Gata Borralheira

INVASÃO DO COMÉRCIO

  DANIEL LIMA - 16/04/2002

-- Tem razão Diadema, tem razão. Mas de tudo que foi elencado por vocês para martelar esquecimentos e lembranças, queria saber um pouco mais sobre essa história da chegada dos grandes conglomerados comerciais, que também recepcionei com todo o carinho em minhas terras. Afinal, não se pode criar obstáculos para o crescimento econômico. 

-- Primeiro falo eu, querida São Paulo, porque foi o meu território que mais apanhou com essa invasão aqui no Grande ABC. Como você bem disse e sabe, a chegada de grandes redes varejistas e de hipermercados também em suas terras teve efeitos negativos de concorrência predatória aos pequenos negócios. Mas como você é nobre, tem as mais variadas alternativas econômicas, os impactos sociais foram proporcionalmente menores. Aqui foram diferentes. Muito diferentes. 

-- Permita Santo André que, como conheço também esse enredo, gostaria de acrescentar sucintamente para a querida São Paulo, que acabou de falar, alguns pontos aos seus conhecimentos teóricos e práticos. Aqui no ABC o grande comércio fez um estrago imenso porque, como no seu território, ancorou sem maior preocupação social. Até porque nossos poderes públicos -- por descuido, desinteresse, dificuldade de conectar as legislações municipais e principalmente porque não existe um arcabouço legal em nível federal para disciplinar a questão -- deixaram a coisa rolar ao sabor dos ventos e dos interesses arrecadatórios. Sim, interesses arrecadatórios porque estamos todos caindo pelas tabelas do ICMS. Esse imposto, todos sabem, significa grande parte de nossa capacidade de receita orçamentária. Perdendo uma parcela dessa arrecadação por causa da evasão industrial, temos de lubrificar outras fontes para calibrar a qualidade de vida que, como água de chuva, despenca morro abaixo, ou para diminuir a criminalidade, que avança como fogo morro acima. 

-- Levei um susto, São Bernardo. Esse negócio de água morro abaixo e fogo morro acima tem um outro enredo popular, um trocadilho popular, uma combinação que não ficaria bem ser explicitada para uma dama. Pensei que você iria se referir àquilo?

-- Jamais cometeria essa indelicadeza com tão nobre presença. Se fosse uma reunião entre nós aqui do Grande ABC, teria usado aquela analogia sim, porque a gente está menos distante em relação a você, querida São Paulo, e quebramos uns paus de vez em quando.

-- Esse assunto ainda não terminou, se me permitem falar um pouco. O grande comércio não chegou até mim na mesma proporção de Santo André e São Bernardo, principalmente, porque não tenho muita área disponível e também porque meu povo gosta mesmo é de consumir fora. Preferencialmente em São Paulo. Vejam que mesmo tendo uma das maiores rendas per capita do Brasil, não conto com um único shopping. Nem livraria. 

-- São Caetano esquece que estou entrando nesse roteiro de shopping e que também vou ser atingida pela globalização dos negócios. Só acho engraçado que falam tanto nos descuidos do presidente do nosso País porque abriu as fronteiras aos investidores estrangeiros, porque compraram boa parte de nossas melhores indústrias, e aqui em nosso território permitiram que o grande capital nacional e o intenso capital estrangeiro tomassem conta de nossa garrafa comercial. É a velha história de fazer o que eu digo e não o que eu faço. 

-- Estou com Mauá, de novo. Os pequenos negócios ainda resistem em meu território e também na periferia dos meus vizinhos. Mas com a chegada dos grandes players comerciais, que estão introduzindo lojas de vizinhança de menor porte que contam com toda a infra-estrutura e de marketing das megarredes nacionais e internacionais, dá para começar a sentir o tamanho do problema adicional que teremos todos nós. Essa liberalidade atingiu os Estados Unidos e nos atingirá também. Na Europa, em diversas partes da Europa, é diferente. Há mais cuidados com o equilíbrio social combinado com a importância dos grandes negócios do comércio. 

-- Brilhante minha querida Ribeirão Pires. Só não posso meter muito o bico porque sou pequenininho, estou aqui deslocado geograficamente, como estou cansada de dizer, mas que essas reclamações têm de ser consideradas, até porque é uma realidade nacional, ah!, isso não tenho dúvida. É lógico que os grandes conglomerados comerciais não se interessam pelo meu território porque sou diminuto, tenho apenas 37 mil habitantes e estou cercado pela Mata Atlântica. Em resumo: sou a antítese do mercado que lhes interessa. 

-- Rio Grande da Serra completou quase tudo. Só esqueceu de dizer, querida São Paulo, que todos nós aqui do Grande ABC fomos simplesmente soterrados do ponto de vista socioeconômico pela chegada das grandes corporações comerciais. É verdade que esses investimentos representaram um novo patamar de qualificação de ofertas de produtos, que retirou a concorrência de menor porte da pasmaceira do comodismo. Mas não poderiam ter praticado tamanha sandice no período que mais perdemos empregos formais na indústria, entre 1990 e 2000. 

-- E que tem a ver a perda de emprego industrial com a chegada dos shoppings e hipermercados, querida Diadema?

-- Ora, São Paulo! Preste atenção na equação. Sem novo emprego na maioria dos casos, os desempregados da indústria montaram negócios de subsistência. Farmácias, bares, mercearias, lanchonetes, lojinha de roupas e material de construção, papelaria, cabeleireiros, marceneiros, oficinas mecânicas, coisas assim. Muitos, inclusive, transformaram a garagem da casa em pequeno negócio. Com a chegada das grandes corporações, que ocuparam as áreas nobres tanto do ponto de vista econômico quanto de sistema viário, foi uma catástrofe. Você há de convir, querida São Paulo, que tudo que esteve no raio de atração do marketing dessas grandes lojas acabou entrando em parafuso. Há estudos que provam o quanto essa bomba estraçalhou a vizinhança. Agora, com a chegada dos pequenos negócios das grandes corporações nos bairros, teremos uma segunda artilharia da pesada para aumentar ainda mais o grau de vulnerabilidade dos pequenos empreendimentos, geralmente familiares. 

-- Não estou entendendo, querida Diadema, porque as poucas notícias que me chegam contam que vocês alardeiam pela Imprensa que aumentou o número de lojas e de serviços. Quem lê essas coisas não acredita que vocês estão sendo sufocados.

-- Querida São Paulo, minha vizinha do coração, preste muita atenção. Essas notícias são uma forma que alguns grupos de interessados divulgam para tentar tapar o sol do empobrecimento do Grande ABC com a peneira de estatísticas. Temos pesquisadores na região, da região não porque são importados de você, São Paulo, que não sabem nada de nossa realidade e, para nos agradar, vêm com essas bobagens. Não acredite nisso, querida São Paulo. 

-- Por que não devo acreditar, alguém pode me esclarecer?

-- Diadema já falou bastante, agora é a minha vez. Por acaso, querida São Paulo, você sabe quanto a gente aqui do Grande ABC perdeu de riqueza nos últimos 10 anos?

-- Não sei, não imagino, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Pode falar Santo André, porque é lógico que estou brincando.

-- Pois é São Paulo. Vou dar só um número. Tem uma empresa especializada no chamado Potencial de Consumo, que quem quer fazer investimentos faz questão de contratar para ter segurança de informações. Seu último cálculo chegou à conclusão de que nós, da região, perdemos US$ 2,5 bilhões entre 1991 e 2001. Sabe o que é isso, querida São Paulo? Dá exatamente todo o meu Potencial de Consumo. Traduzindo: o Grande ABC perdeu uma Santo André inteira de riquezas em uma década, segundo dados que utilizam um coquetel de informações socioeconômicas. 

-- Se é para descarregar o caminhão de melancia de perdas, meu vizinho Santo André, não podemos esquecer que perdemos no mesmo período mais de 10% do consumo de energia elétrica industrial, enquanto o Interior do Estado, com máquinas e equipamentos mais atualizados e que, portanto, gastam menos energia, aumentou o consumo. 

-- São Caetano fez bem as contas, mas tem mais coisa ainda, querida São Paulo. Nosso PIB, que é a soma de riquezas que o Brasil produz, caiu quase 30% entre 1970 e 1996. E você acha que poderia ser diferente, se perdi, como já disse, minha participação relativa naquilo que sou mais forte, no caso a indústria automobilística?

-- Desculpe, São Bernardo, mas não posso deixar de lembrar a formosa São Paulo sobre o problema do desemprego. Estava esquecendo de uma coisa importante sobre isso, como bem lembrava o prefeito Celso Daniel em palestras e seminários. Acontece que os desempregados da década passada, penalizados pela evasão industrial e pela modernização gerencial e de processos tecnológicos da atividade automotiva, principalmente, procuraram trocar o uniforme de operários ou de executivos administrativos por empreendedorismo propriamente dito. É claro que não é tão simples assim. É complicado tornar alguém que só repetia tarefas, que recebia ordens, que tinha de seguir decisões nem sempre tomadas no Brasil e sim nos grandes centros de comando do Exterior, é complicado fazer esse desempregado virar empreendedor, ousar sozinho. Ainda mais com o ambiente de competição exacerbada na área comercial e de serviços, setores em que o Grande ABC não tinha tradição alguma de atendimento mais qualificado, principalmente porque a concorrência era menor. Nossa cultura de trabalho era basicamente de fábrica, de produção manufatureira, não comercial.

-- Puxa vida! Santo André deu um complemento didático ao que, sinceramente, chamaria de um despautério em matéria de desequilíbrio social e econômico. Sem contar as implicações culturais que estão embutidas nessa problemática. 

-- Mais uma vez minha querida São Paulo dá mostras de que é sensível. 

-- Calma Diadema, que ainda não terminei. Embora vocês mesmos admitam que meu caso é diferente devido à minha grandiosidade, à minha multifacetada economia, acho que também deva me preocupar muito. Cá entre nós, muito da periferização do meu território vem dos desequilíbrios das políticas públicas macroeconômicas e também microeconômicas. Mas acho que vocês não podem ficar só na choradeira. 

-- Já vem você de novo falar em choradeira, São Paulo. 

-- Não é isso, São Bernardo. É o seguinte: esqueçam por uns tempos que vocês sofrem do Complexo de Gata Borralheira. Sei que desse trauma vocês não se livrarão tão fácil porque a reação precisa ser multidisciplinar, isto é, de agentes diferentes da sociedade, de planejamento estratégico que leve em conta vários fatores e não se resuma simplesmente a um ramal simplificado do que significa marketing. Bem, mas isso é outra história. 

-- O que você quer dizer, São Paulo?

-- É o seguinte Diadema. Quero dizer é que vocês devem se juntar para ações estratégicas temáticas. Priorizar essas medidas e avançar unidos, firmes. O desbalanceamento socioeconômico ditado pelas novas realidades da indústria de transformação, associado à chegada das grandes corporações comerciais e de serviços, precisa de tratamento sério, meticuloso, integrado. Se o mal já está consumado, que tratem de minimizá-lo. Ainda é tempo de construir salvaguardas ao pequeno negócio. Negociem com as grandes corporações comerciais. Para os representantes desses negócios, não é interessante que estejam numa região formada por algumas ilhotas de classe média cercadas por imensos territórios de desempregados, subempregados e pobres por todos os lados, porque no médio e no longo prazo a explosão social exigirá medidas de segurança cada vez mais onerosas. Aliás, isso já está acontecendo. 

-- São Paulo tem razão. Se a gente cair na real e der uma olhadinha no mercado, vai ver que de todos os shoppings que foram construídos na região, temos apenas três -- do modelo clássico de shopping -- que estão vivos de fato. Há alguns shoppings temáticos que se viram para ser competitivos, mas há outros que se foram. Eu mesmo senti na pele o desabar de um shopping de móveis que não durou quase nada. Eu disse shopping de móveis, que é uma das minhas poucas especialidades industriais, porque é uma cultura produtiva que chegou bem antes das montadoras de veículos. O que significa isso? Significa que tenho um poder de atração de consumidores de decoração de quarto, cozinha, banheiro, sala e escritórios com certo poder de sedução, apesar de também ter sofrido muitas perdas nessa área. Se nem assim o shopping temático deu certo, é sinal de que a coisa está preta. 

-- Muito bem, São Bernardo, mas não esqueça que nas minhas terras está chegando um grande shopping convencional que vai revolucionar minha economia. Santo André vai deixar de roubar meus consumidores com a facilidade de antes, pode acreditar. 

-- Não duvido, cara Mauá. Mas será que isso interessa para o conjunto da região, e também para a sua população, que passará a viver os mesmos problemas que estou vivendo, que São Bernardo está vivendo, que Diadema está vivendo, que São Caetano está vivendo; isto é, a concentração cada vez mais forte de faturamento nas caixas registradoras dos grandes estabelecimentos? Será que o equilíbrio do pequeno negócio varejista não vai acusar os golpes?

-- Devo admitir que você tem razão, Santo André. Mas não posso perder a oportunidade de entrar na era dos grandes estabelecimentos. Se não entrar nesse jogo, o Complexo de Gata Borralheira que tenho em relação a você, e que aumenta minha falta de auto-estima naturalmente já atacada pelo Complexo de Gata Borralheira que todos temos quando olhamos a querida São Paulo, ah! Isso tudo vai aumentar ainda mais. 

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