Caso Celso Daniel

Entenda como e porque Lula e
Alckmin fazem parte do crime

  DANIEL LIMA - 14/01/2022

Este material é o conjunto de quatro capítulos de uma minissérie que tratou de um novo ramal do Caso Celso Daniel. A aproximação pública entre o ex-presidente Lula da Silva e o ex-governador Geraldo Alckmin anunciada no fim do ano passado não é obra do acaso político -- é a extensão de uma cadeia de interesses guardados a sete chaves.  Esse texto foi publicado originalmente nas edições de 10, 11, 12 e 13 de janeiro último. A decisão de juntas as quatro edições tem a finalidade exclusiva de facilitar a leitura. Não há alteração alguma no trabalho.  

A origem do relacionamento de reciprocidades está nos bastidores subsequentes ao assassinato do prefeito de Santo André, em 20 de janeiro de 2002. Lula e Alckmin confrontaram-se de tal ordem que foi preciso chamar Fernando Henrique Cardoso. Depois, tudo mudou. As águas correram para o mesmo destino de poder conciliado, mesmo que parecesse conflituoso. Petistas e tucanos conviveram em relativa harmonia durante uma década e meia.   

Antes que os 20 anos da morte de Celso Daniel se completem neste 20 de janeiro, vamos mostrar multiplicidade de informações que ganharão formato de análise do crime que abalou o País neste século. Poucos têm a dimensão do quanto o incidente significou em interdependências institucionais.   

CONTROLE DA MÁQUINA   

Quem enfiar as relações entre aquele que viria a ser presidente da República justamente no ano do assassinato de Celso Daniel e o então governador do Estado num compartimento estritamente criminal e também no âmbito político-administrativo cometerá erro de avaliação.   

O Caso Celso Daniel é uma portentosa plataforma político-eleitoral com ramificações no controle da máquina pública e respectivos entornos estadual e federal. PT e PSDB encontraram um caminho de segurança. Elegeram-se alguns bodes expiatórios e tudo se resolveu na cúpula.   

Esmiuçamos durante longo tempo o Caso Celso Daniel no campo político-administrativo e criminal. Agora chegou a vez de emergir na arena política propriamente dita.   

Não que nas quase 200 análises durante esses 20 anos tenha faltado esse componente. Há vários textos que remetem a criminalização de um inocente às circunstâncias e contextos de vetores político-partidários.   

ENTENDIMENDO ESCANCARADO  

Mas, agora é diferente. Acontecimentos dos últimos anos, acondicionados como reserva de mercado explicativa, se robustecem na medida em que Lula da Silva e Geraldo Alckmin alardeiam entendimento político a ponto de assumirem diante do País que podem estar no mesmo barco eleitoral.   

A minissérie revelou os motivos que levaram o então candidato Lula da Silva e o então governador do Estado a formalizarem intramuros partidários uma escalada de armistício pós-tragédia com Celso Daniel. É substancial evitar brechas especulativas. Ou alguém entende que o Caso Celso Daniel, emblemático de um jogo de xadrez muito além da tragédia em si, é uma narrativa cujas decodificações podem ser recolhidas aqui e ali em pesquisas na Internet, como a maioria dos profissionais de comunicação faz numa frequente e pouco trabalhosa atividade para perpetuar as barbeiragens publicadas?   

Trata-se de um catadão informativo. Na linguagem futebolística, catadão significa montar um time ordinário, com o que se tem disponível, algo como fim de feira.  

Pois é dessa forma, sem tirar nem pôr que, no caudaloso volume de noticiais e eventuais análises disponíveis na Internet, mesmo como parte do acervo de veículos poderosos, se construíram versões paralelas da tragédia de Celso Daniel. Versões rocambolescas ganharam foro de verdade. Tanto que dominam o imaginário da sociedade.   

SELECIONAR E COLAR   

O processo de selecionar e colar informações imprecisas e apressadas é uma obra de desordem e desastre que levou o Caso Celso Daniel à banalização e a contorcionismos informativos.     

Não falta quem acredite em mortes sequenciais de supostas testemunhas, tanto quanto de parentesco entre a delegada que apurou o caso e a família de Lula da Silva. E tantas outras bobagens.   

Foram frondosas as variações determinadas por investigação paralela da força-tarefa do Ministério Público incrustrada em Santo André. O PSDB ganhou a batalha da informação diante de um PT que pretendia sustentar uma virgindade administrativa que mais tarde, em 2005, o Mensalão desnudou. Depois veio o dilúvio do Petrolão.   

O assassinato parece ter-se verificado há milhões de anos quando a referência é o uso aceleradíssimo e incontrolável da Tecnologia da Informação. A abundância de equívocos da mídia tradicional que ganharam tração com a chegada das redes sociais intensificou e aprofundou versões flácidas, mas influenciadoras em credibilidade.   

Dar visibilidade e detalhes às ações do período em que Lula da Silva era ainda candidato à presidência da República e a Alckmin governador do Estado é uma maneira de tornar o Caso Celso Daniel factível e menos fantasioso.   

DESMONTANDO VERSÃO   

Isso significa, em linhas gerais, o desmonte da versão prevalecente de que o crime foi de encomenda. O entorno do PT assim o teria programado para abafar suposta rebeldia do prefeito em aceitar arrecadação paralela de recursos a campanhas eleitorais.   

O acordo inicial fortalecido por testemunhos familiares supostamente insuspeitos tornou a força-tarefa do Ministério Público submissa a uma versão que não se segurou no futuro.   

Não faltou na praça de manipulações gente como o então senador Eduardo Suplicy, um petista sempre à procura de notoriedade, mesmo que a custa da desgraça alheia. Suplicy também está nessa minissérie. Ele e sua insaciável disposição aos holofotes. Ainda outro dia ele e Geraldo Alckmin se abraçavam nas redes sociais, juntos no propósito eleitoral desta temporada.   

O crime que vitimou Celso Daniel não só não foi de encomenda como, por ser explorado nesse sentido, no sentido manipulador, abriu as porteiras de convergências às cúpulas do PT e do PSDB ao longo dos anos.   

Criaram-se dificuldades para entregar facilidades em forma de orquestração protetiva mútuo.    

UM GRANDE ACORDÃO   

Ao se abriram as porteiras de conveniências entre petistas e tucanos é preciso distinguir uma coisa da outra, ou seja, os petistas e os tucanos. Isso será explicado.   

E também mostraremos qual é o ponto crítico, no tempo e no espaço, em que lideranças dos dois partidos perderam o controle da situação e o acordão desmoronou.    

E isso tem tudo a ver com a arremetida de quem viria a ser prefeito paulistano e governador do Estado.  João Doria derrubou o muro conciliador do PSDB, uma escola da qual Geraldo Alckmin é o mais dileto doutrinador.   

Os quatro mandatos de Alckmin como governador imantaram o PSDB de flexibilidade diplomática. Quem ainda hoje associar Alckmin a um clérigo no púlpito possivelmente ganhará um prêmio pela exatidão da imagem.   

Geraldo Alckmin é tão aristocrático a ponto de vídeos que saltaram às telas de smartfones nos últimos tempos, com críticas duras ao PT, são vistos como fake news.   

As manifestações de Alckmin foram no desespero da disputa pela presidência em 2018, quando recebeu apenas 4% dos votos do eleitorado nacional.   

ALCKMIN CIRISTA   

Geraldo Alckmin acreditava-se contraponto do petista Fernando Haddad, candidato escolhido a dedo por Lula da Silva, encarcerado em Curitiba na esteira da Operação Lava Jato. Alckmin perdeu duas vezes: para a maioria dos concorrentes e também para si próprio.   

Geraldo Alckmin abandonou a oratória de religioso e se comportou como falsa e patética réplica de Ciro Gomes.  Mas nem assim apelou à versão fraudulenta do Caso Celso Daniel que ele, como governador do período, incentivou na contraofensiva ao PT. Alckmin não enveredou pelo crime de janeiro de 2002 na campanha de 2018. Optou pelos acontecimentos posteriores, do Mensalão e do Petrolão.   

João Doria é ousado demais para manter um jogo no banho-maria que PT e PSDB paulistas exercitavam. Por isso, integra o conjunto de fatos e explicações que fizeram com que o Caso Celso Daniel passasse por alterações significativas no processo eleitoral.  O silêncio foi rompido. A espetacularização ganhou espaço inédito.   

Outro personagem do Caso Celso Daniel lançado às manchetes num momento específico, e que se agigantou eleitoralmente com isso, é a senadora Mara Gabrilli.   

FAMILIA DE MAGNATA   

A família Gabrilli, de Santo André, é relevante no acordão entre petistas e tucanos. Sem os Gabrilli e sem os irmãos de Celso Daniel, a força-tarefa do MP não teria respaldo de credibilidade para montar o circo de crime de encomenda.   

A divisão do Caso Celso Daniel em três dimensões é pedagógica. Se no aspecto político-administrativo e no criminal-urbano a morte do prefeito de Santo André já foi escrutinada exaustivamente, com versões farsescas dominando a cena, no aspecto político-eleitoral, de poder propriamente dito, somente nos últimos tempos ganhou solidez mesmo que pouco perceptível à maioria.    

Lula e Alckmin comprovam que o combate feroz entre as duas agremiações não valeria a pena para quem contava com capitanias a administrar.   

O embate político entre petistas e tucanos, principalmente no Estado de São Paulo, deu-se ao longo do tempo sob o signo de conflitos que não ultrapassaram limites da diplomacia, embora na Assembleia Legislativa uma ou outra tentativa de avançar com CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) sobre supostos escândalos tucanos sugerissem ameaça. O teatro de um oposicionismo interesseiro se instalou.  

HORÁRIO ELEITORAL   

Fez-se muito carnaval nas disputas eleitorais no Estado e do País durante várias campanhas majoritárias e proporcionais, mas nada que induzisse cardeais dos dois partidos a decretarem guerra ensandecida. O tempo provou que não faltavam matérias-primas de escândalos. Por isso, Lula e Alckmin agora estão mais juntos e misturados.    

Não se pense que apenas Lula e Alckmin integram o grupo privilegiado que costurou o acordão entre petistas e tucanos. O então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, agiu decisivamente nesse sentido.   

E não poderia mesmo deixar de lado o poder que detinha. Era preciso retirar o incidente do caldeirão autofágico de combates sangrentos entre petistas e tucanos, como se ensaiou nos primeiros tempos pós-assassinato.   

Um dos pontos vitais à compreensão do Caso Celso Daniel na plenitude, e também nessa nova abordagem, é que o tempo não pode ser desprezado jamais. Tempo significa circunstâncias e circunstâncias identificam motivações que, retiradas do jogo de compreensão, aviltam o contexto histórico.   

COMO TUDO COMEÇOU   

Vamos estruturar os temas prioritários à organização de um enredo fundamentado ao longo dos tempos. Sem fake news, sem ideologia, sem partidarismo. Uma tarefa desafiadora e cansativa, quando não com alta octanagem crítica de leitores que preferem caminhos tortuosos de fake news que exacerbam ideologias e são portentosas em partidarização à direita e à esquerda.   

Vamos mostrar a origem do acordão entre petistas e tucanos. Uma parceria discreta que começou num embate das duas agremiações assim que se deu a informação, na TV Globo, de que Celso Daniel fora sequestrado, naquela noite de 18 de janeiro.   

A Prefeitura de Santo André foi palco de um encontro de caciques petistas. A ordem era responsabilizar o governo do Estado pelo incidente. A Grande São Paulo era uma arena de delinquência em forma de sequestros.   

O assassinato de Celso Daniel foi a gota d’água que faltava a uma grande reviravolta. Mas essa leitura perdeu fôlego para a versão insistentemente martelada pelo Palácio dos Bandeirantes. Decidiu-se que Celso Daniel não fora abatido pelo crime comum negligenciado pelo Estado, mas por forças internas do próprio PT.    

SÉRGIO GOMES ESTIGMATIZADO   

A maior vítima, depois de Celso Daniel, foi seu primeiro-amigo Sérgio Gomes da Silva. O “Sombra” estigmatizado pela força-tarefa do Ministério Público. Parte dos operadores do transporte coletivo em Santo André, mais próximos da Administração Celso Daniel, também foi sacrificada --- como se pela primeira vez na história as relações no setor pautava-se por impropriedades.   

Os tucanos sob o guarda-chuva do governador Geraldo Alckmin jogaram pesado no combate à versão de que o assassinato de Celso Daniel decorreu de fragilidades de forças de Segurança Pública do Estado. Um quadro de horrores comprovado nas estatísticas e que culminou na imediata troca de titular da secretaria, anunciada mesmo antes do sequestro de Celso Daniel, por conta da repercussão do Caso Washington Olivetto. 

A aproximação entre o candidato Lula da Silva e o ex-governador Geraldo Alckmin de olho nas eleições deste ano não é resultado do pragmatismo eleitoral que possa ser rotulado de surpreendente, embora improvável à maioria. Ingênuo é quem acredita que no passado de conflitos moderados Lula e Alckmin fossem inimigos ferozes. Até o foram, mas por algum tempo apenas, logo após o assassinato de Celso Daniel.   

O petista Lula e o tucano Alckmin estiveram mais próximos nos bastidores político-administrativos do que acredita quem observa a política com a candura dos inocentes, como se adversários de ontem não possam ser aliados hoje.  

O assassinato do prefeito Celso Daniel em 20 de janeiro de 2002 colocou em polos opostos petistas e tucanos desde que a notícia foi divulgada em edição extra pela TV Globo na noite daquela sexta-feira, 18.  O tempo e as conveniências políticas determinaram a aproximação discreta nos bastidores que agora saltam publicamente.   

COMANDOS PARALELOS   

Manter as portas abertas a recuos e avanços faz parte da política, sobremodo entre aqueles que de alguma forma têm telhado de vidro para cuidar – e na política não há quem não os tenha.   

Lula e Alckmin, representantes dos dois partidos que comandaram em paralelo durante pelo menos 15 anos as duas maiores esferas do poder econômico do País, o Brasil propriamente dito e o Estado de São Paulo, construíram relações invisíveis.   

Não se pode afirmar categoricamente que embates entre petistas e tucanos ao longo dos tempos, sobremodo pós-assassinato de Celso Daniel, tenham sido o que os mais antigos chamariam de marmelada; ou seja, uma combinação farsesca. Mas não está longe disso. Os pecados mais cabeludos de cada grupo foram mitigados, quando não mitigados mutuamente.   

DIVISOR DE ÁGUAS   

O Caso Celso Daniel é um divisor de águas políticas na historiografia do PT sob o comando de Lula da Silva e o aglomerado social-democrata de Geraldo Alckmin.   

De hostis adversários chegou-se ao entendimento civilizatório de que a arte da política é a negociação e a condução de instâncias administrativas a uma banda suficientemente larga que comporte diálogos tanto quanto alguma fórmula de esquecimento, espécie de Alzheimer consensual.  

Foi preciso que se sacrificasse pelo menos uma peça do quebra-cabeça do Caso Celso Daniel para que petistas e tucanos exercitassem permanente jogo de reciprocidades e concessões.   

PT PERDEU MAIS   

No fim das contas, entretanto, mas sem a letalidade imaginada, quem mais perdeu como símbolo ético e de moralidade foi o PT, primeiro a avançar no enxadrismo ao apontar a arma da responsabilidade do crime que vitimou Celso Daniel em direção ao então governador do Estado, Geraldo Alckmin.   

Se escapou dos danos provocados pelo governador do Estado naquela temporada de 2002, quando Lula da Silva foi eleito presidente da República, o PT sofreu duramente as dores do prélio em 2005 com o Mensalão e mais adiante com a Operação Lava Jato, fora da alça de mira dos tucanos.  

Na noite de 19 de janeiro, um sábado de Celso Daniel sequestrado, os petistas de alta coturno reunidos no Paço Municipal de Santo André esperavam por notícias das forças policiais. Mas já deliberaram o alvo preferencial: a hemorrágica qualidade de vida na Região Metropolitana de São Paulo no campo da Segurança Pública.   

INSANIDADE CRIMINAL   

Ações de sequestros seguiam curso de insanidade. Pouco antes de Celso Daniel, precisamente em 11 de dezembro, o sequestrado mais estelar foi o publicitário Washington Olivetto.    

Criminalizar o estágio gravíssimo da política de Segurança Pública, herdada dos Direitos Humanos do então governador Mário Covas, foi o passo imediato dos petistas reunidos em Santo André antes mesmo do desfecho do sequestro. O corpo de Celso Daniel foi encontrado na manhã seguinte, de domingo, numa estrada vicinal em Juquitiba, na Grande São Paulo. A ofensiva petista contava com o respaldo da Grande Mídia, havia muito tempo inquieta com os índices de sequestros.   

A Grande São Paulo era uma terra sem lei. Sequestros abundavam. O prestígio da cúpula da Segurança Pública do Estado escorria pelos ralos do descrédito. Viviam-se situações de tensão. Até que veio o assassinato de Celso Daniel, ponto de partida do restabelecimento da lei e da ordem não só na Grande São Paulo, mas em todo o Estado. Os índices de criminalidade foram reduzidos drasticamente. Os sequestros desaparecem do mapa das estatísticas.   

MUNDO DESABOU   

A repercussão internacional do crime foi retumbante. Nas primeiras semanas o estrondo da mídia deveu-se exclusivamente à precariedade do sistema de Segurança Pública do estão brasileiro. O número de sequestros no Estado de São Paulo no primeiro semestre de 2002 quase dobrou em relação ao mesmo período do ano anterior. A tendência de queda é um processo que precisa de maturação, como explicou o diretor do DEIC (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado), Godofredo Bittencourt, à época dos fatos. Ele disse: “A grande explosão do número de sequestros ocorreu no segundo semestre do ano passado” – referindo-se a 2001, antevéspera do assassinato de Celso Daniel. E completou: “A comparação tem de ser feita com os trimestres anteriores, que demonstram a pequena tendência de queda. Houve uma reação da polícia com a criação da divisão antissequestro, no final do ano passado”, ainda se referindo a 2001. “Os resultados são lentos. Leva tempo para montar uma estrutura e treinar homens para combater esse crime” – afirmou o delegado à época, em entrevista à Folha de S. Paulo.   

Os dados de criminalidade no Grande ABC foram estrondosamente aliviados desde a morte de Celso Daniel. Assim como entre os paulistas. O jornal Diário Regional publicou em janeiro do ano passado os dados de homicídios do ano anterior, ou seja, 2020. Foram assassinadas 148 pessoas, contra 158 em 2019. Uma variação para baixo de 6,3%.   

FAÇA AS CONTAS   

Experimente fazer a conta de quanto houve de redução de assassinatos no Grande ABC (e o Estado seguiu trilha semelhante) a partir da morte do prefeito Celso Daniel. Em 2001 (sempre é bom lembrar como ano anterior ao crime) o Grande ABC registrou 949 casos. No Estado de São Paulo os casos caíram de 12.475 para 3.674 – redução de 70,55% ante 81% na região composta por sete municípios.   

Agora faça as contas levando-se em consideração as 148 mortes de 2020, ou mesmo as 158 de 2019, e veja o resultado. Menos 83,35%. O Caso Celso Daniel está na origem de tudo isso. A política do Estado de São Paulo na área de Segurança Pública foi profundamente alterada.    

O governador Geraldo Alckmin, candidatíssimo à reeleição naquela temporada, estava a nocaute, após tomar posse com a morte de Mário Covas. Aparentemente não havia perspectiva de mudança de rota no desgaste público.   

CONTRAGOLPE TUCANO   

O resumo da ópera é que o contragolpe da máquina tucana no Palácio dos Bandeirantes foi incisivo: escalou-se uma força-tarefa de três promotores criminais para atuar no caso, à parte das investigações policiais.   

E os representantes do MP cumpriram as tratativas com extrema competência midiática, embora com debilidades técnicas inescapáveis: o feitiço do ambiente criminal na Grande São Paulo virou contra o feiticeiro de supostos crimes administrativos na gestão de Celso Daniel, com a consequente imputação do bode expiatório chamado Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, primeiro-amigo de Celso Daniel. O homem que dirigia a Pajero tomada de assalto nos Três Tombos, em São Paulo, por delinquentes fortemente armados.  

O governo de Geraldo Alckmin tirou o peso da complacência com que atuava na gestão da Segurança Pública e colocou o assassinato no colo administrativo do PT. O crime teria motivação extra, de encomenda.  Celso Daniel teria se rebelado contra um esquema de propina no setor de transporte. Nada mais falso. Misturaram-se situações que jamais se encaixaram nas três investigações da Polícia Civil e também na atuação da Policia Federal.  

CAINDO PELAS TABELAS  

A primeira conclusão da força-tarefa do MP não resistiu ao tempo. Não demorou para, em seguida, colocarem Celso Daniel na cena do crime administrativo ao se chegar ao veredito de que o prefeito sabia do esquema de arrecadação de fundos, mas se insurgiu contra os desvios a terceiros, ou seja, para fora dos cofres do PT. Mais adiante, Celso Daniel foi colocado de vez entre os prevaricadores: encontraram sacos de dinheiro no apartamento em que morava.    

Com impropriedades informativas reverenciadas como verdades absolutas no noticiário de conveniências, o Caso Celso Daniel abriu em seguida gradual processo de conciliação entre tucanos e petistas. Uma obra de arte de diplomacia com ares externos de conflitos sob controle.  

Traduzindo: ao longo dos tempos e de forma cada vez mais pronunciada, petistas e tucanos se deram muito bem até que um outsider chamado João Doria ingressou no embaralhamento e quebrou a unidade em torno do acordo de tornar o Caso Celso Daniel compromisso à discrição.   

VIRGINDADE ROMPIDA   

Ou seja: petistas e tucanos de alta plumagem acordaram informalmente que qualquer que fosse a zona de atrito em busca de votos, a morte do prefeito de Santo André jamais seria transformada em campo de luta.   

É claro que até que chegassem ao ponto de entendimento, o desgaste provocado pela politização do Caso Celso Daniel custou mais ao PT do que aos tucanos.   

A virgindade petista no campo administrativo naquele 2002 sofreu forte abalo. Nada que se comparasse, entretanto, ao que veio em 2005 com o Mensalão e, em seguida, já com o estouro da Operação Lava Jato, que impactou o coração do PT. Situações sobre as quais o PSDB não teve participação direta.   

O acordão pós-Celso Daniel entre as duas agremiações foi mantido durante longos anos. Os escândalos subsequentes fugiram do controle dos dois partidos. Inclusive casos paulistas do Metrô, do Rodoanel e de tantos outros.   

Os acontecimentos pós-assassinato de Celso Daniel não impediram a vitória de Lula da Silva como presidente da República em 2002, depois de três frustradas tentativas.   

FORA DO HORÁRIO DE TV   

Como parte do acordão estabelecido, o Caso Celso Daniel tanto na versão de Segurança Pública como de gestão pública, não ganhou uma plataforma decisiva na obtenção de votos: o cabrestão eletrônico da propaganda eleitoral oficial. Tanto quanto nas demais eleições que vieram. Até que – e esse é um ponto extraordinário ao entendimento da situação histórica -- João Doria atropelou o grupo mais conservador do PSDB ao tornar-se prefeito de São Paulo e, em seguida, governador.  

Voltando a 2002, Alckmin elegeu-se em São Paulo. O eleitorado do Estado de São Paulo não constava do portfólio de potencialidades para valer do PT. Da mesma forma, a disputa nacional era vista pelos tucanos como improvável à sucessão de um desgastadíssimo Fernando Henrique Cardoso, presidente reeleito em 1998 que também participou dos acertos para deixar o Caso Celso Daniel num ambiente de neutralidade televisiva.   

NADA NA INTERNET   

Quem tiver alguma dúvida sobre o que poderia ser chamado de esquema de intocabilidade do Caso Celso Daniel pelos tucanos de alto calibre no Estado de São Paulo, e também do então e em seguida ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, vai encontrar uma resposta contundente na Internet: praticamente não há registros.   

Ainda outro dia a Folha de S. Paulo publicou matéria de página inteira sobre as relações entre Geraldo Alckmin e Lula da Silva. Não encontraram nada no passado anterior à chegada de João Doria que os colocassem em rota de colisão constrangedora.   

Tudo – que é muito pouco, levando-se em conta o protagonismo estadual e nacional das duas agremiações – está concentrado nas eleições de 2018 e nos rescaldos subsequentes, quando o acordão já esgarçara.   

PROMOTORES ATACAM   

Quem tratou de desgastar o PT ao longo das investigações foram os promotores criminais da força-tarefa do Ministério Público instalada em Santo André. Diferentemente da Operação Lava Jato, o Caso Celso Daniel não se desdobrou de ação conjunta de policiais federais, policiais civis e promotores criminais.   

Mais que isso: o antagonismo em relação à atuação do MP era um dos pontos mais visíveis no ambiente investigativo. Havia atmosfera de contestação aos poderes de o MP investigar. Para o governo do Estado, o que interessava não era exatamente a cor do gato da legalidade constitucional da atuação do MP, desde que caçasse o rato da vinculação do crime à gestão pública do PT. A resposta à politização petista foi contundente.   

Somente incautos que consomem informação sem adestramento da vida prática acreditam que o que existia na Administração de Celso Daniel na área de transporte público e os concessionários afrontava o modus-operandi tradicional.    

CRIME COMUM SOTERRADO   

Os entreveros entre concessionárias mais arraigadas nas entranhas da Prefeitura e os novos players que contavam com o suporte da Administração Municipal geraram rivalidade natural, comum a todos os endereços em que grupos políticos concorrentes exercem o direito de alterar a relação com fornecedores.   

O assassinato de Celso Daniel não teria encontrado espaço a tergiversações motivacionais se a manobra inicial da cúpula petista no Paço Municipal não levasse o governador do Estado e seu staff a preparar uma reviravolta.   

A versão de crime comum esmiuçada por forças policiais perdeu a disputa na mídia e na mente da sociedade para crime de mando por razões de gestão administrativa. A contraofensiva do MP pegou o PT no contrapé.    

E AGORA, JOSÉ?   

Agora que Geraldo Alckmin e Lula da Silva se colocam publicamente tão próximos e tão interessados em trocar alianças eleitorais, é possível que direitistas e os centro-direitistas que sempre brandiram avaliação de que se tratou de crime político possivelmente revejam posicionamento.    

No balanço geral do Caso Celso Daniel neste início de terceira década do século, quando se registram 20 anos do assassinato daquele que se tornou o maior prefeito regional do Grande ABC, o que se tem mesmo é um elemento estranho a abrir a caixa de Pandora em forma de silêncio midiático que se viu na campanha eleitoral de 2018: um atravessador chamado Jair Bolsonaro.   

Um candidato de direita fora do esquadro de controle de petistas e tucanos que, como a maioria da população, acredita que Celso Daniel foi vítima de crime de encomenda no sentido político-administrativo.   

Quanto a isso, não faltam declarações de agentes públicos do espectro de Jair Bolsonaro a configurar o crime num compartimento de terrorismo petista, típico de que os fins justificariam os meios.   

Celso Daniel fora abatido, destilam os direitistas mais ortodoxos, porque rebelou-se contra as roubalheiras do PT no laboratório de Santo André, gênese da estrutura delinquencial de Lula da Silva e seus parceiros – afirmam reiteradamente os representantes do conservadorismo nacional.  

MARA HERDEIRA 

A senadora tucana Mara Gabrilli é herdeira político-eleitoral do petista Celso Daniel. Uma herdeira às avessas, mas herdeira. Eleita em 2018, a filha de um dos barões do transporte coletivo do Grande ABC, Luiz Alberto Gabrilli, soube explorar a condição de vilania e de criminalidade imputadas ao PT em Santo André. Mara Gabrilli capitalizou prestígio e votos, primeiro como deputada federal eleita duas vezes, depois como senadora.  

Mara Gabrilli é herdeira transversa de Celso Daniel porque rompeu em 2018 de forma barulhenta o acordão que vigorou entre petistas e tucanos tempos em seguida ao assassinato do prefeito, em janeiro de 2002.   

A ordem da cúpula dos dois partidos, que tornou o assunto proscrito dos programas eleitorais de rádio e televisão nas competições posteriores ao crime, foi revogada 16 anos depois de forma contundente.   

NOVO PSDB EXPLOSIVO   

Uma tomada de decisão redentora à integrante de um dos clãs do transporte público do Grande ABC, moça de família rica, portanto, estudante nas melhores escolas privadas, como o Colégio Bandeirantes, na Capital.     

Apoiada pelo governador João Doria, que explodiu a costura de conveniências estratégicas entre as duas agremiações aparentemente inconciliáveis, Mara Gabrilli fez do Caso Celso Daniel porta-estandarte da campanha rumo ao Senado Federal. A operação foi tanto um sucesso eleitoral quanto reveladora dos novos e dos velhos tempos entre petistas e tucanos.  Grupos antagônicos de antigos tucanos e novos tucanos demarcaram novo período da agremiação.  

Jamais até então, ou seja, até que João Doria tomasse conta da cúpula tucana e determinasse caminhos a seguir, o assassinato de Celso Daniel foi levado com insistência, ou mesmo discretamente, às campanhas eleitorais no rádio e na televisão reservadas aos partidos políticos. Com Mara Gabrilli foi um estrondo. O carro-chefe da reta final da campanha televisiva. Mais, inclusive, que a condição de deficiência física que a marcou após acidente automobilístico.   

PALANQUES ELETRÔNICOS   

Os palanques eletrônicos dominaram no passado a cena eleitoral. Alteravam os rumos dos acontecimentos. As redes sociais estavam longe de contar com a densidade de audiência. Aparecer principalmente na TV em horário nobre era objeto de negociações interpartidárias vultosas.   

Coligações partidárias se davam fortemente vinculadas à exposição televisiva, entre outras variáveis. Horário eleitoral era moeda de troca valiosíssima na busca por vitória. Ainda o será nesta nova temporada de votos, claro, mas sem a mesma intensidade.   

A mídia eletrônica segue importante, mas está longe de influenciar como antes. Ter mais tempo de TV e de rádio já não é um caminhão de votos. Ajuda, mas não decide isoladamente. Está aí Jair Bolsonaro para comprovar. Tanto quantos muitos deputados federais e estaduais que recorreram a aplicativos tecnológicos.   

Em contraposição, o ex-governador Geraldo Alckmin apanhou miseravelmente na campanha presidencial de 2018. Obteve apenas 4% dos votos. Nada condizente com o extensivo uso do horário eleitoral no rádio e na televisão. Tempo de exposição sem narrativa conectada às intempéries e oportunidades vale cada vez menos.   

GANHANDO A DISPUTA   

Mara Gabrilli distanciou-se dos demais competidores na disputa por uma das duas vagas ao Senado na medida em que o Caso Celso Daniel foi martelado na programação televisiva de 2018. Mara Gabrilli utilizou de versão dominante no imaginário dos eleitores. Instalou o crime no compartimento político-administrativo. Como o PSDB pós-assassinato. O PT foi ao Tribunal Regional Eleitoral para obstar a propaganda de Mara Gabrilli. Perdeu para a liberdade de expressão.  

Mara Gabrilli venceu a disputa após firmar uma evolução fantástica na reta de chegada, quando o eleitorado dá mais atenção aos votos proporcionais. Mara Gabrilli foi eleita com 18,63% dos votos válidos. Ficou atrás apenas do major Olímpio, que teve 25,79%. O então senador petista Eduardo Suplicy ficou em terceiro com 13,32%. Dez dias antes, Suplicy liderava enquanto Major Olímpio e Mara Gabrilli pareciam fadados a disputar a outra vaga.     

Suplicy liderava até que Celso Daniel foi intensamente levado à tela por Mara Gabrilli como mártir de traidores do PT. Justamente o Caso Celso Daniel, no qual Suplicy foi tão contraditório, uma mistura de ambiguidade política e estrelismo individualista. Agiu o tempo todo à procura da mídia. Rompeu todos os cuidados com que o PT tratou da situação.  

PATETICE SUPLICIANA   

Suplicy chegou a ser patético no caso do testemunho de suposto pastor evangélico, que teria assistido a tudo no chamado Três Tombos, na Capital, local em que o veículo dirigido por Sergio Gomes da Silva foi metralhado e abalroado pelos sequestradores de Celso Daniel. Suplicy deu ouvidos a um farsante.   

A gravação em vídeo do sequestro alardeada por Suplicy não passava de golpe. Não havia prova alguma. Mas Suplicy, ansioso por manchetes, não resistiu à armadilha do falso pastor, a quem chegou a pagar passagens para depor na chamada CPI do Fim do Mundo. Logo se descobriu a farsa.    Mas o estrago se acentuava para o PT e principalmente ao alvo central das acusações, Sérgio Gomes da Silva.  

A ofensiva contra o PT arquitetada pelos tucanos agora sob o controle de João Doria deu resultado. O antigo PSDB de Geraldo Alckmin, de José Serra e de outras cabeças premiadas, que articularam um modus operandi de convivência mutuamente satisfatória com o PT, estava nocauteado pelo pragmatismo do governador e seu entorno. Os tucanos mudaram de mãos diretivas em sintonia com o desgaste nacional do PT na esteira de escândalos e do impeachment de Dilma Rousseff.   

OUTRA HISTÓRIA   

Fosse outro o governador, principalmente Geraldo Alckmin, a história seria diferente nas eleições para o Senado em 2018. Mara Gabrilli provavelmente nem seria candidata. Afinal, o arranjo pós-Celso Daniel virou ponto de honra entre as duas agremiações.  

Em julho de 2018 publiquei na CapitalSocial um contraponto à entrevista que Mara Gabrilli dera em maio ao blog do jornalista do Estadão, José Nêumanne. A data é denunciadora do espírito com que Mara Gabrilli se lançava à candidatura a uma das duas vagas ao Senado Federal. Ainda era pré-candidata.   

As questões foram todas direcionadas ao Caso Celso Daniel com viés incriminatório ao PT. Estava ali mais que plantada operação de campanha eleitoral que se confirmaria na televisão e no rádio.   

Para quem ainda resiste a acreditar que PT e PSDB convergiram a um demorado mas produtivo acerto diplomático após tumultuado relacionamento nos tempos imediatos ao assassinato de Celso Daniel, uma resposta de Mara Gabrilli naquela entrevista é simbólica da ruptura.  

REVELAÇÃO DO ACORDÃO   

Acompanhem a pergunta do jornalista do Estadão, que repasso integralmente, da mesma forma que a resposta de Mara Gabrilli:  

Pergunta -- Por que, ao longo destes anos todos, em que a senhora, que chegou a ocupar um lugar na Mesa da Câmara dos Deputados, lutou para exigir satisfações a esse respeito, seu partido, o PSDB, nunca tomou uma atitude para exigir das autoridades estaduais, da polícia e da Justiça a solução definitiva do assassinato?  

Resposta – Eu sempre procurei justiça pela população de Santo André e pela honra do meu pai, mas nunca quis partidarizar esse tema, tornar um PSDB x PT. Até porque, quando tudo aconteceu, eu ainda não era filiada a nenhum partido político e nem sonhava em entrar para a política. Na época, o PSDB incumbiu a Polícia Civil do Estado de São Paulo de investigar o caso e a resposta que deram foi se tratar de um crime simples, de latrocínio. Para mim, não foi o que aconteceu. Mas, para o partido, o assunto parece ter se encerrado ali. Eu segui minha luta, por conta própria. Minhas denúncias ao Ministério Público, meus questionamentos aos envolvidos, quando foram participar em comissões na Câmara dos Deputados, enfim, todo o meu esforço para tentar desvendar esse caso foi por conta própria, nunca em nome do partido – disse Mara Gabrilli.  

Não parece haver nesga de dúvida sobre a lógica eleitoral do governador João Doria ao interromper o circuito histórico de contemporizações do PSDB. Os tucanos mais alinhados a João Doria fizeram o partido saltar do muro no Caso Celso Daniel.   

VITÓRIA DUPLA   

E Mara Gabrilli, filha de uma das supostas vítimas do PT em Santo André, não teria sido uma saída melhor. Tanto que a politização televisiva da morte do prefeito rendeu salto ao Senado. Uma vitória dupla, como se sabe. Mara Gabrilli se elegeu na vaga aberta por um petista.   

Na entrevista ao blog do jornalista do Estadão, Mara Gabrilli fala de inexperiência política quando da morte de Celso Daniel. Entretanto, três anos depois, dentro do macroplano de arrefecimento da atribuição do crime à gravidade do quadro criminal na Região Metropolitana de São Paulo naquele início do século, a filha de Luiz Alberto Gabrilli virou a primeira titular da Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (SEPED) em São Paulo, numa determinação do prefeito tucano José Serra.   

Dois anos depois a secretaria deixou de ser especial e passou a integral o rol das secretarias efetivas da Prefeitura. O exemplo paulistano proliferou Brasil afora. Mara Gabrilli iniciava uma carreira política que culminou na eleição para vereadora e em seguida a deputada federal.  

CARREIRA METEÓRICA   

Filiada ao PSDB desde 2004, Mara Gabrilli praticamente não participou do Caso Celso Daniel nos primeiros anos após o assassinato. Quem esteve na linha de frente foi a irmã mais velha, Rosângela Gabrilli. A representante de uma das oligarquias do transporte público no Grande ABC se juntou aos irmãos do prefeito assassinado -- João Francisco e Bruno Daniel -- e engrossou o coro de crime de encomenda preparado pela força-tarefa do Ministério Público Estadual incrustrado em Santo André a mando do gabinete estratégico do governo do Estado.  Tudo muito bem-organizado sob o ponto de vista de combate ao adversário.  

Em São Paulo, desbravando uma secretaria de alta visibilidade e popularidade, Mara Gabrilli recolocou como prioridade o processo de responsabilização do PT pela corrupção no setor de transportes de Santo André. Colocou o pai Luiz Alberto no rol de vítimas, embora a historiografia do setor recomende muita cautela na definição de heróis e vilões.     

Foram muitas as vezes em que Mara Gabrilli debitou as complicações de saúde do empresário a suposta coação que teria sofrido dos integrantes do denunciado esquema de corrupção no setor.   

Mara Gabrilli tem um calendário de fatos e versões próprio: para a filha do magnata Gabrilli, o esquema de financiamento eleitoral em Santo André durante o período do governo de Celso Daniel era uma inovação nas relações entre o Poder Público e a iniciativa privada.   

PREFEITOS-SANTOS   

Ou seja: os prefeitos antecedentes em Santo André não teriam jamais cedido à tentação do setor de transporte coletivo. Eram beneméritos numa atividade de compulsória aderência entre as partes, pública e privada.  

Os Gabrilli e assemelhados, que durante muitos anos monopolizaram o transporte público em Santo André, seguiriam uma cartilha de cidadania invejável, segundo a ótica de Mara Gabrilli. Não faltaria muito à santificação. Talvez até fossem recebidos pelo Papa.   

Os invasores no transporte coletivo em Santo André durante a gestão de Celso Daniel e denunciados ao Ministério Público seriam uma exceção à regra geral. Entretanto, a versão demonizadora de Mara Gabrilli não resiste à realidade histórica do setor de transporte.   

SAÚDE CONTRADITÓRIA    

Não bastasse tudo isso, a atribuição de efeitos de estresse à morte do pai deveria ser avaliada com ressalvas. Em nenhum momento nos 20 anos de assassinato de Celso Daniel a família Gabrilli teve a ideia, ou pelo menos levou a sério eventual ideia, de dar transparência ao prontuário médico do patriarca.   

Como o Caso Celso Daniel aportou durante todo o tempo uma tempestade de informações contraditórias, a dúvida que persiste sobre o quadro de saúde de Luiz Alberto Gabrilli tem consistência para quem lida com fatos e provas.   

As deficiências renais de Luiz Alberto Gabrilli não contemplariam correlação com os dissabores de ter que dividir o filão do transporte público com agentes de confiança da gestão de Celso Daniel, no caso Sérgio Gomes da Silva, Ronan Maria Pinto e Klinger de Souza Oliveira.   

OLIGOPÓLIO ROMPIDO  

O oligopólio da ala dos conservadores de postos do transporte público foi rompido a contragosto dos mandachuvas de então. A criminalização dos novos atores, inclusive pelo Judiciário, indica que o modus operandi tradicional sofreria sentenças semelhantes em caso de devassa. A politização do Caso Celso Daniel transformou o usual, condenado eticamente nas relações entre Poder Público e empresários, em específico.   

Foi na base da especulação que se construiu a mentira de que o legista Carlos Delmonte teria sido assassinado por causa de declarações contraditórias sobre suposta tortura de Celso Daniel na madrugada de 20 de janeiro.   

Fez-se estardalhaço na mídia, seguido de pouco espaço em seguida: Carlos Delmonte morreu de morte provocada por ele mesmo. Tanto que deixou carta de despedida à mulher, que o abandonara. O Estadão reproduziu o manuscrito desesperador de Delmonte. A Polícia Civil do governo do Estado apurou o caso sem deixar margem a dúvidas. Delmonte tomou três medicamentos contraproducentes ao cometer suicídio.   

PASSADO SEM RUSGAS   

Quem procurar na Internet possivelmente só encontrará a informação correta no site de CapitalSocial. Quem perguntar a qualquer consumidor de informação sobre o desfecho do médico legista, receberá como resposta o apontamento de crime de mando. Delmonte foi envenenado, acreditam os negacionistas.   

A máquina que triturou reputações no Caso Celso Daniel possivelmente emperraria nestes tempos de redes sociais. Por mais que a premissa possa parecer contraditória, porque se vivem tempos de exacerbação de fake news, o grau de derretimento da verdade seria menos elevado exatamente porque o contraditório permitiria mais investigação, mais esclarecimentos, mais demolição da casa de mentiras e meias-verdades.   

Afinal, as redes sociais têm o contraponto muitas vezes barulhento demais, mas nem por isso inútil, de nichos, de guetos. Essa cacofonia muitas vezes se torna prova provada de que só existe a comprovação de fake news exatamente porque há sempre o outro lado para intervir.   

A premissa vale também para a Grande Mídia, muito mais apetrechada em tornar a mentira verdade e a verdade meia-verdade. O Caso Celso Daniel é prova disso.   

FALTARAM REDES SOCIAIS        

No Caso Celso Daniel, sem redes sociais, a Grande Mídia estabeleceu, definiu e determinou a regra do jogo ditado pelo MP: Sérgio Gomes da Silva, vítima, virou vilão. Tiraram o crime da bitola criminal e o levaram à bitola político-administrativa.   

A Polícia Civil, que apurou os acontecimentos juntamente com a Polícia Federal, foi silenciada pelo governo do Estado durante quatro anos. Apenas o MP se manifestou. É impensável nestes dias de redes sociais abundantes algo parecido.  

A senadora Mara Gabrilli, à parte outras competências para chegar ao posto federal, nadou de braçadas na campanha eleitoral televisiva de 2018 porque o histórico público do Caso Celso Daniel a favoreceu.  

A percepção social é massacrante: o crime de mando de forças ligadas ao entorno do prefeito, que pretenderia acabar com o sistema de arrecadação paralelo.   

O governador João Doria não só estendeu o tapete vermelho a Mara Gabrilli como a liberou à mensagem-eixo da campanha.   

O petista Celso Daniel elegeu a tucana Mara Gabrilli.  Uma cooperação metafísica cristalizada no rompimento de uma parceria entre agremiações que se permitiam hostilidades táticas, desde que não dilacerassem a estratégia em comum de sustentar os interesses de cada corporação eleitoral. Tudo sob o conceito de democracia com responsabilidade social. 

GRANDE IMPRENSA  

O Caso Celso Daniel na versão mais prevalecente e de credibilidade popular é uma das maiores operações de fake news da história da política nacional. E as redes sociais não existiam, não têm nada a ver com isso. Foi a velha e surrada Grande Imprensa que participou ativamente da narrativa – e também se omitiu em pontos cruciais. Resultado: o domínio público de um enredo falsificado, enganador e ultrajante à cognição humana.  Naturalizou-se a aberração informativa.   

Fosse aquele 2002 o que é 2022, ou mesmo os últimos três, quatro anos, teria desmoronado o castelo de areia especulativo de crime de encomenda cometido pelo PT contra o próprio PT para matar o mais promissor prefeito petista. Dá para acreditar num troço desse?   

Repararam que não cabe em qualquer buraco lógico um trambolho argumentativo em que petistas matam petista escolhido por petistas para comandar uma empreitada e tanto quando o petista Lula da Silva finalmente chegaria ao poder máximo da República?   

INVESTIGAÇÕES POLICIAIS  

A conclusão da Polícia Federal e de três cargas seguidas da Polícia Civil do Estado foi jogada no lixo. Sem massa de contraditório, só poderia dar nisso mesmo – uma fraude de dimensões estratosféricas. O fundamentalismo político é semelhante ao fundamentalismo religioso.    

Uma multiplicidade de ângulos coloca o assassinato de Celso Daniel num redemoinho de contradições e estultices. Tudo convergiu em direção a embaralhamentos de verdades no imaginário popular.   

Tudo porque faltou – e vejam só que contradição ante as convulsivas retaliações destes tempos -- o antídoto de redes sociais. Com redes sociais, a percepção de quase unanimidade burra de morte por encomenda teria sido explodida.  

Talvez seja melhor conviver com a potencialidade de uma enxurrada de fake news que as redes sociais produzem do que com apenas uma versão de fake news da Grande Imprensa, usuária da tradição como fórmula de proteção ao soterramento dos fatos.   

FAKE NEWS PROLIFERAM   

A explosiva e longa jornada de fake news que contou com a incubadora da força-tarefa do Ministério Público Estadual em Santo André foi cristalizada compulsoriamente pela Grande Mídia. Para tanto, também, o governo do Estado impôs silêncio às investigações da Polícia Civil durante quatro anos. A realidade dos fatos foi abafada, ultrajada. Jogou-se um jogo de time único, o time da narrativa escolhida pelo Palácio dos Bandeirantes.   

A força-tarefa do MP foi instalada em Santo André pelo governador Geraldo Alckmin. Era a resposta pragmática no ambiente político e social aos ataques petistas logo após o assassinato. A narrativa do MP registrou recorde de público e bilheteria.  

Tirou-se a bola debaixo da trave para o gol iminente do PT no campo criminal e a deslocou para a área política-administrativa da gestão de Celso Daniel.   

Uniu-se o útil ao agradável: redirecionaram-se os incidentes ao centro do poder gerencial petista em Santo André ao mesmo tempo que se procurou impingir ao partido o peso também emocional do assassinato que comoveu o País. Uma jogada de mestre, com Geraldo Alckmin, governador, no comando do tabuleiro.   

VERSÕES E VERSÕES  

Por isso, neste momento em que águas petistas e águas tucanas convergem publicamente ao mesmo destino eleitoral, com a aproximação de Lula da Silva e Geraldo Alckmin como possíveis companheiros de chapa ao Palácio do Planalto, não há como impedir que o último tijolo de uma construção maquiavélica seja acrescentado.   

É difícil até mesmo hierarquizar em ordem de importância deletéria as bobagens que viraram verdades ou meias-verdades ao longo dos tempos.   

A tucana Mara Gabrilli se elegeu senadora em 2018 na avalanche antipetista liderada no Estado de São Paulo por João Doria. Mara Gabrilli desferiu golpes sequenciais de que o partido tornou a Prefeitura de Santo André laboratório nacional de arrecadação paralela, de propina, experiência preliminar do que virou Mensalão e Petrolão.   

Mara Gabrilli faz crer aos ingênuos que dinheiros paralelos com o objetivo de financiar campanhas eleitorais e mesmo dinheiros paralelos desviados de campanhas eleitorais são uma invenção petista. Faltou pouco para colocar o PT como criador da prostituição, a mais antiga das profissões.   

CONTRADIÇÃO DE MARA  

Admitindo-se ingenuamente que as seguidas declarações têm ampla consistência, a tucana cai numa contradição monumental: se havia mesmo esse laboratório petista em Santo André, como admitir que o prefeito Celso Daniel não o tenha liderado e, portanto, jamais se oporia ao esquema? Não vale a resposta de desvios ao caixa três porque também nesse ponto o MP acabou apontando que Celso Daniel supostamente se beneficiaria de recursos desviados do partido.   

Reiterando e acrescentando a questão em forma de pergunta indigesta: como conjuminar o raciocínio de Mara Gabrilli justamente no momento em que Celso Daniel fora escolhido à coordenação da campanha de Lula da Silva à presidência da República entre outras razões porque supostamente sabia liderar as relações entre os interesses públicos e privados?  

Mara Gabrilli caiu nessa enrascada porque pegou o bonde andando como agente política do PSDB. Não custa lembrar que até a ascensão de João Doria, Mara Gabrilli ou qualquer outro candidato não contava com força suficiente no partido para tornar a cantilena de morte encomendada do prefeito o carro-chefe de campanhas no horário político de rádio e televisão.   

SEGUINDO O MP   

O fato é que Mara Gabrilli seguiu diligentemente a trilha da força-tarefa do MP, destacada pelo governador Geraldo Alckmin logo em seguida ao assassinato de Celso Daniel. Era preciso melar a versão petista de crime comum numa Grande São Paulo empesteada de sequestradores.   

O ônus político-eleitoral naquele 2002 de disputa presidencial e também ao governo do Estado parecia uma batata quente indefensável ao PSDB.   

Provavelmente a maior balela da narrativa de criminalização do PT é o crime de encomenda por razões administrativas.   

Trabalhando-se com a hipótese de que de fato existia esquema de caixa dois e caixa três na Prefeitura de Santo André para financiamento de campanha eleitoral do PT, não teria sentido acreditar que exatamente o coordenador do programa de Lula da Silva iria denunciar irregularidades e, com isso, fomentar o escândalo de proporções inimagináveis que impactaria duramente o partido no momento mais crítico da campanha eleitoral.   

MÃO NA CUMBUCA   

Como ao menos sugerir que Celso Daniel estivesse pronto a colocar os pratos a limpo se, conforme garantiu o Ministério Público, foi colhido em flagrante delito em seu apartamento?   

Uma doméstica que atendia a Celso Daniel disse já em 2005 ao MP que encontrou três sacos plásticos de dinheiro na área de serviço do apartamento da Rua Santo André e no dia seguinte o prefeito dera sumiço ao material.   

Seguindo ainda linha de raciocínio de crime de encomenda, como supor que Celso Daniel divulgaria irregularidades da própria administração que chefiava estando ele cotadíssimo não só para assumir o Ministério do Planejamento de Lula da Silva como, principalmente, para consolidar posição à disputa do governo no Estado, tarefa que, mais tarde, acabou repassada a um improvável governador José Genoíno?  

Mais ainda: como supor que Celso Daniel romperia suposto sistema de financiamento irregular de campanha sem levar em conta que a medida seria explosiva, já que, envolvido nas irregularidades, como afirmou o Ministério Público numa terceira versão, correria o risco de retaliação pública dos supostamente contrariados?   

INCOÊRENCIA TOTAL   

Celso Daniel jamais explodiria o PT num ano de disputa presidencial que se apresentava, finalmente, bastante promissora a Lula da Silva, egresso de três derrotas consecutivas.   

Não se pode desconsiderar sempre que a força-tarefa do MP mudou de diagnóstico na medida em que as investigações policiais contrariavam o roteiro previamente desenhado para combater o ataque petista à deterioração do ambiente criminal na Grande São Paulo.   

Os irmãos de Celso Daniel, principalmente João Francisco, e os promotores criminais construíram versões diferentes entre si. Todas as declarações foram registradas nos jornais que sempre atuaram de forma relatorial na cobertura do caso. As publicações mais tradicionais do País resumiam o trabalho a um noticiário distante, quase frio, embora enviesado à condenação do PT.   

Primeiramente, João Francisco Daniel afirmou que Celso Daniel foi assassinado porque descobriu suposto esquema de propina e se insurgiu contra as irregularidades. Mais tarde, disse que Celso Daniel sabia do esquema, mas se sentia traído porque havia desvios diversos de recursos. Finalmente, disse que Celso Daniel não só sabia como participava do esquema, em nome da causa política.   

DOSSIÊ FAJUTO   

Um suposto dossiê preparado por Celso Daniel seria utilizado para denunciar irregularidades administrativas cometidas pelo supersecretário Klinger Luiz de Souza, pelo amigo Sérgio Gomes da Silva e pelo principal prestador de serviços na área de transporte de Santo André, Ronan Maria Pinto.   

O documento indicado como prova de rompimento entre Celso Daniel e os três acusados pelo Ministério Público em realidade era, então, apenas denúncias já superadas de supostas irregularidades na administração petista.   

Foram acusações montadas por adversários políticos e rejeitadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo antes das eleições de 2000. Um calhamaço que Gilberto Carvalho, então chefe de governo de Celso Daniel, encaminhou ao próprio prefeito. Não faltavam cópias do material entre inimigos políticos do PT em Santo André.   

João Francisco Daniel desapareceu do mapa nos últimos anos. Cedeu espaço a Mara Gabrilli, filha de Luiz Alberto Gabrilli, amigo muito próximo do irmão mais velho de Celso Daniel.   

NADANDO DE BRAÇADAS   

O pai dos Gabrilli navegou em águas plácidas durante as administrações municipais anteriores. Nenhum grupo empresarial conseguia quebrar a oligarquia que definia as regras do jogo. A chegada de Celso Daniel à Prefeitura, em 1997, mudou tudo.   

Na CPI dos Bingos, em 2005, revelou-se um caudal de contradições que colocaram João Francisco em situação constrangedora.   

Em depoimento à Polícia Civil e à Polícia Federal logo após o crime, João Francisco afirmou categoricamente que o ocorrido não tinha qualquer vinculação com a gestão política-administrativa.   

Não demorou, entretanto, para mudar a versão durante a enxurrada de ações do Ministério Público. Passou a ser espécie de porta-voz da família na versão de crime petista. Na CPI dos Bingos, três anos depois, portanto, reiterou que o PT mandou matar o irmão petista com o qual se relacionava de forma precária. Eram irmãos que praticamente mal se falavam.   

TORTURA CRIMINAL   

O laudo pericial do Instituto Médico Legal assinado em janeiro de 2002 por quatro especialistas, entre os quais Carlos Delmonte, morto em setembro de 2005, jamais ganhou destaque na Grande Mídia como contraponto à propagação de que Celso Daniel sofreu tortura durante o sequestro, até ser assassinado.   

É muito pouco provável encontrar na Internet algo no sentido de que é fake news a tipificação de tortura do prefeito. Assinado pela equipe de legistas do IML, o laudo está embasado por anexos. Os estragos no corpo de Celso Daniel decorreram do impacto de oito tiros. Não havia marcas típicas de tortura para se obter suposto dossiê.   

Tecnicamente, qualquer corpo encontrado nos cafundós da periferia com marcas de tiros recebe a definição de tortura. É um clássico da literatura forense. O que os deturpadores dos fatos fizeram foi tornar tortura criminal em tortura política.   

CADÊ A PERÍCIA?   

Em 2004, os irmãos João Francisco e Bruno Daniel alardearam à Imprensa que recorreriam a perícias de especialistas internacionais para confirmar a tortura política de Celso Daniel. Até hoje não há nada que dê respaldo à acusação.   

A disseminação de que teria havido tortura política está vinculada à tentativa de o legista Carlos Delmonte chamar a atenção da mídia para a versão de assassinato político-administrativo, ou seja, de mando e não de ação de bandidos presos logo em seguida.   

Delmonte vivia momentos pessoais delicados. Pretendia reconquistar a mulher que o abandonara e para a qual escreveu do próprio punho uma carta ameaçando atentar contra a própria vida.    

Alguns colegas de trabalho o colocaram em situação de desequilíbrio emocional grave. O Estadão publicou a carta-suicídio do legista.  Não houve repercussão alguma como contraponto à tese de que era mais uma vítima relacionada à conspirativa versão de morte política. Mais uma testemunha executada.   

FALÁCIA DE MORTES   

Uma das mais propagadas ações retaliatórias dos supostos mandantes do crime cometido por ordem de petistas foram mesmo as sete mortes de pessoas que, de alguma forma, tiveram participação no Caso Celso Daniel, inclusive o legista Delmonte.   

Policiais do DHPP, delegacia especializada em homicídios, trataram a vinculação como um desespero de causa de quem não reunia elementos materiais para transformar versões em fatos.   

Até uma promotora criminal que entrou no caso tempos depois do assassinato foi incluída durante algum tempo na lista de vítimas. Ela sofreu um ataque numa das vias mais movimentadas de São Paulo. O veículo foi atingido e capotou três vezes, mas a promotora saiu ilesa. Colocou-se o incidente na conta do Caso Celso Daniel.   

Os reprodutores de textos disponíveis na Internet ainda não atualizaram o estoque de vítimas fatais e não fatais.   

SÉRGIO SUSPEITO?   

É possível que passem de algumas dezenas incidentes e mortes de quem mantinha relacionamento com os petistas da lista de suspeitos de participar do crime. Pelo menos a morte de Sérgio Gomes da Silva, em 2016, vítima de câncer, não foi catalogada como tal. Estupidez tem limites.   

Não é brincadeira de mau gosto imaginar uma manchete de jornal mais ou menos nestes termos: “Mandante de assassinato de Celso Daniel pode ser nova vítima do PT”. Só acha engraçado e inverossímil quem não conhece detalhes da cobertura jornalística paranoica.   

É melhor não desconsiderar completamente essa loucura. O âmago do Caso Celso Daniel carrega uma situação-limite que nega a essência da verdade sufocada e beira à cretinice: Sérgio Gomes da Silva, o Sombra assim rotulado pela força-tarefa do Ministério Público, jamais deixaria a condição de anônimo, de coadjuvante sem pretensões midiáticas, para se colocar propositadamente na cena de um crime que ele mesmo teria engendrado. Tirar Sombra das sombras da Administração da Prefeitura seria uma Operação Tabajara.   

SAINDO DA SOMBRA?   

Sérgio Sombra, como assim o definiu o MP, nem precisaria estar na cena do crime para despertar atenção especial. Seria o primeiro suspeito. O codinome atribuído pelos inimigos do prefeito era a porta aberta a desconfianças. Portanto, ao imputar a Sergio Gomes uma parceria com os marginais, chegou-se a um nível de insensatez que não combinava com a importância relativa do primeiro-amigo do prefeito nos bastidores da Administração Municipal. Eles não voltavam de mais um jantar em São Paulo por acaso.    

A eficiência com que as forças policiais atuaram no Caso Celso Daniel revela que, apesar de o governo de plantão representar o PSDB, houve completa independência de atuação.   

Pressões dos dois grupos políticos que comandaram o País paralelamente durante 15 anos, o PSDB no Estado de São Paulo e o PT no governo federal, tornaram as investigações minuciosas.   

As investigações policiais concluíram que os sequestradores de Celso Daniel, presos em locais e momentos diferentes mais de um mês depois do assassinato, apresentaram depoimentos coerentes com a dinâmica dos fatos.   

TESTE DE CONTRADIÇÕES  

O delegado Armando de Oliveira, do DHPP, afirmou que os sequestradores passaram pelo que chamou de Teste Estimulador de Contradições. Todas as peças dos depoimentos se encaixaram – uma espécie de quebra-cabeça ou pegadinha.   

Entre as situações aplicadas, a Polícia tentou embaralhar os espaços que os sequestradores ocuparam nos dois veículos logo após o sequestro. Ouvidos separadamente, os sete marginais recolocaram-se nos postos realmente descritos.   

A conclusão do delegado Armando Oliveira foi enfática: “Para um grupo cujos membros, exceto Ivan Rodrigues, chefe da quadrilha, estão próximos da condição de limítrofes cognitivos, a coerência dos depoimentos não deixa dúvidas sobre os fatos “– resumiu.  

A Polícia admitiu apenas a possibilidade de o menor de idade apontado como executor de Celso Daniel ter sido utilizado como laranja.   

SUPLICY ESPETACULOSO   

Um momento de frisson na CPI dos Bingos, que tratou em 2005 do Caso Celso Daniel, se deu quando os sete sequestradores foram ouvidos em duas acareações, senador Eduardo Suplicy à frente. Todos negaram conotação político-administrativa. Num desses encontros, no Ministério Público em São Paulo, a acareação envolveu também Sérgio Gomes da Silva.   

Mesmo diante da possibilidade de se beneficiarem com penas menos rigorosas caso apresentassem versão que os excluíssem da condição de sequestradores, os acusados mantiveram depoimentos prestados à Polícia quando presos nos dias subsequentes à ação criminosa.   

A explicação de especialistas criminais é que todo o sistema prisional sabia que as circunstâncias do arrebatamento de Celso Daniel não tinham qualquer vinculação com crime de encomenda.  

Sérgio Gomes foi tratado como inocente pelos demais presidiários durante os quase oito meses em que perdeu a liberdade por conta da denúncia do Ministério Público.    

SILÊNCIO ROMPIDO   

Quatro anos depois do crime, com o advento da CPI dos Bingos, foi possível os quadros policiais do Estado contar com autorização da Secretaria de Segurança Pública para falar do Caso Celso Daniel.   

E o delegado Armando de Oliveira finalmente pode abordar vários pontos. Entre os quais o esclarecimento de que, enquanto Sérgio Gomes procurava colocar o veículo em movimento durante o sequestro, a posição do câmbio automático em neutralidade, após o tiroteio seguido de abalroamento, impedia que o aceleramento fosse correspondido por movimento subsequente. Sérgio Gomes dissera que houve travamento no sistema e, com isso, deu cores ainda mais sombrias às acusações.   

O delegado do DHPP informou também, com base em depoimento do sequestrador Ivan Rodrigues da Silva, que o próprio prefeito Celso Daniel abriu a porta da Pajero ao solicitar calma aos sequestradores que se movimentavam de arma em punho em sua direção.    

Trata-se, portanto, de um chute na canela de distorções que conduziram à informação de que Sérgio Gomes da Silva foi o responsável não só por abrir a porta, mas também por enxotar a pontapés Celso Daniel do veículo.   

FALTAS REDES SOCIAIS   

Nestes tempos de modernidade e engajamento nas redes sociais, o Caso Celso Daniel jamais sofreria tantos impedimentos ao esclarecimento de cada quesito.   

A demanda por transparência da sociedade teria impedido na raiz, ou seja, logo após o assassinato, que, em resposta ao ataque do PT, o contragolpe do PSDB levasse as duas agremiações praticamente a uma guerrilha que encontrou, por fim, o ninho de mútua proteção. 

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