Sociedade

Um observatório ambulante
que trata do antes e do depois

  DANIEL LIMA - 02/08/2021

Estou oficialmente comunicando aos leitores a criação de um observatório de estudos e análises que pode ser interessante a todos, embora a probabilidade de especificamente se adequar a um só dos interessados seja baixíssima. Cada experiência individual quando traumática e divisora de águas é uma circunstância também individual. Mas, paradoxal e indistintamente, pode ser conciliada em aprendizado, em resiliência, em preparação para o imponderável.  

Exatamente após 180 dias festejados ontem e também após traçar algumas linhas informais que enviei a um punhado de pessoas mais próximas, decidi compartilhar o material com algumas adaptações e também avisar que o observatório em questão é ambulante. Sou eu mesmo em forma de autoestudos e autoanálises.  

Vou cometer a loucura de -- quando der na telha -- dizer a todos o que se passa comigo entre o antes e o depois que a vida me reservou. Isso não é uma abertura de particularidades pessoais. É um compromisso profissional supostamente de interesse coletivo. 

Oralidade e escrita  

Sinto que devo dizer o que se passa entre o antes e o depois porque a palavra escrita, todos sabem ou deveriam saber, tem poderes mágicos, terapêuticos, profiláticos e também regeneradores.  

Escrever para quem escreve por profissão é por extensão uma linha de compromisso com a palavra oral. O que se fala se escreve e o que se escreve se fala são uma linha ético-moral nem sempre levada a sério em ambientes onde a esperteza impera. Há quem prefira esses ambientes à autenticidade de um relato individual de profunda conotação coletiva, mesmo que o coletivo seja apenas teórico.  

O observatório a que me submeto e que tem o antes e o depois como limites temporalmente elásticos é uma forma de prestar contas a mim mesmo. De me observar atentamente. De contar a experiência do significado do antes e do depois.  

Cobaia involuntária  

Sou uma cobaia involuntária de mim mesmo. Não posso me enganar, portanto. E muito menos enganar a terceiros.  

Não vejo nenhum problema em expor uma síntese circunstancial do significado de antes e de depois no contexto de extraordinária etapa de minha vida.  

Extraordinária no sentido de que o jornalismo está em mim, vasculhando-me com todo rigor. Jamais conseguiria traduzir os sentimentos e os saberes de um terceiro que houvesse tido a experiência do meu antes e depois. Tenho por obrigação me investigar. E repassar aos eventuais interessados.  

Se me dedico sem hora marcada a tantas coisas que exigem avaliações e interpretações que influem na vida de terceiros, por que, depois do antes e do depois, me pouparia desse experimento fantástico?  Ou não é fantástico um ferramental mesmo que especulativo sobre a vida resiliente e a morte quase matada?  

Sei que sempre corro o risco de alguém, na santa ignorância de uma ilha, considerar uma experiência profissional, qualquer que seja, de quem quer que seja, nada merecedora de virar pauta jornalística.   

Começo do fim  

A diferença que separa o antes e depois pessoal do antes e depois de muitos outros personagens que viraram literatura e outros objetos de estudos, a diferença que separa o antes e depois nesse caso é que meu depois começou com a sobrevivência, enquanto muitos outros depois terminaram com a morte.  

Um texto preparatório à morte anunciada é um texto de tons que não ouso avaliar de forma crítica, mas é um texto de final previsível -- até porque essa é a essência da própria escrita.  

Um texto contemporâneo à vida depois do antes e que se prolongará indefinidamente depois é um texto que guarda similaridade com a abertura de um cofre sem que se tenha a ideia do que há quando a tranca for finalmente superada.  

Entranhamento indissociável  

O antes e o depois estão em escrutínio. Não teria cabimento alguém, metido a analisar tanta coisa no ambiente regional desprezasse a experiência pessoal do antes e do depois. O antes e o depois estão entranhados em mim. Sinto obrigação de compartilhá-los. Sempre na expectativa de que a experiência jamais será utilizada na prática por terceiros.  

Seis meses se passaram e vivo a dualidade do antes e do depois. Quero ser o antes, mas o depois interfere. Quero ser o depois, mas o antes se antepõe. Vivo um depois contraditório.  

Meu sonho é que o depois não passe de um pesadelo temporário, mas o depois catastrófico prevalece e quer botar o antes para correr.  

Meu pesadelo é que o antes não passe de um sonho do passado vivido e morrido que se antepõe ao depois cheio de esperança e expectativas. Vivo um antes contraditório.  

Mas insisto, luto, e vou em frente. Afinal, o antes é a base de tudo. E esse é o problema, porque o depois rejeita o antes. E o antes rejeita o depois. É uma disputa intestina. E indigesta.  

Produto híbrido  

A maioria de meus interlocutores, familiares, amigos e leitores, possivelmente não perceba que o antes e o depois me atormentam diariamente.  

Muitos me seguem tratando como se não houvesse o antes. Outros me enxergam apenas como o depois. E há também quem misture o antes e o depois de forma aleatória e provavelmente imprecisa. Sim, imprecisa, porque como acertariam se nem eu, que sou o antes e o depois, desconheço para onde as águas da subjetividade me levam?  

Não estou na cabeça de ninguém, mas acho que muitos que se relacionam comigo me veem, portanto, como um produto híbrido, do antes e do depois. E não sabem o que fazer comigo. Nada extraordinário. Também não sei, repito, o que fazer comigo entre o antes e o depois.  

Não será agora que vou tentar explicar o que tento fazer para exorcizar o depois de minha vida. Até porque não sei exatamente se o que deve ser exorcizado é o depois ou o antes. Há uma luta insana entre o antes e o depois para ver quem prevalece. Tenho dentro de mim, como se observa, um sentimento conflituoso.  

Entre dois mundos  

Se me perguntarem se prefiro o antes ou o depois, juro que não saberia responder. Há em mim uma autoestima muito forte pelo antes e também pelo depois. Mas também veredas de rejeição ao antes e ao depois, separadamente ou não.  

Não queiram saber o que se passa comigo nestes tempos de antes e de depois além do que exponho nessa madrugada de domingo insone. O sono que escapa do depois era um sono mais tranquilo durante o antes. Mas as reflexões que brotam do depois são mais profundas que as reflexões com a assinatura sem traumas do antes.  

Um dia desses talvez escreva mais sobre o antes e o depois do tiro de primeiro de fevereiro. Hoje só quis mesmo reproduzir o que se passa comigo nestes tempos de transformações.  

Não se culpem eventualmente por me tratarem pessoalmente ou em imaginação apenas pelo ontem ou apenas pelo depois. Não pensem que isso é discriminação ou proteção. Não se cobrem pela divisão que me é imposta. Como você pode se dar conta de que está falando com o antes ou com o depois se nem eu posso garantir a mim mesmo que seja um divisor de águas temporais esse antes e esse depois?  

Meu antes e meu depois são peças da mesma engrenagem humana, submetida a uma intercorrência do destino. Vou conviver provavelmente para sempre com isso.  

Esses irmãos siameses da mesma engrenagem cognitiva sussurram aos meus ouvidos que querem os espaços a que fazem jus. O antes avança sobre o depois que reage. Essas duas avalanches me atormentam, mas também me embalam. Vamos em frente. Com o antes e o depois no cangote de cobranças e na alma de esperança.

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