Caso Celso Daniel

Documentário histórico põe
fim ao totalitarismo midiático

  DANIEL LIMA - 20/01/2022

Há exatamente 20 anos, em 20 de janeiro de 2002, o corpo assassinado de Celso Daniel foi encontrado numa estrada vicinal de Juquitiba, na Grande São Paulo. Exatamente hoje é possível respirar aliviado: o crime que abalou o País finalmente está sendo tratado com competência e responsabilidade social. O contraditório entrou em campo com a força natural de sabatinar a verdade dos fatos e colocar as mentiras escandalosas para correr.  

O totalitarismo midiático, expressão que pode parecer estranha e rigorosa demais para qualificar a atuação da chamada Grande Mídia, é um retrato fiel dos acontecimentos.  

Houve um massacre da mídia convencional num período em que as redes sociais digitais eram ficção. Ou seja: fake news, como se sabe, não são uma invenção da tecnologia mais sofisticada. Vem do mundo analógico e muitas vezes sem escrúpulos. 

O fato é que se está colocando um ponto final, ou ao menos um ponto e vírgula, no totalitarismo da Grande Mídia.  

Trata-se, portanto, de um empreendimento cinematográfico à altura da complexidade do enredo. "O Caso Celso Daniel", marca do documentário do Estúdio Escarlate, nasceu da liderança de Joana Henning em parceria com a co-criação e direção de Marcos Jorge. O projeto já completou cinco ano. Juntos, Joana Henning e Marcos Jorge trabalham numa trama reluzente e única. Os 20 anos do assassinato, completados agora, são tratados sob perspectiva especial e definitivamente esclarecedora.  Obstinado como toda a equipe, Marcos Jorge tem várias obras, entre as quais "Estômago", em exibição na Netiflix. É mais que provável que, a partir do primeiro epísódio, todo o resto que se referir ao ramo de filmografia do Caso Celso Daniel será visto com desconfiança ainda maior. 

PARA O LIXO! 

Portanto, o anúncio de que a produtora Escarlate e a Globoplay vão lançar série documental de oito episódios a partir do dia 27 é garantidamente a certeza de que todo o lixo preparado e massificado à sociedade com intenções nada nobres ou mesmo por incompetência deixará de ganhar projeção.  

Será lixo imprestável quando submetido ao contraditório. Como deveria ter sido desde sempre se a Grande Mídia não fosse totalitária.  

Não é preciso informação complementar para saber que o elefante de verdades tem patas de elefantes de verdades. Suavizar os danos diretos e colaterais provocados por transgressões informativas é naturalizar uma tragédia que gerou dolorosos custos humanos.  

CONTRADITÓRIOS 

A plataforma de streaming da Organizações Globo deverá oferecer aos assinantes da série uma tempestade de contraditórios que confirmarão a premissa idealizada há cinco anos: o antagonismo testemunhal coexistirá no trabalho como peça-chave de neutralidade.  Caberá aos telespectadores o direito sagrado de julgar.  

Nada menos que 32 entrevistas e 150 horas de gravações viraram insumos da série que retrata o crime mais espetaculoso da historiografia da política nacional.  

Morreu um dos maiores ativos intelectuais e práticos do Partido dos Trabalhadores às vésperas de Lula da Silva ascender à presidência da República. Isso bastaria para dar ao Caso Celso Daniel inquietude natural a conjecturas. Era desnecessário criar enredo falsificador.   

CALANDO A BOCA  

Mas foi o que se fez com extrema competência. E não se interprete competência no estrito valor etimológico. As ações investigativas que retiraram o crime da bitola de uma Grande São Paulo ensandecida e recheada de sequestros, conduzindo-o à esfera da política administrativa, foi uma operação tão automática quanto destrutiva.   

Bastou para tanto, entre outras providências, calar o outro lado, no caso as investigações policiais, e, sobremodo, contar com a desatenção, o descaso, o despreparo, o unilateralismo e tudo o mais da Grande Mídia.  

Não é preciso descer a detalhes da cinematografia a ser exibida na próxima semana para diagnosticar o tamanho exato ou próximo da credibilidade do documentário. Alguns indicativos são robustos ao credenciamento de avaliação contundente e equilibrada. 

AUTORITARISMO   

O anúncio de que foram ouvidas nada menos que 32 personalidades diretamente ligadas ao crime de 20 de janeiro de 2002 sinaliza a preocupação com o sagrado direito de ouvir os dois lados. A isso se dá o nome de contraditório, artigo tão em falta no passado quanto no presente.  

Uma enxurrada de contraditórios será suficiente para soterrar teses alquebradas, mas protegidas ao longo dos anos. É isso que se espera de um batalhão de entrevistados ligados a todas as partes, inclusive a nenhuma das partes.   

Quem diria que após 20 anos de autoritarismo investigativo dos promotores criminais de Santo André, sem o respaldo e, mais que isso, ostensivamente criticados por policiais civis e federais, daria no que a Produtora Escarlate e a Globoplay estão oferecendo a partir da semana que vem?  

Teremos, com certeza, um antológico audiovisual que romperá todas as fronteiras de sandices estabelecidas.  

DRIBLE DA VACA  

Somente os fundamentalistas deverão completar o ciclo de episódios do Caso Celso Daniel sem se darem conta de que foram enganados durante todo o tempo.  

É difícil admitir que se tomou o drible da vaca em investigações recheadas de vieses.  

A faxina de trambolhos informativos do Caso Celso Daniel é a fartura de contraposições, de contrapontos e de tudo que lembre o outro lado. O Caso Celso Daniel da dominante percepção popular de crime de encomenda só ouviu um lado. É impossível resistir à lavagem cerebral tão persistente.  

Quando se calam as forças policiais que investigaram para valer o crime, e durante cinco anos tem-se apenas os acusadores a destilar declarações, o que se pode esperar? A verdade foi assassinada também.  

NOCAUTE MIDIÁTICO  

O projeto da Produtora Escarlate liderado pela CEO da empresa, Joana Henning, tem, portanto, mais que um novo demarcador histórico do Caso Celso Daniel. Também estará inserido num patamar de inconveniências que a Grande Mídia jamais se prestou a reparar e tratará de minimizar agora. Finalmente será colocada a nocaute.   

O documento cinematográfico da Globoplay-Escarlate vai, provavelmente, escancarar os equívocos que viraram verdades, as verdades sufocadas, as meias-verdades que viraram verdades inteiras e as mentiras que viraram verdades incontestáveis.  

Não se espera outro desenlace ante a democratização da informação em forma de depoimentos múltiplos.  Mas tudo isso só será confirmado na prática da exibição. Há todo um sigilo em torno da edição do documentário, como bem lembra a executiva Gisele Vitória, da área de Comunicação e integrada à proposta desde muito tempo. 

A importância de se reunirem tantos testemunhos num projeto que sai do forno com a qualidade inviolável da imparcialidade (é isso que espero, e não tenho dúvida ao me relacionar com os produtores como um dos entrevistados) possivelmente deve causar preocupação a todos que de uma forma ou de outra aderiram à tese de crime de encomenda. 

Ou alguém acha que, sob um guarda-chuva impenetrável à qualquer intempérie, por mais insinuosa que seja, é possível sustentar a tese de domínio público quase unânime de que foi o PT o responsável pelo assassinato do prefeito Celso Daniel?  

NARRATIVA FRAUDULENTA  

Esse é o resumo do resumo de tudo que se ouviu, leu e escreveu sobre o Caso Celso Daniel. As dissidências interpretativas à versão de crime de mando foram hostilizadas, quando não marginalizadas. A mídia totalitária age sempre assim. Como governos totalitários.  

Não custa lembrar, rapidamente, o que está sob o guarda-chuvas da tese que virou sentença judicial subliminar, de que o PT encomendou a morte de Celso Daniel.  

Pense apenas no seguinte conjunto de palavras que compõem a verdade dos fatos: o PT que sempre destacou as ações políticas e administrativas de Celso Daniel e que também, publicamente, enalteceu a capacidade gerencial de o petista arrecadar fundos paralelos para a campanha eleitoral de Lula da Silva rumo à presidência da República, esse mesmo PT decidiu mandar matar o prefeito, através de terceiros que usufruíram de recursos paralelos dos paralelos, porque o prefeito teria descoberto que haveria desvios na arrecadação. 

VERSÕES AUTOFÁGICAS  

Convém lembrar que o enunciado acima foi o segundo utilizado pelo Ministério Público para incriminar os supostos responsáveis pela arrecadação clandestina no setor de transporte público.  

A primeira versão tornava Celso Daniel vítima dos responsáveis pelos desvios, porque teria sido surpreendido pela prática delituosa.  

Mais tarde, numa nova versão do MP, agora definitivamente desmoralizadora da tese de crime de mando, Celso Daniel refestelava-se com dinheiros arrecadados fora dos padrões oficiais.   

Ou seja: o mesmo Celso Daniel que teria se rebelado contra os desvios de dinheiros acabou nadando em dinheiros colocados em sacolas de plástico. Tudo na versão do MP. E ninguém se deu conta de que qualquer injunção de crime de encomenda trafega pelos descaminhos de conclusões grotescas.  

Mais que engatar uma marcha avançada para recuperar múltiplos vetores do Caso Celso Daniel, o importante nessas alturas do campeonato é comemorar o lançamento do documentário da Globoplay como cerco derradeiro às especulações.  

PRESTAÇÃO DE CONTAS  

Mesmo as versões mais supostamente verossímeis que a série documental apresentar, verbalizadas por defensores da tese de crime de encomenda, dificilmente resistirão ao senso crítico de uma sociedade ávida pelo lançamento.  

Está chegando a hora de uma prestação de contas demorada, mas ainda providencial. Vão se retirar do calabouço do totalitarismo midiático informações e provas essenciais à luminosidade mesmo que impactada por restrições pretéritas.   

É difícil negar que o outro lado da história, o lado da transparência proporcionado pelo documentário, entra em desvantagem nesse embate em que versões escondem manipulações.   

Afinal, a verdade dos fatos constatados por investigações policiais sofreu danos cumulativos com a sobreposição de camadas de imprecisões e manipulações de investigações paralelas.  

FARSA PREDOMINANTE  

Explodir percepções populares que predominam na versão de crime de encomenda possivelmente seja apenas um sonho dos libertários da verdade.  

Mas isso não é o mais importante: qualquer movimento nas placas tectônicas de malabarismos técnicos e investigativos que dominaram o imaginário popular na direção incriminadora de um inocente chamado Sérgio Gomes da Silva representará um grito de alforria contra todos que desviaram o Caso Celso Daniel da rota natural de criminalidade urbana e o inseriu num compartimento específico de represália a traquinagens administrativas. O que, portanto, parecia improvável e insustentável sob qualquer lógica, virou uma narrativa publicamente consagradora. Até que, como se vê, 20 anos depois, chegou a hora de saber quem é mocinho e quem é bandido de verdade.  

Se inadvertidamente até uma protagonista retardatária do Caso Celso Daniel admite que não havia razão alguma para o assassinato político-administrativo do maior prefeito regional que o Grande ABC já elegeu, o que esperar como nexo reativo dos pregadores de mentiras e meias-verdades? Eles estarão encalacrados.  

TROPEÇO DE MARA 

Explica-se:  a senadora da República Mara Gabrilli, eleita em 2018 numa campanha em que alçou o Caso Celso Daniel como carro-chefe da campanha televisiva, diz a todo instante que Santo André era o laboratório de financiamento de campanhas e de enriquecimentos supostamente ilegítimos de integrantes do PT.  

Afinal, trata-se de um enunciado tão verdadeiro quanto conflitivo. Reparem que a narrativa de pernas curtas da senadora acaba por entregar a rapadura porque nega a essência da tese de crime de encomenda e deposita integralmente a gênese do Caso Celso Daniel nos braços da fatalidade urbana.  

Mensalão e Petrolão, como denuncia Mara Gabrilli, foram escândalos cevados na gestão de Celso Daniel. O mesmo Celso Daniel que o PT escolhera no último trimestre de 2001 para ser um dos executivos públicos de ouro do que viria a ser o governo de Lula da Silva.  

DIVISOR DE ÁGUAS 

O mesmo Lula da Silva que, pouco antes do assassinato colocou publicamente a gestão de Celso Daniel como exemplo de arrecadação de fundos para a campanha presidencial.   

O laboratório de Santo André comportava tudo, menos um crime de encomenda de petistas contra petista.  

“O Caso Celso Daniel”, da Produtora Escarlate e da Globoplay, provavelmente será o que mais se imagina – um divisor de águas constrangedor a todos que apostaram que o totalitarismo midiático jamais seria posto à prova. O futuro chegou.

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