Sociedade

Grande ABC deveria festejar
50 assassinatos no semestre?

  DANIEL LIMA - 26/08/2021

É claro que em sã consciência e obedecendo ao extrato cínico do politicamente correto não se deve festejar uma morte matada sequer, quanto mais 50 no Grande ABC no primeiro semestre deste ano. Não é essa intenção. Até porque (agora vem uma charada), seria desastroso e uma péssima ideia a determinada família se fossem 51 os crimes consumados, não é verdade? Ainda mais um crime covarde. 

Mas a realidade sem censura moral é mesmo digna de comemoração, e de manchetíssima de jornal: quem como o Grande ABC já contou com quase 1.200 assassinatos numa mesma temporada, caso de 1998, a projeção anualizada de 100 vidas perdidas ou um pouco mais é mesmo situação positiva.  

Menos para os familiares envolvidos, claro, cristalino e mais que ressaltado para evitar desdobramentos de oportunistas de sempre, gente que fica de tocaia para metralhar terceiros com os quais têm obsessão.  

Voltando a 1999 

Tenho tido alguns problemas tecnológicos para capturar textos do acervo deste site, mas acabei dando um jeito de recuperar uma entrevista com o comando da Policia Militar do Grande ABC, publicada na edição de maio de 1999 da revista de papel LivreMercado.  

Foi uma senhora entrevista, cuja reprodução pode ser abreviada ao que no jargão jornalístico se chama de “lide”, ou seja, a abertura do texto que procura resumir o que vem logo abaixo. 

Jornalista que não sabe fazer um lide é jornalista fadado ao fracasso. Mas não custa lembrar que o conceito de lide, de abertura, de chamariz textual, mudou com o tempo. Mudou não é o termo certo. Multiplicou-se é melhor.  

A mudança principal é que tanto existe o lide objetivo, resumidor, definidor, como também o lide instigante, prospectivo, que, com arte, procura prorrogar o desfecho da informação central ao mais tarde possível. Isso é comum no jornalismo interpretativo. E há também uma terceira via, em que se conciliam o conservador e o reformador na sedução dos leitores. 

Melhora acentuada  

Os leitores vão ver logo abaixo, na passagem do texto de papel de LivreMercado para esta página digital de CapitalSocial, que o conceito de lide utilizado é o da segunda via, com o esticamento proposital do cerne da questão, o estado numérico da debilidade da Segurança Pública no Grande ABC naquele fim de século passado. 

A melhora acentuada nos indicadores de homicídios (outros foram para a cucuia, como roubo e furtos de veículos, mas não os trataremos agora) se deve ao que já escrevi várias vezes e não custa repetir: a retirada da política do governo tucano do que muitos consideravam excessiva preocupação com Direitos Humanos e a adoção de ações mais pragmáticas. Algo como bandido bom é bandido morto.  

E o marco mais contundente dessa transformação se deu basicamente com dois sequestros separados por pouco tempo, o primeiro do publicitário Washington Olivetto e o segundo, principalmente o segundo, do prefeito Celso Daniel.  

Marco da mudança  

O cadáver de Celso Daniel mal desceu ao túmulo e um novo secretário de Segurança Pública do Estado assumiu a responsabilidade de baixar as estatísticas com ações profiláticas de campo.  

O promotor Saulo de Castro Abreu substituiu o também promotor Marco Vinício Petrelluzzi. Foi uma guinada e tanto. Tamanha que o Estado de São Paulo conta com a mais baixa incidência de homicídio doloso no ranking nacional, com menos de 10 mortos por 100 mil habitantes. Aqueles que ignoram essa métrica provavelmente são os mesmos que desdenham de medida semelhante quando se trata de óbitos da Covid. São negacionistas estatísticos.  

Medidas mais que providenciais foram tomadas desde 2002 e o desabamento dos casos de homicídios é um desafio permanente da área de Segurança Pública. No caso do Grande ABC, houve o que falta em todas as outras atividades – uma ação coordenada regional com diagnóstico, metodologia, tecnologia, estratégia e ações.  

Repasse à economia  

O Grande ABC que desmorona há muito tempo no Desenvolvimento Econômico deveria aprender as lições dos responsáveis pela Segurança Pública. Muitas vidas igualmente seriam salvas da miséria e da pobreza. Não teríamos a soma de São Caetano e de Diadema de deserdados da região.  

Não custa lembrar também que a catástrofe criminal dos anos 1990 no Grande ABC, numa escalada que ultrapassou todos os limites de civilidade, surgiu a reboque da destruição de boa parte do poderio econômico em forma de desindustrialização. Principalmente durante o governo de abertura seletiva e destrambelhada de Fernando Henrique Cardoso e de um sindicalismo corporativista e exclusivista.  

Repasso em seguida o “lide” da entrevista que fiz naquele 1999. Sem deixar de registrar um adendo: a revista LivreMercado, que os desatentos caracterizavam como publicação exclusivamente econômica, era muito, mas muito mais que isso.  

O conceito de comprometimento social vigorava nas frondosas raízes de um jornalismo muito acima do pensamento médio dos formadores de opinião e dos tomadores de decisões. Até hoje, como se sabe.  

Leiam, portanto, os primeiros trechos daquela macroentrevista (que já completou 21 anos) com os comandados da PM no Grande ABC, sob o título “Comandante da PM promete reação”.  

 A promessa é do coronel Roberto Nogueira, comandante do 6º CPA (Comando de Policiamento de Área-6) da Polícia Militar, com atuação nos sete municípios do Grande ABC: a Polícia Civil e a Polícia Militar vão atuar mais próximas entre si e também com a comunidade para combater a criminalidade na região. A declaração do coronel Nogueira foi a mais contundente — e a que oferece melhores perspectivas para a região — durante entrevista especial com a cúpula do policiamento no Grande ABC. Além do coronel Nogueira, participaram os delegados seccionais de Santo André, João Gilberto Pacífico, e de São Bernardo, Pedro José Liberal, responsáveis pela Polícia Civil. Os três chefes da segurança no Grande ABC foram entrevistados separadamente, em dias diversos. A estratégia se revelou frutífera, porque retrata sem retoques as diferentes interpretações que o comando da Polícia oferece sobre determinados temas. O coronel Nogueira e os delegados Liberal e Pacífico, como são chamados pelas respectivas tropas, caminham na mesma direção, entretanto, quando se trata de avaliar o grau de periculosidade dos criminosos que atuam no Grande ABC: eles não ficam a dever nada, absolutamente nada, aos marginais que fazem de São Paulo e do Rio de Janeiro verdadeiros campos de batalha entre si, por disputas de territórios, e contra a população, vítima preferencial de seus ataques. 

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 Combater para valer a criminalidade de modo a rebaixar gradualmente os indicadores que estão transformando o Grande ABC num barril de pólvora é o grande desafio da cúpula da Polícia. O coronel Nogueira afirma que vai buscar parcerias de autoridades públicas e entidades representativas da comunidade e das empresas para promover vigorosa cruzada contra os criminosos. Nesse ponto também eles concordam: só com apoio da comunidade será possível diminuir o aprofundamento da onda de violência no Grande ABC. Uma onda, aliás, que cada vez mais faz a alegria dos surfistas da marginalidade. Entre 1995 e 1998, aumentou em 42% o índice de homicídios no Grande ABC. Isso mesmo: 42%. Em 1995 foram cometidos 788 assassinatos na região. O número aumentou para 904 no ano seguinte, para 1.115 em 1997 e atingiu 1.119 no ano passado. É gente demais assassinada. O rastro da criminalidade segue os passos do poderio e dos reveses econômicos: São Bernardo e Diadema, que representam 60% do PIB (Produto Interno Bruto) regional, acumularam 654 homicídios em 1998 — isto é, 58% dos casos na região.  

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 O desequilíbrio maior tem Diadema como responsável. Os números indicam que praticamente não há rival nacional para os indicadores de homicídios: foram 351 casos em 1998 para uma população de 323 mil habitantes, o que significa, segundo padrões da ONU (Organização das Nações Unidas), 108 assassinatos para cada grupo de 100 mil habitantes. Para se ter ideia sobre o que esse índice representa, é nada menos que 50% superior aos 70 homicídios contabilizados no ano passado em Vitória, no Espírito Santo, a Capital mais violenta do País segundo estudos de secretarias de Segurança e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas). No conjunto dos municípios do Grande ABC, que reúne 2,3 milhões de habitantes, a média de criminalidade para cada grupo de 100 mil habitantes é de 50. A taxa é elevadíssima, porque é o dobro da média nacional. Só dois municípios da região estão abaixo da marca nacional — São Caetano com 10,72 e Ribeirão Pires com 19,48. As demais ultrapassam largamente: Santo André tem 40,48; São Bernardo tem 45,90; Mauá, 47,80 e Rio Grande da Serra, 40,34.  

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 A situação de Diadema é gravíssima porque, com população levemente inferior a Mauá (342 mil habitantes contra 323 mil) e com características socioeconômicas próximas, a diferença da taxa de homicídios é exagerada — mais que o dobro. Se confrontar o número de homicídios de Diadema com São Caetano, o contraste fica ainda mais evidente e preocupante. Embora São Caetano tenha 2,3 vezes menos população que Diadema, a incidência de homicídios é 10 vezes menor. Resumidamente: no ano passado morreram assassinadas em São Caetano 15 pessoas. Bastam 15 dias para que se tenha o mesmo número de homicídios em Diadema.

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