Reagem como agiotas. Querem muito mais que a contrapartida elevada ao cubo que o Cartão de Crédito de Solidariedade pressupõe. 

O pagamento de uma dívida traumática com o Cartão de Crédito de Solidariedade tem várias formas não excludentes. O credor pode se achar proprietário da vítima que de alguma forma socorreu em momentos de dificuldades. Quer tomar conta da vida da vítima. Exige satisfações. Sugere lealdades corrosivas. Manipula frases e emoções. Acha-se protetor, mesmo transgredindo os limites da individualidade. Confunde atenção com opressão.  

COBRANÇA PESADA 

Usuários do Cartão de Crédito de Solidariedade também são perspicazes. Não dão ponto sem nó. Muitos não têm a maldade ou a corrosividade dos gananciosos, mas o subconsciente de cada um diz que têm razões de sobra para interferir na vida do suposto devedor. Exorbitam, exageram, fustigam, pressionam.  

Os credores do Cartão de Crédito de Solidariedade se acham no direito sagrado de exigir tudo, porque supostamente deram aquela porção de apoio emocional, espiritual e mesmo financeiro num momento delicadíssimo da vítima.  

Parecem a cada instante sugerir que a vida garantida foi uma vida sobrevivida graças ao Cartão de Crédito de Solidariedade. Que o emprego arranjado, o caminho judicial mais confortável, a viagem custeada, que tudo isso confere lastro de reciprocidade a qualquer custo.  

VIDA DURA 

Quanto maior e mais grave o evento que fez emergir a aplicação do Cartão de Crédito de Solidariedade, mais a vítima poderá pagar o preço da recompensa aos insidiosos cobradores.  

Pode até chegar o momento em que a vítima seja levada a crer que seria melhor não ter escapado da pior. Só assim, e olhem lá, o Cartão de Crédito de Solidariedade deixaria de ser sacado em seu nome.  

O Cartão de Débito de Revanchismo tem um preço emblemático, menos físico, menos emocional, mas mais simbólico. E quem garante a redução do custo é a própria vítima. Se continuar apenas como vítima e se recuperar a ponto de escapar da morte ou de algo relativamente menos drástico, tornará decepcionado quem se acredita credor do mal desejado.  

BILHETE PREMIADO 

Para o usuário voraz do Cartão de Débito de Revanchismo, a volta por cima do suposto devedor seria algo como jogar no lixo o cartão premiado da loteria. 

O usuário voraz do Cartão de Débito de Revanchismo tem várias formas, mas a mais consistente mesmo é do desejo do usuário dispensar a cobrança do suposto devedor. Quem é credor do Cartão de Débito de Revanchismo quer liquidar a fatura unilateralmente, sem dó nem piedade. Não deseja mais ter o adversário agora vítima bisbilhotando seus negócios, sua vida, sua família, essas coisas. Se o alvo estiver longe do alcance, apenas porque pensa e age diferente, a voracidade destrutiva é a mesma.   

Para o emitente do Cartão de Débito de Revanchismo as melhores notícias são as piores notícias quando envolve o desafeto. Qualquer notícia que saia do leito de uma UTI, por exemplo, que dê conta de que o enfermo pode bater com as dez, o semblante do suposto credor brilha. Se há uma reviravolta, pronto, a decepção se estabelece.  

Más notícias são as melhores notícias para o usuário do Cartão de Débito de Revanchismo. A recíproca é verdadeira. Quando se sai de uma UTI e também do quarto de um hospital, o usuário malvado sofre perda de liquidez.  

BEM-AVENTURADOS 

Já o Passaporte da Felicidade é de uso exclusivo dos bem-aventurados, mas os bem-aventurados também não usam exclusivamente o Passaporte da Felicidade. É claro que se trata de gente fina, de gente que tem humanismo no coração. De gente que sabe separar as coisas. Que não mistura as coisas. Mas que por serem gentes, são permeáveis a outros cartões. 

O Passaporte da Felicidade é para poucos, convenhamos. Lancem ao lixo a hipocrisia do politicamente correto, peneirem as atitudes, filtrem as reações, estratifiquem os sentimentos e o que sobra, líquido e certo, embora escasso, é o translado rumo a qualquer paraíso de civilidade.  

Embora de características totalmente distintas e reveladoras da natureza humana, o Cartão de Crédito de Solidariedade, o Cartão de Débito de Revanchismo e o Passaporte da Felicidade não são autárquicos. Exceto nos casos de psicopatia, claro. Cada situação que se exige o saque específico é uma situação também específica.  

CIRANDA DE CARTÕES 

Há usuários de um e de outro, e também do terceiro, numa carteira de documentos morais e éticos que se equilibram, de acordo com o objeto de uso. Um desafeto aqui, um amigo do peito ali, um parceiro acolá, todos estão sujeitos a participar da ciranda de cartões.  

São raros os usuários exclusivos e únicos do Passaporte da Felicidade. Essa categoria é restrita a pessoas completamente, inteiramente, impressionantemente, acima do bem e do mal. Trafegam indistintamente na zona de conforto espiritual e de desambição material. Contam com barreiras descomunais que interditam contaminação pela sociedade de consumo e de trança-pés.  

Os detentores do Cartão de Crédito da Solidariedade brotam em todos os cantos. Fazem tudo estudadamente. Não dão ponto sem nó. O abraço reconfortante de agora é a exigência domesticadora de amanhã. O carinho de providências materiais nos momentos de tensão e drama podem virar desfaçatez mais adiante.  

JOGO DE CENA 

O Cartão de Débito de Revanchismo é frequentemente dissimulado tanto em forma de ações que agravam o estágio de desgraça do adversário como no politicamente correto de declarações a interlocutores que farão com que a mensagem chegue aos familiares. Um jogo de cena.  

Nesses quase 360 dias de recuperação de um ataque criminoso, tenho pensado muito e demoradamente sobre os donos dos cartões de crédito e de débito e também os usuários de passaporte.  

Não há como não se enganar. A debilidade física e emocional, quando não os circunstanciais estragos cognitivos, coloca em conflito coração e mente em estado de atenção e relaxamento, ou seja, embaralhados na definição do que é uma coisa e o que é outra coisa. O discernimento está sujeito a revisões permanentes.  

TROCAS DE GUARDA

Quase um ano depois, repito, sinto com segurança que houve algumas trocas de guarda nos exércitos que perfilavam na minha vida entre o crédito e o débito.  

Nem tudo que parecia ouro, ouro de fato era. Nem tudo que parecia chumbo, chumbo era.  

Tenho tido tanto alegrias quanto tristezas com esse troca-troca, mas, no fundo, para valer mesmo, o peso maior é o da felicidade de ver tudo com mais clarividência.  

Além de tudo isso, ganhei alguns parceiros na viagem que exige o Passaporte da Felicidade. Gente, inclusive, que demonstrou mais carinho e respeito, além de humanidade, do que, francamente, eu seria capaz de dedicar.  

REVIRAVOLTAS 

Gente com a qual mal dialogava, alguns com os quais estava rompido havia muito tempo e que se mostraram desprendidos, amáveis, inquietos com a dramaticidade que vivi.  

Faça um balanço de sua vida, independentemente de ter passado por algum incidente grave. Veja quem o rodeia, veja com quem convive, anote num caderno alguns conceitos que podem ser anexados aos cartões sugeridos e ao passaporte recomendado.  

Faça isso e você verá que possivelmente nos próximos 360 dias se surpreenderá com os resultados. A vida tem disso. Nem tudo é provisório nas relações, mas a temporalidade acossa cada um de nós.  

É claro que não vou perguntar quantos cartões você tem e qual o que mais utiliza. Não sou invasivo. Tenho certeza apenas de uma coisa: sua carteira está recheadíssima. Não custa dar uma esvaziada, que não precisa ser geral. Até porque ninguém ao que se saiba é candidato a Madre Tereza ou a Frei Galvão, que são de outra divisão. Eles não precisam de cartão algum.

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