Meias Verdades

Grande São Paulo de
números e de fatos

  DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  Trechos de matéria na edição da primeira quinzena de maio de 1998 da revista Exame, sob o título “Cadê a fábrica que estava aqui?”:

Que tipo de cidade o paulistano encontra quando se debruça sobre o parapeito da janela de seu apartamento e lança os olhos para a formidável massa de edificações que se esparrama quilômetros afora, até virar um borrão na linha de horizonte? São Paulo, a locomotiva do Brasil, o berço da industrialização do País, a terra das oportunidades, a cidade generosa que acolheu levas de forasteiros do país e do mundo, chega às portas do século XXI à procura de uma nova identidade. Lá do alto o paulistano enxerga a cidade que, sozinha, responde pelo terceiro maior PIB do País, ou 107 bilhões de dólares em 1996 — só superado pelos da União e do Estado de São Paulo.

Visto de baixo e de perto, no entanto, esse colosso exibe, cada vez mais, realidades que colocam um ponto de interrogação sobre seu futuro. São Paulo, a cidade que não poderia parar, viu boa parte de suas indústrias migrar nas duas últimas décadas rumo a outras áreas mais atraentes do País e do Interior do Estado.

São Paulo e sua região metropolitana foram, pouco a pouco, deixando de fazer sentido para o investimento industrial — historicamente, a alma do desenvolvimento paulistano.

As dores provocadas pela perda de indústrias de São Paulo, com as atuais levas recordes de desempregados nas ruas, são apenas um dos desafios à frente dessa cidade em transição da era industrial para algo que ainda não se sabe o que é.

Pense em Nova York, Londres ou Paris. Não existem em nenhum país desenvolvido cidades do porte da capital paulista que continuem a ser centros preponderantemente industriais. Se perderam a força de suas chaminés, as metrópoles do Primeiro Mundo passaram a ser o que o sociólogo espanhol Manuel Castells chama de “pontos nodais” da economia global. São centros de poder político, sedes de corporações transnacionais e de grandes empresas de comunicações, além de circuitos para a difusão de cultura e de atividades de intermediação financeira, serviços de consultoria, pesquisa, planejamento, marketing, engenharia ou assistência legal nas áreas de importação e exportação, na produção e oferta de bens culturais, na construção civil, nas viagens de negócios, na promoção de feiras, seminários e conferências, no comércio diferenciado, entre um sem-número de atividades que compõem o perfil econômico das metrópoles modernas.

  •  Trechos de reportagem da revista UpDate, da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, de fevereiro de 2000, com o título “Indústria resiste”:

Nenhuma das montadoras de automóveis que chegaram ao Brasil após a abertura do mercado escolheu São Paulo para instalar sua linha de produção. A guerra fiscal tem levado um grande número de novas indústrias para outros Estados. Um complexo conjunto de fatores, do trânsito caótico às exigências dos sindicalistas e às restrições da legislação sobre o meio ambiente, está tirando as fábricas de São Paulo e alterando os princípios de funcionamento do dínamo que, em menos de um século, transformou uma provinciana cidade de 300 mil habitantes no maior parque industrial da América Latina e na quarta maior metrópole do mundo.

Há muito se fala da “desindustrialização” da Grande São Paulo. Na busca de manchetes que impressionem, a acurácia da análise se perde. Os fatos não se enquadram nas teorias construídas a reboque de ações concretas de grupos e indivíduos. A vida é, como se diz, “desobediente”.

A maior confusão se estabelece entre o movimento das indústrias e o dos empregos. A Grande São Paulo ainda concentra 57% das unidades industriais em operação no Estado. E essa participação salta para 85% se forem incluídas as vizinhas regiões de Campinas, São José dos Campos e Santos, distribuídas num raio de até 150 quilômetros. Ninguém renuncia ao maior mercado da América Latina. Quando a unidade fabril sai da região, unidades estratégicas de comando permanecem. É o que revela a Pesquisa de Atividade Econômica Paulista (Paep), o mais amplo e abrangente retrato já feito da economia do maior Estado brasileiro, responsável por 34% do PIB nacional.

  •  Trechos de matéria da Agência Estado publicada no Diário do Grande ABC de 13 de março de 2000 sob o título “SP mantém poderio industrial, diz IBGE”:

A concorrência dos produtos importados e a guerra fiscal deflagrada entre os Estados e que atingiram fortemente a indústria de São Paulo retiraram do maior parque industrial do País empresas mais intensivas em mão-de-obra, mas não aquelas com maior capacidade de criação de riqueza. O resultado é que o pólo paulista, incluindo aquele existente no Grande ABC, sofreu uma forte redução de postos de trabalho, mas do ponto de vista do Valor Adicionado, do volume de receita movimentado com a produção, permaneceu nos níveis da década anterior.

A PIA (Pesquisa Industrial Anual), cuja série foi iniciada agora, com o levantamento de 1996, ainda não é capaz de aferir com clareza o resultado da instalação de indústrias do complexo automobilístico fora do eixo São Paulo-Minas Gerais. Os dados de 1996 foram cruzados com o da pesquisa feita em 1985, que não seguiu exatamente a metodologia adotada agora. A média de participação de São Paulo na produção industrial do País era, em 1996, de 49,5%.

  •  Trecho de matéria da Gazeta Mercantil de 31 de agosto de 2000, “Para Marta, não há fuga de indústrias”:

A capital de São Paulo não está perdendo importância industrial para se tornar uma cidade apenas de serviços, segundo um estudo do Instituto Florestan Fernandes, presidido por Marta Suplicy (PT). “São Paulo irá centralizar a atividade econômica de alta tecnologia nos três setores econômicos”, diz a candidata.

  •  Trechos de matéria de 24 de setembro de 2000 da Folha de S. Paulo, “Exclusão social aumenta na década de 90”:

A exclusão social aumentou na cidade de São Paulo ao longo da década de 90. Dos 96 distritos que compõem a cidade, 53 tiveram uma piora significativa nas condições de vida de seus habitantes, seis ficaram praticamente estáveis e apenas 37 registraram melhoras.

Essa é uma das principais descobertas do Mapa da Exclusão/Inclusão Social 2000, que a Folha publica com exclusividade. Feito originalmente em 1995 pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), ele foi revisado com dados atualizados pela mesma equipe de pesquisadores, acrescida de membros do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e do Polis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais).

O mapa mostra claramente que a maior parte dos distritos que melhoraram ao longo dos últimos anos está concentrada na região Oeste, a mais rica de São Paulo. Ao mesmo tempo, os distritos cujas condições de vida mais se deterioraram estão situados na ponta da periferia.

Para piorar o quadro, a capital paulista continua passando por um processo de centrifugação de seus moradores, com os bairros centrais perdendo população, enquanto todo o crescimento habitacional acontece em distritos das regiões de fronteiras. Em outras palavras, há cada vez menos paulistanos morando nas regiões “incluídas” da cidade, enquanto aumentam os habitantes da zona de exclusão.

  •  Trecho de matéria da Gazeta Mercantil de 15 de setembro de 2001, “Desemprego de SP é estrutural, segundo estudo da Prefeitura”:

O desemprego na cidade de São Paulo se tornou estrutural nos últimos 10 anos, na avaliação do secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, Marcio Pochmann, baseado nas pesquisas do Dieese/Seade. O número de desempregados na cidade passou de 253 mil para 850 mil entre junho de 1989 e de 2001, um aumento na taxa de desemprego de 8,2% para 16%.

Pochmann diz que para reverter esse quadro é necessário que o País tenha um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) por 10 anos de 5,5%. E admite que os projetos sociais da Prefeitura são insuficientes para resolver o problema.

  •  Trecho de matéria da Folha de S. Paulo de 25 de setembro de 2001, “Plano Diretor prevê reindustrialização de SP”:

O Plano Diretor petista para São Paulo apresentará propostas como uma política de reindustrialização dos distritos industriais da cidade e a ampliação do número de bairros Z-1 (onde são permitidas apenas casas residenciais). O pacote do novo Plano Diretor começa a ser desembrulhado no dia 1º, em reunião reservada da prefeita Marta Suplicy com os secretários municipais.

Em entrevista à Folha, o secretário de Planejamento Urbano, Jorge Wilheim, comentou alguns tópicos do novo Plano Diretor. Para ele, por meio de operações urbanas e incentivos fiscais, é possível atrair de volta as indústrias que, nas décadas passadas, deixaram a cidade, esvaziando galpões que até hoje não foram reocupados.

  •  Trecho de matéria da Folha de S. Paulo de 23 de abril de 2002 sob o título “Salário em SP cai 18,8% na década de 90”:

O salário médio real do trabalhador caiu 18,5% na Região Metropolitana de São Paulo na década de 90, segundo o Dieese. Em 1989, os trabalhadores paulistas recebiam em média R$ 1.020. Dez anos depois, o salário médio caiu para R$ 828, segundo valores deflacionados pelo ICV (Índice de Custo de Vida) medido pela entidade.

Não acredite em pesquisas e interpretações triunfalistas que procuram conferir à mudança do perfil econômico da Grande São Paulo, notadamente dos municípios do Grande ABC, da Capital, de Guarulhos e Osasco, ingresso especial ao paraíso. A gradativa e constante substituição de indústrias por atividades de serviços e comércio, em vez de simples troca de roupagem econômica que sustentaria o padrão social, só agrava a permanente depauperação da região geoeconômica mais importante do País. Viver na grande metrópole cercada de satélites tornou-se aventura quando se sabe pela pedagogia da dor que a qualidade de vida se esvai na forma de criminalidade crescente e em desastrosa sintonia com o esvaziamento das riquezas geradas pela indústria.

A Grande São Paulo de 39 municípios ainda responde por 48% da indústria de transformação do Estado de São Paulo e conta com quase metade da população paulista. Essa vitrine de grandeza, porém, esconde fissuras latentes que a grande mídia impressa apenas ciscou: a cada ano que passa a Região Metropolitana de São Paulo perde riqueza econômica e é sobressaltada por problemas sociais. Os bolsões de exuberância cosmopolita que lubrificam a engrenagem da indústria de entretenimento, de gastronomia, de publicidade e moda, de showbusiness e de turismo de negócios são uma maneira que formadores de opinião encontraram para manter azeitada a imagem da Capital. Fora desses guetos, a exclusão social é tão alarmante que programas da mídia eletrônica encontram abundância de matéria-prima em forma de sensacionalismo.

Esse é o preço a ser pago pela incapacidade de o Estado planejar os paradoxais centros urbanos nacionais. A Grande São Paulo é caótica porque o gerenciamento público dos municípios que a compõem é igualmente caótico. E o governo do Estado está muito aquém de perceber que esse território exige políticas públicas específicas e interdependentes que não se limitem a diagnósticos, por mais sofisticados que sejam. Não há organismo debilitado que se recupere somente com a constatação de que há patologias instaladas.

Um coquetel de indicadores econômicos e sociais é suficiente para desmontar surrados e suspeitos argumentos que conferem à Grande São Paulo — notadamente ao Grande ABC e à vizinha Capital — saudável transposição da indústria para o setor terciário. Há contra esses simplistas ramificadas complementaridades entre quatro importantes indicadores da temperatura econômica. O PIB (Produto Interno Bruto), o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), o IPC (Índice de Potencial de Consumo) e o VA (Valor Adicionado) escancaram a cortante realidade prática das ruas: a Grande São Paulo se empobrece em relação ao Estado de São Paulo e também ao restante do País, com consequências sociais conhecidas. Essa é espécie de viagem sem escala. É inquestionável a redução da importância absoluta e relativa do Grande ABC e da Capital.

A alquimia que ilusionistas utilizam para submeter a platéia a deboches estatísticos é a escolha de um indicador econômico ou social seletivamente manipulado no tempo e muitas vezes na metodologia. Pega-se período de baixa de um lado e período de alta de outro, e pronto: sugere-se na Imprensa que determinada situação não passaria de ilusão de ótica. É assim que os malversadores numéricos agem a mando de gerenciadores públicos ou por conta própria da imprevidência. Como o público consumidor de informação é negligente por natureza, e como não existe espécie de Procon de estatísticas para estimular contribuintes a questionar procedimentos pouco éticos, mentiras numéricas ganham ares de verdade. Muitas vezes sobram retaliações aos opositores desse circo de conveniências.

Exatamente por isso o cruzamento de dados do PIB, do Potencial de Consumo, do ICMS e do Valor Adicionado acaba com qualquer manobra escorregadia. É nessa hora de acasalamento dos números regionais, estaduais e nacionais que a onça da verdade bebe a água da responsabilidade. Quanto mais se juntarem esses números, melhor o entendimento de que a Grande São Paulo é um amontoado de problemas que exigem mudanças constitucionais e institucionais. Constitucionais, por exemplo, na seriedade da proposta do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial para incluir os 39 municípios num novo Estado nacional, o Estado da Grande São Paulo, como algumas metrópoles européias e asiáticas já experimentam. Institucional na forma de as prefeituras e o governo do Estado entenderem que a divisão territorial é demarcação cartográfica que não deve inibir integração estratégica.

É possível que mesmo sem o Estado da Grande São Paulo — costura de cunho político complicadíssima — a Região Metropolitana liderada pela Capital mais importante do País encontre saídas. A configuração de espécie de Secretaria de Assuntos Metropolitanos da Grande São Paulo, capaz de decifrar distintas realidades desse território e também de operacionalizar medidas, não deve mais ser encarada apenas como alternativa de reformatação da metrópole. É condição elementar. Para isso, deverá fugir completamente de referenciais de um passado não muito remoto que contemplou o organograma do governo do Estado com a Secretaria de Negócios Metropolitanos e entidades acessórias que muito pouco implementaram de intervenções. Tanto que a Grande São Paulo é um saco de gatos.

O IPC (Índice de Potencial de Consumo) da Target Marketing e Pesquisas é o primeiro indicador que abre as portas para entender o que se passa na Grande São Paulo e a mídia apenas relata, sem interpretar com profundidade. O período da pesquisa dirigida pelo especialista Marcos Pazzini abrange 1991 a 2002. Contempla, como se observa, fase de fortes modificações da economia nacional, que começa praticamente com a abertura econômica desmesurada, passa pela estabilidade da moeda e se intensifica com a desvalorização cambial.

Nesse período de 11 anos a soma dos sete municípios do Grande ABC sofreu perda de 17,9% no IPC do Estado de São Paulo e de 38,7% no IPC do Brasil. Já a Capital paulista caiu 21,9% no IPC do Estado e 31,5% no IPC do Brasil. Os 10 municípios mais importantes da Grande São Paulo (Grande ABC, São Paulo, Guarulhos e Osasco) perderam participação estadual de 24,5% no período pesquisado, já que em 1991 contavam com 57,71% do IPC paulista, contra 43,55% em 2002. A participação dos 10 municípios da Grande São Paulo no bolo nacional também mostra queda — de 30,5% — pois ao índice de 20,74% de participação no potencial de consumo brasileiro em 1991 se contrapõem os 14,41% de 2002.

Como se observa, por todos os ângulos que se esmiuce o comportamento do Índice de Potencial de Consumo dos municípios mais importantes da Grande São Paulo, sempre o Grande ABC incluído, o que se tem é gol contra. A importância relativa e absoluta da Grande São Paulo é balão em chamas diante do influxo de investimentos em direção ao Interior paulista e também a outros Estados que praticam guerra fiscal, entre outras políticas de atratividade produtiva.

A evidência de que o Estado de São Paulo sofre percalços econômicos com consequentes escorregões sociais por causa dos principais municípios da Grande São Paulo está na constatação de que o Índice de Potencial de Consumo dos paulistas no confronto com outros Estados sofreu queda de 8,24% no período de 11 anos pesquisado pela Target — ou seja, caiu em média 0,80% ao ano. De participação nacional de 34,33% em 1991, os paulistas desceram para 31,5%. Se o peso relativo das perdas da Grande São Paulo não fosse tão pronunciado, os paulistas poderiam ter mantido participação infra-nacional, porque o Interior segurou as pontas.

O Índice de Potencial de Consumo preparado pela Target é um conjunto de números econômicos de diferentes fontes de dados oficiais. De forma simplificada, registra a riqueza acumulada por todos os moradores dos municípios brasileiros e a capacidade de consumo desses territórios. Para 2002, a previsão era de que o potencial de consumo do Brasil somaria US$ 309 bilhões. Basta simples conta para determinar o quanto o Estado de São Paulo potencialmente consumiria a menos em 2002. Os 2,8 pontos percentuais de diferença entre 1991 e 2002 significam US$ 8,6 bilhões.

Se Grande ABC, São Paulo, Guarulhos e Osasco mantivessem em 2002 o potencial de consumo de 11 anos atrás, o total projetado seria de US$ 64 bilhões. Como esses municípios caíram 6,34 pontos percentuais em relação ao País, o total foi rebaixado para US$ 44,5 bilhões. Menos mal que o Interior do Estado e a Baixada Santista, que participavam com 42,29% do IPC estadual em 1991, tenham crescido para 56,46% no bolo intra-estadual e saltado de 13,59% para 17,09% do total de 31,5% dos paulistas em 2002 no campeonato nacional de potencial de consumo. O índice total dos paulistas significa que dos US$ 309 bilhões que seriam consumidos em 2002 no Brasil, US$ 97,3 bilhões teriam os municípios do Estado de São Paulo como protagonistas. Algo como a soma do potencial de consumo de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina juntos.

É esse tipo de comparação que, ao contrapor determinados territórios, geralmente contribui não só para dourar a pílula como também para arrefecer o ânimo da recuperação paulista. Na mesma proporção em que o Grande ABC alardeia ter economia maior que a soma de muitos Estados brasileiros, a Capital paulista dorme no berço esplêndido de seguir na liderança nacional. Erram tantos os regionalistas do Grande ABC como os empedernidos paulistanos — tanto um quanto outro fecham os olhos para os movimentos de um transatlântico que perdeu o rumo desenvolvimentista.

Dos demais Estados líderes da Federação, somente o Rio de Janeiro não conseguiu melhorar a performance no Índice de Potencial de Consumo da Target nos 11 anos pesquisados. Isso não significa que os cariocas tenham perdido, porque mantiveram 11,32% de participação, que lhes garantiam para 2002 total de US$ 34,9 bilhões para gastar. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná galgaram conquistas. Os mineiros passaram de 8,84% para 9,89%, os gaúchos de 7,29% para 7,77% e os paranaenses de 5,76% para 6,62%. Em conjunto, os cinco Estados líderes respondem por 67,1% do Índice de Potencial de Consumo do Brasil.

É sintomático que somente o Estado de São Paulo tenha perdido a corrida nos últimos 11 anos. Os sucessivos governadores paulistas viram a banda da guerra fiscal passar e pouco fizeram. Não fossem os administradores municipais interioranos com metodologias nada ortodoxas de atrair investimentos industriais, a vaca paulista teria ido para o brejo. Afinal, o Interior de São Paulo — sobretudo as regiões da Grande Campinas, Grande Sorocaba e Grande São José dos Campos, situadas a até 150 quilômetros da Capital — absorveu parcela substantiva dos investimentos produtivos que deixaram a Grande São Paulo.

Se o Índice de Potencial de Consumo circunstancialmente encontrar resistência de triunfalistas de plantão pagos para artificializar cenários, pegue-se então os dados históricos do Valor Adicionado — o mais exato medidor do processo de transformação de matéria-prima em produto acabado. Imagine uma metalúrgica que receba derivado de indústria químico-petroquímica no berço de sua linha de produção e, ao final, embarca retrovisores de plástico pelo sistema just-in-time para uma montadora de veículos. Valor Adicionado corresponde à diferença entre o custo da matéria-prima recebida e o produto acabado liberado e inclui também salários, juros adicionais e impostos. Resumidamente, é o total de vendas da empresa menos o valor de compras de matérias-primas, produtos de terceiros e serviços. Enfim, tudo que envolve a transformação industrial está incorporado no conceito de Valor Adicionado.

Não é por outra razão que VA é a principal base de cálculo da distribuição do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), ferramenta constitucional que Estados utilizam para devolver proporcionalmente parte dos recursos gerados pelos municípios. De cada R$ 100 arrecadados com ICMS, R$ 25 retornam aos municípios.

A produção industrial acoplada ao conceito de Valor Adicionado, portanto, está explícita e não deixa margem a dúvidas. Por isso, comparativos intra-estaduais são indispensáveis para se entender a desindustrialização da Grande São Paulo. A falta de dados históricos nacionais do Valor Adicionado não emperra as análises porque há outros instrumentos que dão suporte às averiguações numéricas. Os sete municípios do Grande ABC, a Capital, Guarulhos e Osasco participavam em 1980 com 55,68% do Valor Adicionado do Estado de São Paulo. Vinte anos depois, 10 dos quais sob o rebaixamento das alíquotas de importação em vários setores, um desastre: os 10 municípios caíram para 38,13%. Um tombo de 31,52% na indústria de transformação.

Para que esses 10 municípios da Grande São Paulo mantivessem a participação estadual de 1980, o Valor Adicionado de 2000 deveria ter alcançado R$ 132,4 bilhões. Entretanto, com o rebaixamento, atingiu apenas R$ 90,7 bilhões. A maior queda relativa está no Grande ABC: de participação estadual de 13,89% em 1980, caiu para 9,15% em 2000. Ou seja, um mergulho de 34,13%. Em termos monetários isso significa R$ 11,3 bilhões, já que os R$ 21,7 bilhões de Valor Adicionado de 2000 seriam R$ 33 bilhões caso a participação relativa tivesse sido mantida.

A Capital do Estado, centro nervoso da Grande São Paulo, perdeu em termos relativos um pouco menos que o Grande ABC no período 1980-2000, sempre dentro do Estado de São Paulo. O Valor Adicionado da cidade de São Paulo foi reduzido em 33,1% no período: era de 36,99% e caiu para 24,74%. Os R$ 58,8 bilhões que a Capital gerou de Valor Adicionado em 2000 no Estado de São Paulo seriam R$ 78 bilhões caso sua integridade industrial não tivesse sido atacada pela interiorização dos investimentos e também pela fuga rumo a outros Estados.

O paralelismo entre a perda do Valor Adicionado dos 10 municípios pesquisados da Grande São Paulo e o ranking nacional do Índice de Potencial de Consumo só não é simétrico porque há diferenças entre os períodos analisados — o IPC abrange os últimos 11 anos, enquanto o VA refere-se aos últimos 20 anos. E também porque os efeitos da cumulatividade de riqueza do primeiro em relação à transformação industrial do segundo são evidentes. Além disso, um indicador trata de perdas intra-estaduais e o outro tem o País como comparativo. Só por isso o Valor Adicionado decadente da Grande São Paulo em relação ao Estado de São Paulo não exprime na mesma intensidade o raquitismo denunciado pelo Índice de Potencial de Consumo do País.

Além disso, há explicação ainda mais consistente: enquanto o VA dissimula de alguma forma a gravidade das perdas da Grande São Paulo por meio da produtividade industrial, o IPC registra o empobrecimento individual e coletivo decorrente das mudanças do setor produtivo. Explicando: a produtividade industrial da Grande São Paulo tem sido obtida desde que competitividade passou a ser palavra de ordem nas empresas e os postos de trabalho foram decepados em nome de investimentos tecnológicos e de novos parâmetros de gestão. Produz-se muito mais com menos trabalhadores. Dessa forma, a curva de perdas do Valor Adicionado não é tão acentuada quanto a baixa do potencial de consumo. É por essas e outras que a avaliação do comportamento econômico de um Município, região, Estado e mesmo do País não pode se prender a um único instrumento. Mesmo considerando que o Valor Adicionado da Grande São Paulo entrou em parafuso, a agudeza da situação gerada pela interiorização dos investimentos não é integralmente captada com a análise de dados específicos porque à produtividade acobertadora da exclusão social, de um lado, corresponde o esvaziamento gradual do consumo, de outro.

Essa constatação fica evidente se os dados do Índice de Potencial de Consumo no Estado de São Paulo, apenas no Estado de São Paulo, forem comparados em período de tempo semelhante com o mapeamento do Valor Adicionado. Enquanto o Valor Adicionado dos 10 municípios pesquisados da Grande São Paulo caiu 16,26% entre 1990 e 2000, o Índice de Potencial de Consumo de 1991 a 2002 dobrou o impacto, com 32,5% de queda.

A tradução mais didática para o cruzamento de dados e interpretações envolvendo Valor Adicionado e Índice de Potencial de Consumo recomenda o máximo de cuidado quando estudos estatísticos desfilarem números simplórios sobre a indústria de transformação. A distorção alimentada pelos investimentos em atualização tecnológica é emboscada que ronda o bom senso. Em linhas gerais, o parque industrial da Grande São Paulo comporta hoje um terço dos trabalhadores do início dos anos 90 e produz por unidade duas ou até três vezes mais Valor Adicionado. Se mesmo assim o Grande ABC, São Paulo, Guarulhos e Osasco, em conjunto, contabilizam entre si quebra de VA em números absolutos e também em números relativos frente ao Estado, é evidente que o êxodo e a insolvência de empreendimentos explicam a redução de participação também individual e coletiva.

Aí entra em campo o Índice de Potencial de Consumo, que capta, em detalhes, a perda do poder aquisitivo cumulativo de legiões de trabalhadores atirados ao mercado informal ou simplesmente ao desemprego. Os excluídos funcionais agravam os custos da já combalida rede de serviços sociais do Estado, de um lado, e arrefecem o poder de compra, de outro.

Marcos Pazzini, executivo da Target, lembra que o Índice de Potencial de Consumo traduz a importância de cada Município no contexto do consumo nacional, agregando todas as categorias de produtos de todas as classes econômicas. A ferramenta de estudos mostra o tamanho efetivo de cada cidade brasileira através da medida do consumo de toda a população, seja empregada no mercado formal, informal ou no subemprego.

Estudos de diferentes organismos que se mantêm distantes entre si desconsideram essas combinações. Vai chegar o momento, porque nada é infinito na economia, em que, por mais que continue a sangrar a industrialização da Grande São Paulo, o balanço do Valor Adicionado registrará estabilidade e até mesmo aumento em números absolutos dos volumes monetários da indústria de transformação. Provavelmente não faltarão na mídia fantasiadores estatísticos que aludirão ao fenômeno o engodo do fim da evasão industrial. Nada mais ilusório. A explicação de que mais recursos tecnológicos tendem a esconder os efeitos da guerra fiscal, da busca por qualidade de vida e por competitividade do Interior nem sempre será aceita pelos porta-vozes da encenação que pousam de experts para a mídia. Eles desprezam a lógica de que menos indústrias, menos trabalhadores e mais Valor Adicionado formam combinação perfeitamente viável a reboque da competitividade a todo custo. Essa situação ainda não se materializou nos macronúmeros da Grande São Paulo porque o processo de evasão ainda é muito mais expressivo.

A terceira ferramenta de análise que ajuda a entender por que a Grande São Paulo se contrai economicamente e sofre de distúrbios sociais é o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que representa até 60% das receitas dos municípios brasileiros e garante 90% dos orçamentos dos governos estaduais. A relação intestina entre ICMS e Valor Adicionado não é mero acaso. Trata-se do fato de que a distribuição de recursos gerados pelo imposto para os municípios está ligada em grande parcela ao montante do Valor Adicionado. Nada menos que 76% da arrecadação do ICMS é contabilizada, para efeitos distributivos, com base no VA.

O governo estadual fica com R$ 75 de cada R$ 100 do ICMS. Os outros R$ 25 são distribuídos aos 645 municípios paulistas. Desses R$ 25, o peso do Valor Adicionado na definição da distribuição é de 76%. Ou seja: para cada R$ 25 repassado pelo governo do Estado, R$ 19 são distribuídos de acordo com a proporcionalidade do Valor Adicionado. O restante do bolo se completa com 13% do fator-população de cada Município, 5% de receitas tributárias próprias, 3% dos municípios detentores de áreas cultivadas, 0,5% dos de áreas inundáveis e 0,5% dos de áreas preservadas. Os 2% restantes são fixos e distribuídos igualitariamente entre todos os municípios.

O raciocínio de que a influência do Valor Adicionado contamina e desequilibra o jogo do repasse do ICMS não é precipitado. Trata-se de um equívoco legislativo a divisão que privilegia a capacidade de transformação industrial e subestima o contingente populacional. E nesse ponto também os principais municípios da Grande São Paulo sofrem porque os investimentos tecnológicos que têm compactado o contingente de trabalhadores não oferecem o contraponto da redução demográfica. O inchaço populacional da Grande São Paulo permanece e se agrava, enquanto os municípios locais recebem proporcionalmente cada vez menos dinheiro da repartição do ICMS, já que na origem — o Valor Adicionado — o Interior segue levando vantagem.

Com menos recursos financeiros para o enfrentamento do quadro de exclusão social que atinge sobremodo as áreas de saúde, transporte, educação e segurança pública, os municípios de maiores contingentes populacionais passaram a se socorrer da elevação das alíquotas dos tributos próprios, o que, em última instância, agrava o círculo vicioso do Custo Grande São Paulo e estimula a evasão dos meios de produção que, por sua vez, retroalimenta o desemprego e a exclusão social. É uma ciranda infernal e descontrolada porque o Estado assiste a tudo contemplativamente há muitos anos.

O Índice de Participação dos Municípios no produto da arrecadação do ICMS é emblemático da importância do entranhamento de dados para se alcançar maior segurança de análise socioeconômica e, com isso, evitar as armadilhas de informações dispersas na Imprensa. Em 1980, o Grande ABC, São Paulo, Osasco e Guarulhos contavam com 57,22% do bolo paulista de ICMS. No ano passado, a soma dos 10 municípios atingia 38,58%. Uma queda de 32,57%. Os sete municípios do Grande ABC perderam 41,28% — em 1980 o IPM era de 14,12% no Estado e em 2001 registrou 8,29%. Já a Capital caiu de 38,06% para 25,09%, ou seja, um tombo de 34,07%.

Uma comparação entre o ICMS de 1980 e de 2001 e o Valor Adicionado de 1980 e de 2000 só poderia mesmo ser uma sobreposição de números. No período 1980-2000, o Valor Adicionado dos 10 principais municípios pesquisados na Grande São Paulo sofreu perda de 31,5%, contra 32,5% do ICMS entre 1980 e 2001. Isso significa, em linhas gerais, que aonde a elevação ou o mergulho do Valor Adicionado vai, a elevação ou o mergulho do ICMS vai atrás.

Como o Valor Adicionado, também o ICMS não fornece a mesma precisão de perdas relativas e absolutas do Índice de Potencial de Consumo. Nem poderia ser diferente, porque, ao nutrir-se de 76% do bolo do VA para efeito de cálculos distributivos, o ICMS também capitaliza a influência distorsiva do mesmo VA. Isso porque a composição do VA, como já explicado, submerge parte da exclusão social da população nas águas da produtividade da indústria. No mesmo período de pesquisa do Índice de Potencial de Consumo da Target, que concluiu pela perda de 32,5% de participação da Grande São Paulo dos 10 municípios pesquisados em relação ao restante do Estado, o ICMS imprimiu queda de 14,83% — o índice de 45,3% contabilizado em 1991 emagreceu para 38,58% em 2001.

Para completar o círculo de referenciais estatísticos que contribuem para o desenho da evasão industrial e suas consequências na Grande São Paulo, são providenciais os dados do PIB (Produto Interno Bruto) preparados pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), através da Dirur (Diretoria de Estudos Regionais e Urbanos), do Ministério do Planejamento.

Entre 1970 e 1996, período dos estudos mais recentes do Ipea, o Grande ABC viveu uma montanha-russa econômica. Subiu vertiginosamente entre 1970 e 1980, caiu desconfortavelmente na sequência e se recuperou levemente na ponta do estudo, que coincidiu com o sucesso do Plano Real. Os dados de 1997 a 2001, período em que a economia do Grande ABC mais se deteriorou nos últimos 50 anos, ainda não foram anunciados.

Em 1970 o Grande ABC somava US$ 11,147 bilhões de um total nacional arredondado de US$ 246,8 bilhões do PIB. De cada US$ 100 que o Brasil produziu no ano em que se consagrou tricampeão da Copa do Mundo no México, US$ 4,57 tinham origem no Grande ABC. Vinte e seis anos depois, a participação relativa da região mergulhou, baixando para 2,85%; isto é, de cada US$ 100 no País, a região passou a produzir apenas US$ 2,85. Uma queda de 37,64%.

Mais dinâmica, a Capital paulista perdeu menos que o Grande ABC no período de 26 anos, pois contava com 18,6% do PIB brasileiro e caiu para 14,36%. Um tombo mais ameno, embora também inquietante, de 22,8%. Mais uma vez o declínio do Grande ABC e da Capital, principalmente, na Grande São Paulo, foi socorrido pelo Interior, como nos indicadores de Potencial de Consumo, de ICMS e de Valor Adicionado. O PIB paulista em 1970 representava 39,88% do bolo nacional e 26 anos depois foi apenas residualmente atingido, porque caiu para 39,56%.
Beneficiados por fatores como melhor qualidade de vida, logística de distribuição, salários menores, isenção de impostos municipais e devolução de cota-parte de impostos estaduais, municípios paulistas fora da Grande São Paulo se esbaldaram.

O impacto de perdas do PIB do Grande ABC em relação ao País é semelhante ao confronto com o Estado de São Paulo. Internamente entre os paulistas, o Grande ABC reduziu em 37,17% sua participação no PIB. Em 1970 o PIB do Grande ABC equivalia a 11,46% de tudo o que era produzido pelos paulistas. Vinte e seis anos depois passou a ser de 7,2%.

Não há disponível o ranking do ICMS paulista no mesmo período, de forma que permita comparação linear. Tampouco do Valor Adicionado e do Potencial de Consumo. Entretanto, dados da Secretaria da Fazenda registram que em 1976 o ICMS do Grande ABC no Estado de São Paulo atingia 14,81%, contra 11,21% de 1996. A queda de 24,3% é mais suave, portanto, que a do PIB nacional em período não exatamente igual. A diferença se justifica pelo mesmo princípio que difere o Potencial de Consumo do ICMS e do Valor Adicionado, que se retroalimentam: o PIB recolhe informações econômicas mais abrangentes porque não está limitado à indústria de transformação do VA nem tampouco à comercialização de produtos e serviços captada pelo ICMS. PIB é o valor agregado de todos os bens e serviços produzidos no País, independente da origem dos proprietários das unidades produtoras. Em suma, se há persistência de perda de participação no ICMS, é sinal claro de que há mais profundidade nas recaídas do PIB.

Por isso mesmo que o fim da vice-liderança de São Bernardo no ranking estadual de ICMS, caindo para o terceiro e depois para o quarto lugar e para o quinto, foi uma caçapa cantada pelo ranking do PIB. Afinal, São Bernardo chegou a 1996 assegurando o segundo lugar no PIB estadual, mas já era acossada intensamente por Guarulhos e São José dos Campos. A atualização dos dados do Ipea deverá confirmar a queda estadual de São Bernardo no ICMS, com mais que provável perda de postos no ranking do PIB.

 

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