Meias Verdades

Quando ingenuidade e
chutometria dão as mãos

  DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  A revista Veja de 7 de abril de 1999 ofereceu o seguinte título aos leitores: “O incrível aconteceu”. No subtítulo, a frase: “Diante da fuga das fábricas, o ABC abre postos no comércio e nos serviços para substituir as indústrias que sumiram”. Agora acompanhem alguns trechos selecionados da reportagem:

“Está acontecendo algo muito interessante na região do ABC, o principal pólo industrial do País, localizado em São Paulo. As cidades que a compõem estão aparentemente renascendo das cinzas. Nos últimos 10 anos, um êxodo sem precedentes levou embora mais de 1.000 empresas de médio e grande porte e eliminou mais de 200.000 postos de trabalho. Para se ter idéia, o ABC perdeu uma de cada quatro fábricas ali instaladas.

Pelo menos até agora, Santo André, São Bernardo e São Caetano, respectivamente o A, o B e o C, estão superando a crise de maneira notável. Santo André está conseguindo manter os investimentos. Sobraram recursos até para concluir as obras do primeiro parque 24 horas do Brasil. São Bernardo foi uma das recordistas em fábricas perdidas. Ainda assim, a arrecadação da cidade cresceu mais de 25% em números reais nos últimos 10 anos. Apesar do êxodo, São Caetano conseguiu manter o volume de arrecadação de impostos. “Não somos mais a terra de oportunidades, mas também não naufragamos como se previa. Quem sabe podemos ainda surpreender”, diz o prefeito de São Bernardo, Maurício Soares.

Uma das razões que levaram o ABC a resistir à desindustrialização é o aumento da produtividade das empresas.

Outro motivo que merece registro é que, graças aos programas de demissão voluntária e ao pagamento de indenizações por causa do êxodo, surgiu uma infinidade de negócios. Nos últimos 10 anos foram 20.000 novos empreendimentos no setor de serviços, entre franquias, serviços médicos e empresas de informática. O comércio e a prestação de serviços abriram cinco novas portas a cada dia. Há uma terceira razão para o ABC estar enfrentando sua crise com galhardia. Os grandes empreendimentos imobiliários, que antes se concentravam em São Paulo, decidiram apostar no potencial de compra dos habitantes do lugar. A rede de shopping centers aumentou e chegaram os grandes supermercados, que ajudaram um pouco a atenuar o impacto do desemprego”.

A matéria de Veja é uma pérola de ingenuidade, de chutometria numérica e de desconhecimento microrregional e macroeconômico só parcialmente corrigido nos últimos parágrafos que, exatamente por terem sido atenuados na produção editorial, praticamente passam despercebidos.

Quem acompanha com atenção a economia do Grande ABC pelas páginas de LIVRE MERCADO e Capital Social Online sabe o quanto de informação contraditória e vazia aquela reportagem exibe. Por isso mesmo não vamos detalhar ponto por ponto. A falta de conhecimento macroeconômico e microeconômico desconsiderou todas as armadilhas contidas em cada constatação da suposta efervescência do setor de comércio e serviços. Uma das quais, talvez a provedora de todas as demais: quando a massa salarial de riqueza industrial se esvai nas proporções em que se esvaíram no Grande ABC e quando mais empreendedores se lançam na disputa pelo naco comercial e de serviços, mais a competição se torna encarniçada e mais frustrações se avolumam com o fechamento em cadeia de negócios.

A dificuldade do jornalista em lidar com informação econômica e o desejo explícito de vender uma mercadoria chamada Grande ABC sem o menor despudor colocam o material no limbo da marginalidade interpretativa. Esse comportamento é típico da mídia apressada, que tenta por telefone desvendar as nuances econômicas e sociais de uma cidade, de uma região, de um país.

O Grande ABC construído pela Veja de abril de 1999 já não existia naquela data. Hoje, então, nem pensar.

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