Administração Pública

Três dimensões do teto
de gastos. Faça sua escolha

  DANIEL LIMA - 25/10/2021

Reunimos num debate virtual três colunistas da Folha de S. Paulo. Eles escreveram na semana passada sobre o Teto de Gastos. Selecionamos os textos porque os trabalhos se completam em três dimensões: técnico-política, espectro ideológico liberal e espectro político social-democrata. Ou seja: disponibilizamos insumos suficientes para que os leitores tenham a opção de ingressar em três diferentes espaços de informações de um mesmo assunto. Fugimos, com isso, de extremismos à direita e à esquerda. 

Aliás, extremismos de sinais invertidos entre dois dos três debatedores selecionados. O social-democrata, ou petista, ou socialista, ou qualquer marca que lhe seja colocada, defende a Administração Jair Bolsonaro. E um centro-direitista, um liberal, perfila-se contrário ao governo federal. O terceiro observa o cenário levando em conta a atmosfera político-legislativa com repercussões econômicas. 

Veja quem são os debatedores: 

1. Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Office (JBFO). É doutor em economia pela USP. 

2. Nelson Barbosa, professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research. 

3. Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, é autor de “Por que é difícil fazer reformas no Brasil?”.  

O textos de Samuel Pessôa foi publicado na Folha de S. Paulo de 24 de outubro. Um dia depois do texto de Marcos Mendes. Nelson Barbosa escreveu no dia 22.    

 Samuel Pessoa 

A rotatividade da Câmara Federal é muito elevada. Em torno de 40% dos deputados que tentam a reeleição são derrotados. Assim, a primeira preocupação de qualquer deputado é construir seu caminho de recondução à Câmara. O futuro do país vem em seguida. E não devemos criticar os deputados por este comportamento. Simplesmente aqueles que não agem dessa forma já deixaram de ser políticos. Em geral, um deputado da oposição arma sua estratégia de reeleição batendo bumbo, fiscalizando e criticando o governo. O deputado da situação, por sua vez, precisa atrelar-se ao governo e daí abrir caminho para sua manutenção na política.  

 Nelson Barbosa  

Voltamos ao surrealismo orçamentário, o período em que fiscalistas de planilha defendem a manutenção do atual teto de gastos, aquele limite oportunista criado pelo time Temer para seus sucessores, que na prática caiu em 2019, mas que ainda serve de pretexto para absurdos econômicos. Começando pelo principal, está claro que o auxílio emergencial (AE) tem que ser prorrogado, como vários economistas defendiam desde sua primeira adoção, em meados de 2020. A pobreza subiu, a economia corre risco de recessão e não há grande melhora no horizonte, antes de 2023. Nesta situação é preciso proteger a parcela mais vulnerável da população, expandindo o valor e período do AE até o final de 2022, com possível continuação em 2023, mediante aprovação do Congresso.  

 Marcos Mendes  

Com improvisos e desencontros, Legislativo e Executivo implodiram o teto de gastos para viabilizar a ampliação malfeita do Bolsa Família, as emendas parlamentares, o fundo de financiamento de campanha e vários gastos que de interesse eleitoral. Até a trapalhada dessa semana ainda havia quem considerasse excessiva a preocupação com descontrole fiscal. Afinal, os indicadores para 2021 e 2022 mostram uma dívida pública estável e abaixo do que se previa ano passado, a receita está crescendo com força, a despesa como proporção do PIB deve fechar 2021 abaixo do nível de 2019 e as previsões de déficit primário em 2021 caíram de 3% do PIB, no começo do ano, para perto de 1%. Porém, o que está em jogo não são os indicadores fiscais de 2021 e 2022, e sim a existência de uma regra fiscal crível, que ancore as expectativas vários anos à frente. A aprovação de casuísmos para flexibilizar o teto de despesas deixará claro que ele perdeu a eficácia: qualquer nova pressão por mais gastos vai levar a novas flexibilizações. 

 Samuel Pessoa   

No presidencialismo multipartidário brasileiro, esse espaço é construído pelo Executivo, que no Brasil é extremamente forte em comparação com outros regimes presidencialistas, compartilhando o governo com as bancadas da base de sustentação. Bolsonaro chamou a gestão de nosso presidencialismo de coalizão de velha política e deixou, portanto, os deputados soltos. Não exerceu a liderança, aumentando assim os custos de coordenação e estimulando a formação de maiorias cíclicas e inconsistentes. Outro fator que influencia o comportamento do Legislativo é o intervalo que o separa das eleições. Se esse espaço de tempo é grande, há mais chances de o parlamento se comportar de forma centralizada, respeitando o interesse coletivo. Conforme o período eleitoral se aproxima, entretanto, os interesses coletivos deixam de prevalecer nas escolhas do Congresso, frente aos interesses locais que fortalecem as suas carreiras políticas. O Executivo passa então a ter ainda mais responsabilidade com políticas de perfil nacional.  

 Nelson Barbosa 

Há um ano, a oposição ao governo fez exatamente a proposta acima (PEC 36/2020 do Senado), mas nossa equipe de ideologia econômica ignorou o óbvio: que os efeitos econômicos da Covid durariam mais de um ano. Agora correm atrás do prejuízo para evitar o aprofundamento da crise. Em segundo lugar, também é preciso recuperar o investimento público. Os números do primeiro semestre acabaram de sair e indicam, mais uma vez, que o gasto da União não cobre a depreciação da infraestrutura existente. O estoque de capital público está caindo e puxando, com ele, o emprego na construção civil e a produtividade da economia. Qual é a solução? Autorizar que o governo realize investimento extrateto de gasto, em 2022 e 2023, em um valor limitado (sugiro até 1% do PIB, aproximadamente R$ 90 bilhões por ano), com seleção e execução transparente dos projetos, na forma aprovada pelo Congresso. Sabe onde está essa ideia? Sim, na PEC 36/2020 do Senado, que nossa equipe de ideologia econômica ignorou. 

 Marcos Mendes 

Na prática, voltaremos para o regime fiscal que vigorou desde meados dos anos 1980, cuja regra era gastar o máximo que fosse possível e financiar isso com aumento de carga tributária e da dívida pública. Nesse regime, a despesa primária do governo federal quase dobrou como proporção do PIB entre 1991 e 2019, revelando um país viciado em gastos públicos. Inicialmente financiamos o crescimento dos gastos com mais carga tributária, que cresceu 10 pontos percentuais do PIB entre 1991 e 2007. A partir desse ano, contudo, a sociedade passou a rejeitar novos aumentos de impostos: entre 2007 e 2019 a carga tributária caiu 2 pontos percentuais do PIB. Passamos, então, a financiar o crescimento dos gastos com a ampliação da dívida pública. Entre 2014 e 2016, a dívida cresceu 15 pontos percentuais do PIB, sem que tenha havido pandemia, guerra ou grande choque externo. O teto foi bem-sucedido em frear a trajetória de expansão da despesa e da dívida. Agora, voltamos ao antigo regime fiscal, porém sem termos espaço para aumentar impostos e com a dívida em 82% do PIB. Entramos no reino do desconhecido: como voltar ao regime de expansão real da despesa de 6% ao ano sem ter espaço para financiá-la?  

 Samuel Pessoa

A tramitação do Projeto de Lei Orçamentária para 2022 (PLOA22), do qual a PEC (proposta de emenda à Constituição) que trata dos precatórios, e que movimentou muito o mercado na semana que passou, é uma pré-condição essencial, reflete esta dinâmica da política. Trata-se de um jogo entre o mercado, o Legislativo e o Executivo: o mercado deseja estabilidade macroeconômica, o Legislativo deseja gastar com sua base, e o Executivo deseja gastar com o eleitor médio –que, no Brasil, em função da elevada desigualdade, é pobre–, mas também deseja inflação contida e diminuição de desemprego, aliadas a políticas de inclusão social. É da natureza do jogo que haja forte estresse do mercado, como ocorreu na semana passada. A preocupação do mercado com a desorganização da macroeconomia –estagflação com juros elevados– eleva a percepção de risco e produz desvalorização do câmbio. Esse movimento, por sua vez, coloca um freio ao ímpeto gastador do Executivo e do Legislativo.  

 Nelson Barbosa 

Baseado no exemplo do que estão fazendo nos EUA, Europa, China e outros países, o investimento extrateto de até 1% do PIB por ano deve ir para um conceito ampliado de infraestrutura. Projetos tradicionais de infraestrutura econômica, sobretudo de desenvolvimento urbano, para gerar empregos nas cidades, junto com projetos de infraestrutura social (educação, saúde e segurança pública) e tecnológica (pesquisa, desenvolvimento e inovação). Temos que mudar o foco. Em vez de cortar investimento na geração futura, temos que investir na geração futura, mesmo que seja com emissão de dívida no curto prazo. A experiência das medidas anticrise de 2020 provou, mais uma vez, que um impulso fiscal bem focado pode atenuar a recessão e acelerar a recuperação, gerando renda e tributos que pagam parte da emissão inicial de dívida. A parte que não for coberta pelo crescimento da economia pode e deve ser financiada por aumento da tributação sobre os mais ricos, de modo gradual, para que todos tenham tempo para se adaptar à nova estrutura tributária. Canetadas para aumentar subitamente a arrecadação são um erro. Uma reforma tributária progressiva e gradual é o caminho possível e inevitável. 

 Marcos Mendes  

A literatura é clara sobre os efeitos desse tipo de regime fiscal: inflação e juros altos, permanente ameaça de choque tributário e crise da dívida. Os investimentos caem e o crescimento econômico não acontece. O mercado antecipa o desastre. As razões para nosso vício em gasto público são várias: desigualdade de renda e regional, persistência de políticas públicas ineficientes à força do lobby de seus beneficiários. Resolver isso é trabalho para décadas. Ademais, nossas regras eleitorais produzem fragmentação partidária no Congresso, e favorecem a eleição de parlamentares ligados a grupos de interesses ("bancadas temáticas"). Torna-se difícil formar uma coalizão majoritária que dê governabilidade ao Executivo, pois isso exige a coordenação de uma dezena de partidos e o atendimento das demandas por benefícios a grupos específicos, que pouco se preocupam com o interesse coletivo, como a estabilidade fiscal. 

 Samuel Pessoa

Aparentemente, o equilíbrio desse jogo será com um gasto extrateto de R$ 100 bilhões. O espaço foi aberto com a retirada de R$ 50 bilhões de dívidas judiciais do teto –elas serão pagas extrateto se houver uma negociação entre as partes nos termos estabelecidos na PEC dos precatórios–, e com a elevação do teto dos gastos em R$ 50 bilhões, por meio da alteração, de forma retroativa, da data do indexador: em vez de julho a junho do ano anterior, de janeiro a dezembro do ano anterior. Os recursos serão gastos da seguinte forma: R$ 26 bilhões de atualização monetária do salário-mínimo, pois a inflação prevista no PLOA22 é de 6,5%; R$ 47 bilhões em excesso aos R$ 35 bilhões, que já estão no Orçamento, para pagar o novo Bolsa Família; R$ 17 bilhões em emendas do relator da Comissão Mista de Orçamento; e R$ 17 bilhões distribuídos em recursos adicionais ao fundo eleitoral (R$ 2 bilhões), vale-gás (R$ 7 bilhões) e manutenção da desoneração da folha de salários (R$ 8 bilhões). A dúvida é se a conta da reeleição da Câmara e de Bolsonaro parará aqui ou se teremos novas rodadas de estresse. A inflação de 2021 caminha para fechar acima de 10%.  

 Nelson Barbosa 

Tudo que escrevi acima é consenso fora do Brasil, até no FMI, mas aqui continuamos presos à hipótese improvável de que aumentar arrocho fiscal faz a economia crescer, aquela irresponsabilidade fiscal e social do time Temer, que atrasou a recuperação do PIB em 2017-19 e agora voltou a prejudicar o Brasil. Como fazer a mudança? Via emenda na PEC dos precatórios que tramita no Congresso, incorporando a PEC 36/2020 do Senado, que também prevê nova regra de gasto de 2023 em diante. Solução existe, mas tem que abandonar o terraplanismo que nos governa desde 12 de maio de 2016.  

 Marcos Mendes 

Há um corredor estreito para sairmos dessa armadilha: apesar da dificuldade, é inevitável formar coalizão majoritária no Congresso. Ela precisa ser gerida por uma coordenação política eficiente, capaz de mediar os interesses de curto prazo dentro dos limites orçamentários e viabilizar as reformas necessárias. Imprescindível que o Executivo proponha uma pauta clara, com propostas de qualidade técnica e não se perca em bravatas e na dispersão interna de interesses. O atual governo escolheu o caminho oposto: instigou o conflito com o Congresso. Quando percebeu que perderia a disputa, em vez de formar e coordenar uma coalizão, sucumbiu ao poder do centrão, que capturou a coordenação política e o controle do orçamento. A isso se soma a incompetência e falta de objetividade das propostas do Executivo. Hoje, Bolsonaro tenta apenas sobreviver, e o centrão cumpre a sua função essencial: acumular dinheiro e votos. 

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