Entenda como e porque Lula e
Alckmin fazem parte do crime (2)
DANIEL LIMA - 11/01/2022
A aproximação entre o candidato Lula da Silva e o ex-governador Geraldo Alckmin de olho nas eleições deste ano não é resultado do pragmatismo eleitoral que possa ser rotulado de surpreendente, embora improvável à maioria. Ingênuo é quem acredita que no passado de conflitos moderados Lula e Alckmin fossem inimigos ferozes. Até o foram, mas por algum tempo apenas, logo após o assassinato de Celso Daniel.
O petista Lula e o tucano Alckmin estiveram mais próximos nos bastidores político-administrativos do que acredita quem observa a política com a candura dos inocentes, como se adversários de ontem não possam ser aliados hoje.
O assassinato do prefeito Celso Daniel em 20 de janeiro de 2002 colocou em polos opostos petistas e tucanos desde que a notícia foi divulgada em edição extra pela TV Globo na noite daquela sexta-feira, 18. O tempo e as conveniências políticas determinaram a aproximação discreta nos bastidores que agora saltam publicamente.
COMANDOS PARALELOS
Manter as portas abertas a recuos e avanços faz parte da política, sobremodo entre aqueles que de alguma forma têm telhado de vidro para cuidar – e na política não há quem não os tenha.
Lula e Alckmin, representantes dos dois partidos que comandaram em paralelo durante pelo menos 15 anos as duas maiores esferas do poder econômico do País, o Brasil propriamente dito e o Estado de São Paulo, construíram relações invisíveis.
Não se pode afirmar categoricamente que embates entre petistas e tucanos ao longo dos tempos, sobremodo pós-assassinato de Celso Daniel, tenham sido o que os mais antigos chamariam de marmelada; ou seja, uma combinação farsesca. Mas não está longe disso. Os pecados mais cabeludos de cada grupo foram mitigados, quando não mitigados mutuamente.
DIVISOR DE ÁGUAS
O Caso Celso Daniel é um divisor de águas políticas na historiografia do PT sob o comando de Lula da Silva e o aglomerado social-democrata de Geraldo Alckmin.
De hostis adversários chegou-se ao entendimento civilizatório de que a arte da política é a negociação e a condução de instâncias administrativas a uma banda suficientemente larga que comporte diálogos tanto quanto alguma fórmula de esquecimento, espécie de Alzheimer consensual.
Foi preciso que se sacrificasse pelo menos uma peça do quebra-cabeça do Caso Celso Daniel para que petistas e tucanos exercitassem permanente jogo de reciprocidades e concessões.
PT PERDEU MAIS
No fim das contas, entretanto, mas sem a letalidade imaginada, quem mais perdeu como símbolo ético e de moralidade foi o PT, primeiro a avançar no enxadrismo ao apontar a arma da responsabilidade do crime que vitimou Celso Daniel em direção ao então governador do Estado, Geraldo Alckmin.
Se escapou dos danos provocados pelo governador do Estado naquela temporada de 2002, quando Lula da Silva foi eleito presidente da República, o PT sofreu duramente as dores do prélio em 2005 com o Mensalão e mais adiante com a Operação Lava Jato, fora da alça de mira dos tucanos.
Na noite de 19 de janeiro, um sábado de Celso Daniel sequestrado, os petistas de alta coturno reunidos no Paço Municipal de Santo André esperavam por notícias das forças policiais. Mas já deliberaram o alvo preferencial: a hemorrágica qualidade de vida na Região Metropolitana de São Paulo no campo da Segurança Pública.
INSANIDADE CRIMINAL
Ações de sequestros seguiam curso de insanidade. Pouco antes de Celso Daniel, precisamente em 11 de dezembro, o sequestrado mais estelar foi o publicitário Washington Olivetto.
Criminalizar o estágio gravíssimo da política de Segurança Pública, herdada dos Direitos Humanos do então governador Mário Covas, foi o passo imediato dos petistas reunidos em Santo André antes mesmo do desfecho do sequestro. O corpo de Celso Daniel foi encontrado na manhã seguinte, de domingo, numa estrada vicinal em Juquitiba, na Grande São Paulo. A ofensiva petista contava com o respaldo da Grande Mídia, havia muito tempo inquieta com os índices de sequestros.
A Grande São Paulo era uma terra sem lei. Sequestros abundavam. O prestígio da cúpula da Segurança Pública do Estado escorria pelos ralos do descrédito. Viviam-se situações de tensão. Até que veio o assassinato de Celso Daniel, ponto de partida do restabelecimento da lei e da ordem não só na Grande São Paulo, mas em todo o Estado. Os índices de criminalidade foram reduzidos drasticamente. Os sequestros desaparecem do mapa das estatísticas.
MUNDO DESABOU
A repercussão internacional do crime foi retumbante. Nas primeiras semanas o estrondo da mídia deveu-se exclusivamente à precariedade do sistema de Segurança Pública do estão brasileiro. O número de sequestros no Estado de São Paulo no primeiro semestre de 2002 quase dobrou em relação ao mesmo período do ano anterior. A tendência de queda é um processo que precisa de maturação, como explicou o diretor do DEIC (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado), Godofredo Bittencourt, à época dos fatos. Ele disse: “A grande explosão do número de sequestros ocorreu no segundo semestre do ano passado” – referindo-se a 2001, antevéspera do assassinato de Celso Daniel. E completou: “A comparação tem de ser feita com os trimestres anteriores, que demonstram a pequena tendência de queda. Houve uma reação da polícia com a criação da divisão antissequestro, no final do ano passado”, ainda se referindo a 2001. “Os resultados são lentos. Leva tempo para montar uma estrutura e treinar homens para combater esse crime” – afirmou o delegado à época, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Os dados de criminalidade no Grande ABC foram estrondosamente aliviados desde a morte de Celso Daniel. Assim como entre os paulistas. O jornal Diário Regional publicou em janeiro do ano passado os dados de homicídios do ano anterior, ou seja, 2020. Foram assassinadas 148 pessoas, contra 158 em 2019. Uma variação para baixo de 6,3%.
FAÇA AS CONTAS
Experimente fazer a consta de quanto houve de redução de assassinatos no Grande ABC (e o Estado seguiu trilha semelhante) a partir da morte do prefeito Celso Daniel. Em 2001 (sempre é bom lembrar como ano anterior ao crime) o Grande ABC registrou 949 casos. No Estado de São Paulo os casos caíram de 12.475 para 3.674 – redução de 70,55% ante 81% na região composta por sete municípios.
Agora faça as contas levando-se em consideração as 148 mortes de 2020, ou mesmo as 158 de 2019, e veja o resultado. Menos 83,35%. O Caso Celso Daniel está na origem de tudo isso, porque a política do Estado de São Paulo na área de Segurança Pública foi profundamente alterada.
O governador Geraldo Alckmin, candidatíssimo à reeleição naquela temporada, estava a nocaute, após tomar posse com a morte de Mário Covas. Aparentemente não havia perspectiva de mudança de rota no desgaste público.
CONTRAGOLPE TUCANO
O resumo da ópera é que o contragolpe da máquina tucana no Palácio dos Bandeirantes foi incisiva: escalou-se uma força-tarefa de três promotores criminais para atuar no caso, à parte das investigações policiais.
E os representantes do MP cumpriram as tratativas com extrema competência midiática, embora com debilidades técnicas inescapáveis: o feitiço do ambiente criminal na Grande São Paulo virou contra o feiticeiro de supostos crimes administrativos na gestão de Celso Daniel, com a consequente imputação do bode expiatório chamado Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, primeiro-amigo de Celso Daniel. O homem que dirigia a Pajero tomada de assalto nos Três Tombos, em São Paulo, por delinquentes fortemente armados.
O governo de Geraldo Alckmin tirou o peso da complacência com que atuava na gestão da Segurança Pública e colocou o assassinato no colo administrativo do PT. O crime teria motivação extra, de encomenda. Celso Daniel teria se rebelado contra um esquema de propina no setor de transporte. Nada mais falso. Misturaram-se situações que jamais se encaixaram nas três investigações da Polícia Civil e também na atuação da Policia Federal.
CAINDO PELAS TABELAS
A primeira conclusão da força-tarefa do MP não resistiu ao tempo. Não demorou para, em seguida, colocarem Celso Daniel na cena do crime administrativo ao se chegar ao veredito de que o prefeito sabia do esquema de arrecadação de fundos, mas se insurgiu contra os desvios a terceiros, ou seja, para fora dos cofres do PT. Mais adiante, Celso Daniel foi colocado de vez entre os prevaricadores: encontraram sacos de dinheiro no apartamento em que morava.
Com impropriedades informativas reverenciadas como verdades absolutas no noticiário de conveniências, o Caso Celso Daniel abriu em seguida gradual processo de conciliação entre tucanos e petistas. Uma obra de arte de diplomacia com ares externos de conflitos sob controle.
Traduzindo: ao longo dos tempos e de forma cada vez mais pronunciada, petistas e tucanos se deram muito bem até que um outsider chamado João Doria ingressou no embaralhamento e quebrou a unidade em torno do acordo de tornar o Caso Celso Daniel compromisso à discrição.
VIRGINDADE ROMPIDA
Ou seja: petistas e tucanos de alta plumagem acordaram informalmente que qualquer que fosse a zona de atrito em busca de votos, a morte do prefeito de Santo André jamais seria transformada em campo de luta.
É claro que até que chegassem ao ponto de entendimento, o desgaste provocado pela politização do Caso Celso Daniel custou mais ao PT do que aos tucanos.
A virgindade petista no campo administrativo naquele 2002 sofreu forte abalo. Nada que se comparasse, entretanto, ao que veio em 2005 com o Mensalão e, em seguida, já com o estouro da Operação Lava Jato, que impactou o coração do PT. Situações sobre as quais o PSDB não teve participação direta.
O acordão pós-Celso Daniel entre as duas agremiações foi mantido durante longos anos. Os escândalos subsequentes fugiram do controle dos dois partidos. Inclusive casos paulistas do Metrô, do Rodoanel e de tantos outros.
Os acontecimentos pós-assassinato de Celso Daniel não impediram a vitória de Lula da Silva como presidente da República em 2002, depois de três frustradas tentativas.
FORA DO HORÁRIO DE TV
Como parte do acordão estabelecido, o Caso Celso Daniel tanto na versão de Segurança Pública como de gestão pública não ganhou uma plataforma decisiva na obtenção de votos: o cabrestão eletrônico da propaganda eleitoral oficial. Tanto quanto nas demais eleições que vieram. Até que – e esse é um ponto extraordinário ao entendimento da situação histórica -- João Doria atropelou o grupo mais conservador do PSDB ao tornar-se prefeito de São Paulo e, em seguida, governador.
Voltando a 2002, Alckmin elegeu-se em São Paulo. O eleitorado do Estado de São Paulo não constava do portfólio de potencialidades para valer do PT. Da mesma forma, a disputa nacional era vista pelos tucanos como improvável à sucessão de um desgastadíssimo Fernando Henrique Cardoso, presidente reeleito em 1998 que também participou dos acertos para deixar o Caso Celso Daniel num ambiente de neutralidade televisiva.
NADA NA INTERNET
Quem tiver alguma dúvida sobre o que poderia ser chamado de esquema de intocabilidade do Caso Celso Daniel pelos tucanos de alto calibre no Estado de São Paulo, e também do então e em seguida ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, vai encontrar uma resposta contundente na Internet: praticamente não há registros.
Ainda outro dia a Folha de S. Paulo publicou matéria de página inteira sobre as relações entre Geraldo Alckmin e Lula da Silva. Não encontraram nada no passado anterior à chegada de João Doria que os colocassem em rota de colisão constrangedora.
Tudo – que é muito pouco, levando-se em conta o protagonismo estadual e nacional das duas agremiações – está concentrado nas eleições de 2018 e nos rescaldos subsequentes, quando o acordão já esgarçara.
PROMOTORES ATACAM
Quem tratou de desgastar o PT ao longo das investigações foram os promotores criminais da força-tarefa do Ministério Público instalada em Santo André. Diferentemente da Operação Lava Jato, o Caso Celso Daniel não se desdobrou de ação conjunta de policiais federais, policiais civis e promotores criminais.
Mais que isso: o antagonismo em relação à atuação do MP era um dos pontos mais visíveis no ambiente investigativo. Havia atmosfera de contestação aos poderes de o MP investigar. Para o governo do Estado o que interessava não era exatamente a cor do gato da legalidade constitucional da atuação do MP, desde que caçasse o rato da vinculação do crime à gestão pública do PT. A resposta à politização petista foi contundente.
Somente incautos que consomem informação sem adestramento da vida prática acreditam que o que existia na Administração de Celso Daniel na área de transporte público e os concessionários afrontava o modus-operandi tradicional.
CRIME COMUM SOTERRADO
Os entreveros entre concessionárias mais arraigadas nas entranhas da Prefeitura e os novos players que contavam com o suporte da Administração Municipal geraram rivalidade natural, comum a todos os endereços em que grupos políticos concorrentes exercem o direito de alterar a relação com fornecedores.
O assassinato de Celso Daniel não teria encontrado espaço a tergiversações motivacionais se a manobra inicial da cúpula petista no Paço Municipal não levasse o governador do Estado e seu staff a preparar uma reviravolta.
A versão de crime comum esmiuçada por forças policiais perdeu a disputa na mídia e na mente da sociedade para crime de mando por razões de gestão administrativa. A contraofensiva do MP pegou o PT no contrapé.
E AGORA, JOSÉ?
Agora que Geraldo Alckmin e Lula da Silva se colocam publicamente tão próximos e tão interessados em trocar alianças eleitorais, é possível que direitistas e os centro-direitistas que sempre brandiram avaliação de que se tratou de crime político possivelmente revejam posicionamento.
No balanço geral do Caso Celso Daniel neste início de terceira década do século, quando se registram 20 anos do assassinato daquele que se tornou o maior prefeito regional do Grande ABC, o que se tem mesmo é um elemento estranho a abrir a caixa de Pandora em forma de silêncio midiático que se viu na campanha eleitoral de 2018: um atravessador chamado Jair Bolsonaro.
Um candidato de direita fora do esquadro de controle de petistas e tucanos que, como a maioria da população, acredita que Celso Daniel foi vítima de crime de encomenda no sentido político-administrativo.
Quanto a isso, não faltam declarações de agentes públicos do espectro de Jair Bolsonaro a configurar o crime num compartimento de terrorismo petista, típico de que os fins justificariam os meios.
Celso Daniel fora abatido, destilam os direitistas mais ortodoxos, porque rebelou-se contra as roubalheiras do PT no laboratório de Santo André, gênese da estrutura delinquencial de Lula da Silva e seus parceiros – afirmam reiteradamente os representantes do conservadorismo nacional.
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