Regionalidade

Quando vamos abrandar o nó
logístico que aperta a região?

  DANIEL LIMA - 12/11/2021

Uma combinação deletéria de adensamento residencial excessivamente descuidado nas áreas nobres e deslocamento maciço à periferia transformou a competitividade do Grande ABC no setor de logística um tiro no pé da estupidez juramentada. Por essa e tantas outras é impossível dar um salto em direção à recuperação econômica gradual e duradoura se a região de sete municípios e três milhões de habitantes não cair na real de que precisa cuidar da barafunda em que se meteu.  

A tradução de tudo isso em termos de cotidiano vivido é fácil de explicar: quanto mais se pretende ligar com alguma porção de coerência o tempo e o espaço entre dois ou mais pontos de mobilidade urbana, mais se chega à conclusão de que o Grande ABC conta com as mesmas desvantagens da Capital sem, entretanto, usufruir das vantagens comparativas da Capital.  

Estava interessado e disposto a escrever mais uma vez sobre a incompatibilidade entre economia e qualidade de vida caso se prolongue a farra intensa e intocável do mercado imobiliário e o empobrecimento continuado do Grande ABC. Se estava antes, estou mais interessado agora. 

Antiprodutividade  

Primeiro, porque deve vir por ai uma organização que pretende botar ordem no galinheiro de prioridades técnico-estratégicas do Grande ABC. Uma organização com um determinado número de participantes que fechariam olhos, ouvidos e boca a tudo que existe de problemático no ramo de miudezas e focaria o futuro apenas e exclusivamente no atacado de mudanças.   

Segundo, porque leio no Diário do Grande ABC e em seguida me lanço à leitura preliminar de um estudo da USCS (Universidade Municipal de São Caetano), que trata de Cidades Inteligentes. Está ali (estou nos primeiros parágrafos e vou aprofundar a leitura no fim de semana) o que chamaria de Cidades Antiprodutivas, no caso os municípios da região no capitulo referente à logística.  

A razão disso é que num dos rankings da Urban Systems, consultoria que trata do assunto, não temos uma representação municipal sequer entre as 100 primeiras colocadas quando se trata de Mobilidade e Acessibilidade, que traduzo como Logística.  

Preocupação histórica  

Vou deixar para outra oportunidade as observações que pretendo fazer sobre o estudo da Urban Systems, de cuja metodologia, por já conhecer de outros carnavais informativos e analíticos, nem sempre concordo. Mas isso não interessa agora.  

O que me mobiliza a este texto não é novidade alguma para quem acompanha CapitalSocial e a antecessora LivreMercado, revista de papel que circulou por duas décadas na região. Tanto que o verbete “logística”, que é o que interessa hoje, consta de mais de 600 textos.  

É verdade que boa parte, mas não todas as partes, refere-se a uma abrangência elástica da palavra, muitas das quais metafóricas, mas o assunto foi até Reportagem de Capa de LivreMercado no fim dos anos 1990. Ou seja: logística é coisa nossa. 

Se antes do que o destino me aprontou já sentia o quanto a logística, a mobilidade urbana, era deficiente no Grande ABC, instalando-a como uma das barreiras mais desafiadoras a novos tempos econômicos, agora que sinto como carona de motorista o peso de desdobramentos físicos do ocorrido em primeiro de fevereiro, fiquei muito mais sensível aos desarranjos.  

Embaralhamento geral 

Cada vez há menos espaço físico ao tráfego de veículos porque cada vez mais há mais veículos a trafegar e também muito mais torres de apartamentos em eixos viários concorridos. A deterioração é ampla e irrestrita. Naturalizam-se as improdutividades.   

Se o leitor usar esse argumento junto a determinados empresários imobiliários pouco interessados em verdades sustentáveis, provavelmente terão como resposta o argumento falacioso de que verticalização é um contragolpe mortal no espraiamento residencial dispendioso em direção à periferia. Desperdícios de investimentos públicos seriam evitados. 

Não faltam oportunistas que também são propagandistas de empreendimentos imobiliários pragmáticos demais para quem quer qualidade de vida. Eles dirão que outros mundos, do Primeiro Mundo, como Paris, Nova York e tantos lugares comportam densidades maiores. São falácias. 

Transporte pesa  

Esquecem, esses manipuladores, que todas as grandes metrópoles mencionadas são fartamente servidas por transporte público, sobretudo ramais de metrô, que não são monotrilhos.  

Enquanto isso, o Grande ABC não conta nem com uma coisa nem com outra, se bem que uma coisa (monotrilho) é muito mais problemático do que se imagina e, mais ainda, não entusiasma o mercado imobiliário na proporção da serpentina de comboios do primo rico metrô sob a terra. Verticalização desvairada sem metrô é um tiro no escuro.   

Verticalização ensandecida com outro tipo de modal abundante é apenas um paliativo. Em São Paulo, conforme se constata após mudanças urbanísticas aprovadas durante a gestão do então prefeito Fernando Haddad, configurou-se o que os especialistas chamam de gentrificação dos espaços projetados para ocupação mais democrática.  

Ricos e classes médias tomaram conta da quase totalidade dos novos paliteiros residenciais. E se beneficiam da infraestrutura de transporte público. Notadamente do circuito de metrô. Não parece que as críticas sejam infundadas, mas nada significa que se deva aniquilar qualquer tentativa de verticalizar. Há mecanismos e condições conciliadoras tanto quanto efetivas à queda da periferização.  

Há profusão de subtemas relacionados à mobilidade urbana que interessam diretamente à população do Grande ABC não apenas como vereda de qualidade de vida mas também e sobretudo como ferramenta de competitividade econômica. Sem que se coloque o assunto na pauta de prioridades de uma agenda regional reformista por natureza e necessidade, todo o resto estará comprometido.  

Aliás, foi por conta de conhecer a realidade embaralhada de logística interna regional, que, muito antes da obra ser inaugurada com atraso de mais de uma década, colocamos não só em dúvida, mas sobretudo fora do eixo de resoluções, o trecho sul do Rodoanel.  

Comendo poeira  

Já comprovamos com estudos e dados estatísticos irrebatíveis o quanto perdemos de competitividade econômica após a chegada do Rodoanel.  

Comemos poeira da Grande Osasco não só porque o trecho oeste, que serve àquela região, chegou primeiro, mas também porque o trecho sul, que seria a nossa salvação da lavoura, tratou de acelerar a desindustrialização rumo àquele espaço.  

Tudo porque o Rodoanel Sul se tornou uma serpentina de fuga de empreendimentos locais, entre outros motivos porque a logística interna escancarou de vez o quanto perdemos de empuxo de competitividade perante geoeconomias próximas.  

Baixa interatividade  

Além disso, só contamos com três entroncamentos de integração ao tecido interno regional, enquanto na Grande Osasco são mais de uma dezena e com características muito mais intimistas com o setor produtivo.  

Nesse risca-faca para saber quem ganharia investimento com o traçado do Rodoanel, que ainda não está completo, saímos lascados e ferrados. 

Apenas São Bernardo parece dar sinais de certa recuperação agora com obras de infraestrutura física que tornam o acesso ao Rodoanel menos desafiador. Além, claro, de contar com a Anchieta e a Imigrantes. Tudo isso ameniza o Custo ABC, notadamente o Custo Sindical, maior na Capital Econômica da região.  

Passado e futuro  

Para completar, vou reproduzir alguns trechos da análise que o jornalista André Marcel de Lima fez para a edição de junho de 2004 (portanto, há 17 anos) da revista LivreMercado, que trata especificamente dos efeitos iniciais do Rodoanel, tema então sob intenso triunfalismo regional. Sob o título “Logística não faz milagre”, André Marcel de Lima revela o estágio em que vivíamos tanto na área editorial quanto na temática metropolitana. Quem faz história repete a história para mudar a história: 

 O primeiro evento do Ciclo de Debates Metropolitanos foi um estouro de bilheteria: mais de 500 convidados lotaram o Teatro Municipal de Osasco para acompanhar exposição sobre a importância do fator logístico para o desempenho econômico de cidades e regiões metropolitanas, realizada pela Editora Livre Mercado com apoio da Editora Capital Social e do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos). Não é a toa que a cidade de 652 mil habitantes foi selecionada para sediar o debate sobre essa condição de competitividade inter-regional que pode ser descrita como a melhor distância entre dois pontos. Cortada pela Rodovia Anhanguera ao norte, pela Raposo Tavares ao sul e pela Castelo Branco ao meio, além de beneficiada pelo traçado oeste do Rodoanel, Osasco oferece acessibilidade para investidor nenhum botar defeito. Está incrustada na face oeste do maior mercado de consumo do Brasil — a Grande São Paulo — ao mesmo tempo em que mantém proximidade estratégica com o próspero Interior paulista. Essa posição geoeconômica privilegiada atrai indústrias, magnetiza grandes centros de distribuição e se consolida como motor de arranque para a performance econômica que transforma Osasco em feliz exceção à regra de deterioração econômica na Grande São Paulo.  

Mais LivreMercado 

 A cidade é a única tradicionalmente industrial da metrópole paulista que contabilizou aumento real de Valor Adicionado entre dezembro de 1995 e dezembro de 2002, conforme levantamento realizado pelo IEME. A taxa atingiu 8,9%, enquanto o Grande ABC perdeu 31% de VA e a Região Metropolitana amargou recuo de 10,2%. A principal conclusão do encontro cai como luva para o Grande ABC e outras regiões tentadas a acreditar que a chegada do Rodoanel implica automaticamente no milagre da multiplicação de indústrias, empregos e impostos: o Rodoanel deve ser encarado como tremendo componente facilitador, mas que por si só está longe de representar o antídoto para todos os males. É preciso combinar esse benefício viário com políticas públicas estimuladoras de investimentos sob pena de a região não reter novas empresas e tornar-se apenas mais uma rota de passagem. “Se não houver poder público engajado ou empenhado para aproveitar a oportunidade que se apresenta, o crescimento pode ficar comprometido. Em vez de se colher todo o potencial proporcionado pela nova condição de acessibilidade, a oportunidade se esteriliza. A logística é como uma caneta que pode ser muito bem aproveitada por um escritor hábil ou inútil nas mãos de quem não sabe escrever” — observou Paulo Tromboni de Souza, secretário-adjunto dos Transportes do Estado de São Paulo, questionado pelo mediador da mesa, o jornalista Daniel Lima, inquieto com o tratamento salvacionista do Rodoanel Sul pelas autoridades públicas do Grande ABC. 

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