Sociedade

Por que a Casas Bahia está
deixando São Caetano? (4)

  DANIEL LIMA - 21/07/2021

Duramente impactada por duas enfermidades sociológicas espalhadas pelos demais municípios do Grande ABC – o Complexo de Gata Borralheira e a Síndrome de Avestruz – a São Caetano que acaba de perder o símbolo do sucesso empresarial familiar chamado Casas Bahia também é um condomínio de luxo cada vez mais problemático. Há cada vez menos moradores ricos, em oposição aos custos tributários cada vez mais salgados.  

O que São Caetano está vivendo desde longo tempo e sempre em processo insidioso é uma tempestade perfeita concentrada numa síntese classicamente reservada a comunidades opostas, de frágil estrutura social e econômica –-- o estágio de cidade-dormitório no sentido mais incômodo da expressão.  

Forçando um pouco a figura de linguagem, São Caetano está configurada nas relações sociais mais comprometidas com o futuro em formato de um condomínio de luxo cada vez mais voltado a absorver finanças dos moradores e menos intenso em capital social.  

Distritos de grande volume populacional e periféricos de uma Capital como São Paulo ganham a imagem de condomínios populares também enfraquecidos em representatividade nas relações sociais.  

Explicando conceitos  

Os males mais comprometedores de São Caetano, ainda males menos graves nas demais localidades do Grande ABC, estão portanto no campo sociológico.  

Complexo de Gata Borralheira é resumidamente a contradição de olhar para a vizinha e pujante Capital com admiração e escravagismo cultural e reagir internamente com rompantes de grandiloquência e arroubos que a psiquiatria coletiva poderia explicar.  

Síndrome de Avestruz é a prática de exercícios individuais e coletivos que consiste em ter percepções e conhecimentos necessários para enxergar os graves problemas econômicos e sociais de uma sociedade. Entretanto, há consciente ou inconsciente fuga.  

São Caetano é, portanto, um decadente condomínio de luxo mantido por uma Administração Pública descuidada ao longo de décadas, mas que insiste em tratar os condôminos com severidade fiscal.  

É muito caro morar em São Caetano. Caro e arriscado. Sem considerar alguns indicadores criminais que a colocam em posições desvantajosas, caso de roubos e furtos de veículos, taxas condominiais em forma de IPTU e outros impostos não asseguram vantagens competitivas em qualidade de vida que tenham a economia privada como dínamo.  

Minoria concentradora  

São Caetano neste início de terceira década de um novo século paga o preço da indiferença pública aos contribuintes como um todo. Cada vez mais há menos mandachuvas, mas com mais poderes, e mais mandachuvinhas subservientes na condução política do Município. O prefeito Tite Campanella está há seis meses no cargo e sente na pele o ônus de uma paralisia longeva.  

Alguns nichos político-familiares tomaram o poder direta e indiretamente há praticamente 30 anos. Além disso, para entornar o caldo de cidadania, cada vez mais peças importantes de uma sociedade são neutralizadas e absorvidas pelo Poder Público Municipal. São Caetano é um condomínio de luxo controlado por uma minoria que se dá bem no presente, enquanto a maioria perde status continuamente.  

A concentração de poder político em torno de poucos grupos e a dispersão quando não o alheamento do conjunto da sociedade formam o caldo de cultura de um organismo sem capacidade de reação. São Caetano é administrada no piloto-automático do autarquismo solitário e congelador de ambições competitivas. Encalacrada geograficamente e manietada em logística, São Caetano é um endereço fora de planos de investimentos produtivos da livre iniciativa. Pior que isso: é prioridade na debandada empresarial.  

Máquina pública  

Assegurar o status dos participantes da máquina pública que alimenta lideranças de diversas instituições é o que existe de perspectiva mais sólida em São Caetano de empregos cada vez mais raros. Ou então, como saída, a busca de mobilidade social na Capital vizinha ou em algum município próximo, na própria região.  

A derrocada econômica torna São Caetano um reduto em que o Estado, em forma de prefeitura, prevalece. Um emprego público de uma prefeitura generosa na média salarial é o ideal a ser alcançado por quem não enxerga fora do território municipal a qualidade de vida desejada. O emperramento logístico é um desafio diário aos trabalhadores de terno e gravata ou de manga de camisa que buscam o sustento.  

Comendo poeira  

Não é heresia alguma (distante disso e muito pelo contrário) colocar São Caetano e Barueri como concorrentes à avaliação de políticas adotadas para dar sustentação econômica.  

Quanto Luiz Tortorello, em meados dos anos 1990, estava à frente da Prefeitura de São Caetano, o sonho dourado era fazer do setor de serviços a salvação da lavoura econômica em substituição à crescente derrocada industrial. Barueri, na Grande São Paulo, era o paradigma. Tortorello abriu as porteiras da guerra fiscal. Seria, supostamente, uma réplica da cidade à Oeste da metrópole. 

Como mostrei em dezembro do ano passado, 25 anos depois daquela projeção Barueri impôs vantagem estratosférica a São Caetano. Qualquer prefeito que dirija São Caetano sem atentar à diferença entre os dois municípios tende ao fracasso. 

Barueri é muito mais que um setor de serviços qualquer como especulam gestores públicos desinformados. Tampouco é apenas um ancoradouro de famílias ricas que vivem em luxuosos condomínios fechados da grife Alphaville. Barueri conta também com uma economia dinâmica e um Poder Público atento à competitividade, sempre que a comparação envolver municípios do Grande ABC. 

Temperatura imobiliária  

A temperatura dos negócios imobiliários é um dos indicadores mais confiáveis do ambiente econômico. Em 2019, a diferença era gritante tendo como base o ITBI e o IPTU: Barueri registrava receitas com o IPTU bem menores em relação ao ITBI – eram 36,76% menores.  

A diferença entre um imposto e outro: ITBI é mesmo a temperatura do setor, enquanto o IPTU incide mais fortemente na gulodice arrecadatória geralmente sem lastro da dinâmica econômica.  

Em São Caetano, de realidade reversa, o imposto sobre propriedade imobiliária superava em 14,66% os negócios com casas apartamentos, terrenos e tudo que não se move.  

Não há como negar desajuste econômico quando uma prefeitura arrecada mais sobre propriedade imobiliária do que sobre negócios imobiliários. Alguma coisa está mesmo fora do lugar.  

Também no ISS, outro imposto de responsabilidade municipal, e que detecta o dinamismo econômico, Barueri supera São Caetano em qualidade. A arrecadação do IPTU em relação ao ISS não passava de 3,18% em 2019. Em São Caetano a incidência chegou a 85,56%.  

Dados de 2017 apontavam que a superioridade sistêmica em competitividade de Barueri sobre São Caetano também se manifestava quando se cruzavam dados do PIB Industrial e o total de trabalhadores em forma de produtividade. A média de produção por trabalhador em Barueri era de R$ 159,67 mil em Barueri, contra R$ 146,739 em São Caetano. 

Quem entendia ou entende que Barueri não passa de um depósito de empresas de serviços patrocinadoras da guerra fiscal que São Caetano tentou mimetizar com Luiz Tortorello engana-se redondamente. Também em 2017 (os dados oficiais ainda não foram atualizados, mas são rigorosamente lentos em grandes mudanças) o PIB Industrial de Barueri era mais de 70% superior ao de São Caetano – R$ 4.212.889 bilhões ante R$ 2.950.110 bilhões). 

Competência administrativa  

Em tantos outros medidores econômicos Barueri ganha de lavada de São Caetano. Esses resultados são emblemáticos e não podem ser desconsiderados. Trata-se de um fracasso ainda pouco conhecido e reconhecido: São Caetano não teve competência administrativa ao longo da última década do século passado e nas duas primeira décadas deste século para alcançar o pote de ouro de substituição da matriz industrial por serviços de qualidade.  

Tanto é verdadeiro que segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, em 2019 (faltam os dados de 2020), São Caetano contava com 56.789 trabalhadores com carteira assinada no setor de serviços, com média salarial de$ 3.198,96. Já Barueri ostentava 168.275 empregados com carteira assinada no setor e média salarial de R$ 4.304,53. Um resultado 34,56% superior. Quando se consideram todos os trabalhadores formais, em todas as atividades, a média salarial em Barueri registrava R$ 4.353,77 ante R$ 3.345,59 de São Caetano.  Diferença de 30,13% favorável a Barueri. 

Inchaço e inapetência  

No campo político-administrativo não se pode dizer que Barueri seja diferente de São Caetano. Também há grupos políticos que se revezam naquele Município. O que coloca os dois municípios em posições antagônicas é que o continuísmo de Barueri é traduzido em crescimento econômico, enquanto em São Caetano o revezamento entre semelhantes que participam da minoria privilegiada do condomínio de luxo esmera-se em ignorar as demandas desenvolvimentistas. É um jogo de soma zero, ou abaixo de zero.  

Não existe saída honrosa, compartilhada e disseminadora de mudanças sociais ascendentes quando a carência de uma reviravolta econômica incentiva o inchaço de máquina pública. Esse é um tipo de desenho lógico que leva às ruinas sociais. Há por isso mesmo menos ricos e classe média em São Caetano em relação ao século passado quando se buscam números relativos. O oásis do Grande ABC está cada vez mais distante da ideia de que deva ser o farol de mudanças que se fazem urgentes. 

A saída ainda indefinida em termos econômico-orçamentários, mas decididamente grave à imagem do Município, coloca a Casas Bahia como um núcleo especial de resoluções que corrijam a rota de quase quatro décadas da viuvez industrial de São Caetano.

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