Menos bajulações
e mais realizações
DANIEL LIMA - 18/07/2001
Débora? É você”?
“Ao vivo e em cores, senhor Daniel Lima”.
“Se forem cores alvinegras, melhor ainda, mas não me chame de senhor. Nem de tio da Sukita, por favor. Está certo que tenho filha com sua idade, mas vamos fazer de conta que não tenho, senão a conversa fica muito paternal e o que vamos tratar, convenhamos, não é nada amistoso. Falar de uma espécie de guerra. A guerra pela qualidade de vida de uma região de 2,3 milhões de habitantes. Está bom?”.
“Está bom, está bom, Daniel. E fique tranquilo que temos compatibilidade de cores”.
“Nada mais agradável porque, embora a gente vá conversar sobre economia do Grande ABC, de repente dá uma escapada até o futebol e fica mais interessante costurar sobre nossas cores preferidas, em vez de digladiarmos por outras cores, não é verdade?”.
“Verdade verdadeira. O que preciso saber Daniel, nesse nosso happy hour que combinamos por telefone, é a quantas anda a economia do Grande ABC. Em que ponto estamos, entendeu? Alguns dizem que estamos bem, outros falam que vamos de mal a pior, uns terceiros ficam na coluna do meio. Por isso, liguei para você. Dizem que ninguém entende mais de economia da região do que LIVRE MERCADO. Então resolvi arriscar a sorte. Pensei comigo: será que ele topa um happy hour?”.
“Topei com louvor e vou explicar o porquê. Primeiro, Débora, esse nosso bate-papo vai virar ensaio para o Nosso Século XXI, projeto inédito que adotamos na revista LIVRE MERCADO e que só tem cobras criadas como convidados. Será, então, um prazer imenso ver isso retratado nas páginas da revista. Segundo, porque você é a enésima estudante que me liga para questionar aspectos econômicos da região. Conversando com você e levando as informações para a revista, facilito a vida de todos os demais que me procuram. Basta acessar a Internet, daqui a uns dias, e este nosso diálogo estará socializado. Agora, sobre esse negócio de dizer que nossa revista é quem mais entende de economia do Grande ABC, há certo exagero.
“Vamos parar com essa modéstia, Daniel”.
“Francamente, o que sei, de fato, é que nossa revista tem se debruçado sobre números e também sobre cada metro quadrado de asfalto da região, cada morro, cada chão de terra batida da região. Unimos a utilidade das estatísticas com a realidade prática. Talvez ninguém faça isso com tanto empenho. Não acredito que apenas um observador da realidade factual, que caminhe sobre os problemas cotidianos da região, seja capaz de desvendar nossas mazelas e de vislumbrar nossos talentos. E também não acredito que um estudioso, com título universitário, limitado às estatísticas, tenha condições de desvendar nossos segredos socioecônomicos. Faltará ao homem da rua o apetrechamento teórico indispensável; faltará ao homem de gabinete a sensibilidade prática intransferível”.
“Então as informações conferem. Estou diante do jornalista mais atualizado sobre o Grande ABC”.
“Talvez, talvez, mas não esparrame. O fato, digamos, é que sou um dos integrantes de uma revista decidida a enfrentar tudo para não deixar que castelos de areia construídos em torno da região ganhem novos impulsos. Para ser claro, precisamos é derrubá-los. E só conseguiremos isso se pegarmos para valer seus responsáveis”.
“Quem exatamente?”.
“Muita, muita gente disposta a tudo para manter suas peças de xadrez triunfalistas em posições estratégicas. Gente que não se incomoda com o empobrecimento da região, gente que não está nem aí com a hora do Brasil. Só querem manter e valorizar seus patrimônios empresariais, seus discursos sindicais, suas demagogias sociais. Você ainda vai conhecer todo esse pessoal, se é que já não conhece sem se dar conta disso. Basta prestar atenção. É claro que a região tem gente de primeira qualidade. Aliás, é por essas pessoas que enfrentamos os desafios. Elas estão conosco. Não nos abandonam. Apóiam nossas posições. Para dizer a verdade, parece até piada que para tentar fazer parte do exército de bom senso que procura melhorar as condições sociais e econômicas do Grande ABC a gente tenha de brigar com batalhões de oportunistas, mas é assim mesmo. Estamos numa trincheira sem tréguas. E não vamos desistir jamais. Se a canoa não virar, eu chego lá”.
“E se virar”?
“Se virar, azar meu e dos que engrossam nosso exército. Faz parte do jogo da cidadania ganhar e perder”.
“Você acha que quem está perdendo é a sensatez”?
“Não diria, Débora, que a sensatez está perdendo. Já perdeu. Mas agora está reagindo. Nosso exército, como disse, é cada vez maior. Recuar agora seria loucura, bobagem”.
“Por falar em bobagem, qual é a maior já propagada na história do Grande ABC?”
“Minha nossa senhora! São tantas e tamanhas que vale a pena falar sobre todas. Então começamos pela primeira: até hoje tem consultor internacional que visita a região e faz referências à histórica qualidade da mão-de-obra local. Isso é uma grande besteira”.
“Uma grande besteira?”.
“Vou explicar, Débora, vou explicar. Desmistificamos essa história com a ajuda da globalização. Quando abriram inadvertida e abruptamente os portos, colocando nossa indústria no epicentro de um vulcão de competitividade, derrubaram nossa muralha de embromação. Como nossa mão-de-obra poderia ser qualificada se produzíamos carroças, como bem definiu o ex-presidente Fernando Collor de Mello? Como poderíamos ter mão-de-obra qualificada se não havia o menor compromisso da indústria nacional, e do Grande ABC em particular, com competitividade, produtividade, qualidade? É claro que nossa mão-de-obra era tecnicamente frágil. Confundiram, querida Débora, cultura fabril com competência técnica. E fizeram disso uma papagaiada que ganhou ares de verdade. Balela pura”.
“Como assim?”
“Simples. Cultura é uma coisa, competência é outra. Cultura é aquele legado que passa de geração para geração. E isso, de fato, se passou na região, industrializada a partir do final do século XIX. Já competência é outra história. Competência envolve tecnologia, gestão administrativa, processos. E isso nos faltava imensamente porque o mercado era fechado, autárquico, como dizem os economistas. Se não tínhamos concorrência interna, para que investir? Se as regras do jogo permitiam acomodação e alta lucratividade mesmo com produtos de terceira classe, por que mexer no time que estava ganhando?
“As mudanças que vieram então explicam a derrubada de empregos formais no Grande ABC nos anos 90?”.
“Matou a charada, cara Débora, matou a charada. Quando abriram as alfândegas, quando as alíquotas de importação foram derrubadas, quando os investimentos em tecnologia, em processos e em gestão se tornaram obrigatórios, perdemos em 10 anos 120 mil empregos formais só na indústria. Um dilúvio. As montadoras até que não perderam tanto, porque tiveram mantida parte da blindagem contra os importados. Mas as autopeças, essas dançaram bonito, sem força política e institucional para barrar a enxurrada de ofertas. Depois, então, Débora, com a chegada do capital internacional, nossas autopeças saudáveis foram compradas, enquanto as demais simplesmente desapareceram”.
“Mas isso faz parte do jogo da globalização, não é verdade? Livre mercado não é isso mesmo, Daniel?”.
“É isso em parte. Livre mercado pressupõe competição sem fronteiras, mas é indispensável que o Estado tenha sensibilidade e capacidade para coordenar determinadas ações e movimentos. Não foi o que aconteceu no Brasil, onde o Estado é historicamente tão inchado quanto ineficiente. Por isso, o que passou pela região foi um terremoto que atingiu em cheio a chamada classe trabalhadora e empresas familiares da área industrial. Para não perder o fio da meada, Débora, volto à questão da qualidade da mão-de-obra. O que as indústrias fizeram nos últimos anos foi uma profilaxia completa. Apertaram o cerco contra o trabalhador de baixa qualificação. Gastaram e ainda gastam milhões de dólares em treinamento e em reciclagem. Contratam novos profissionais só com escolaridade elevada, porque a maioria de nossos metalúrgicos mal havia completado Ensino Fundamental. Metade dos horistas da Volks Anchieta sequer tinha Primeiro Grau completo em 1994. Hoje até o ITA (Instituto Tecnológico Aeroespa-cial) foi chamado para o programa de treinamento. Agora sim, Débora, estamos caminhando para ter a melhor combinação de profissional industrial: a cultura e a competência no mesmo plano. Mas isso é coisa recente, Débora. Antigamente, e esse antigamente é coisa de uma década, tínhamos só cultura para consumo doméstico, interno, fechado ao mundo. E uma cultura recheada de problemas também, como é o caso do movimento sindical”.
“Não vai dizer que você é contra o movimento sindical do Lula e companhia bela?”.
“De jeito nenhum, Débora. De jeito nenhum. Mas que eles andaram exagerando na dose, pode acreditar, eles andaram. Aliás, já reconhecem isso. Outro dia mesmo o Carlos Augusto César Cafu escreveu um ensaio publicado por nossa revista admitindo isso. Teve coragem, porque ainda reunimos guetos de sindicalistas xiitas na praça. Em parte, Débora, os sindicalistas ultrapassaram os limites das relações capital-trabalho porque carregavam, como muitos ainda carregam no peito, o velho socialismo ruim de guerra. Aquelas coisas de Stalin, de Marx, que praticamente ruíram com a queda do Muro de Berlim e que só Fidel Castro e uns poucos não tão conhecidos ainda praticam. Por outro lado, Débora, sindicalistas e trabalhadores reagiram em larga escala a patrões despreparados, que pensavam exclusivamente em acumular riquezas, em aumentar o patrimônio, em multiplicar a rentabilidade, em avolumar as remessas de lucros. Tratavam trabalhadores como algo um pouco melhorado do que escravos. Foi o encontro das águas que deu no que deu”.
“Deu no que deu ou está dando no que está dando?”
“Ainda está dando, Débora, mas nem tanto. Hoje a situação é outra. Quando falta emprego, sobra juízo. O sindicalismo entrou em crise com a globalização. O trabalhador já não tem aquela volúpia de parar uma fábrica. Pensa 10 vezes. Agora, sindicatos e trabalhadores estão mais preocupados com questões que em outros tempos eram secundárias, como ganhos indiretos de salário e manutenção do próprio emprego. Tanto é verdade que a Volkswagen, grande vitrine do movimento sindical brasileiro, fez série de acordos históricos com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e reduziu custos indiretos com os trabalhadores, atacando na área de alimentação, transporte e horas extras, entre outros”.
“Mas outro dia houve uma greve rápida lá porque demitiram dois trabalhadores que trocaram sopapos por causa de futebol”
“Débora, não leve isso tão a sério como se fosse uma tendência de recrudescimento do movimento de hostilidade. Faltou nesse episódio alguém de RH da Volkswagen para tirar de letra a desavença. Se o Fernando Tadeu Perez, que deixou a vice-presidência da Volkswagen rumo ao Itaú, estivesse lá, tudo teria terminado ou em pizza ou em feijoada. Como bom corintiano, ele saberia aplacar os ânimos e centenas de veículos não teriam deixado de ser produzidos. Acho que sem o Tadeu a Volks perdeu muito, mas pelo menos por enquanto não há campo fértil para o acaloramento sindical. Acredite Débora”.
“Estou acreditando, mas me conta outra grande bobagem da região enquanto peço para o garçom trazer duas cervejinhas”.
“Cervejinha para você, água mineral para mim. Sou jornalista sem vícios. Não bebo, não fumo e não jogo. Antigamente se dizia que jornalista precisava de bebida, de cigarro e das noitadas de jogo. Sou careta e me sinto bem. Mas, voltando ao assunto, uma outra grande besteira foi o foguetório que a mídia e as lideranças empresariais fizeram quando da chegada de grandes conglomerados comerciais, a partir do antigo Shopping Mappin, em meados da década de 80. Todos se comportaram como índios diante de quinquilharias trazidas pelos portugueses quando descobriram o Brasil”.
“Como assim? Não vai me dizer que não foi bom atrair esses investimentos?”.
“Calma Débora, que não cheguei lá ainda. Primeiro que não houve atração planejada desses investimentos, como não houve também, a partir da década de 50, com a indústria automobilística. Fomos invadidos, essa é a verdade. Segundo, porque nossos prefeitos e nossas Câmaras Municipais não se deram ao cuidado de estabelecer regras que impedissem o massacre dos pequenos negócios, incapazes sob vários pontos de vista de competir com os grandes negócios. O que temos na verdade é uma grande carnificina”.
“Mas por que não botaram ordem nesse galinheiro, Daniel?
“Simples, Débora, simples. Primeiro porque vivemos uma guerra tributária interna. Em casa sem pão, todo mundo tem razão, já ouviu essa frase? Pois é assim o Grande ABC. Perdemos tanto em riqueza industrial que os dirigentes de cada um dos sete municípios trataram de cuidar da própria cozinha. Dessa forma, Débora, como não abrir o portão para os investimentos comerciais e de serviços que geram receitas para os respectivos tesouros públicos?”.
“Mas ouvi dizer que eles estavam irmanados em instituições regionais”.
“Eu também Débora, eu também. Mas tudo não passou de ensaios, de cópulas interrompidas. Eles deram uma fingida que estavam juntos no Consórcio de Prefeitos, na Câmara Regional e na Agência de Desenvolvimento Econômico, mas na verdade, quando o assunto é grana, investimento, lutam como leões na arena. Canibalizam mesmo. Essas instituições interessam apenas quando se trata de assuntos compatíveis, isto é, que agreguem valores a todos ou quase todos os municípios locais sem prejudicar terceiros ou que, em atendendo um dos municípios, não atrapalhem os demais”.
“E o Fórum da Cidadania, cantado durante muito tempo em prosa e verso, não poderia ter mudado tudo isso?”.
“Poderia Débora, poderia. Mas o Fórum ficou apenas no marketing, perdeu-se pelo gigantismo, pela falta de foco, pelo estrelismo de alguns integrantes, e virou devaneio. O Fórum da Cidadania, Débora, já era faz tempo. Fomos os primeiros a denunciar suas mazelas, sua inapetência para resolver parte dos problemas regionais ao cobrar das autoridades ações efetivas. Nos sentimos bastante tristes com isso, porque participamos do Fórum da Cidadania desde os primeiros passos. Distribuímos panfletos nas ruas na Campanha Vote no Grande ABC. Quando percebemos que tínhamos de tratar a entidade com isenção, sem protecionismo, largamos brasa. Algumas pessoas não entenderam, nos criticaram, mas isso faz parte da vida. Não tenho vocação para ser personagem ou figurante de contos da carochinha”.
“É verdade que o Fórum andou se politizando, que os candidatos a deputado que saíram de suas entranhas foram responsáveis pela degringolada?”.
“Nada disso. É verdade, Débora, que o Fórum tratou muito mal a questão político-partidária, porque agiu com hipocrisia, e quando saíram alguns candidatos de seu seio houve certa decepção. Mas também é verdade que todo mundo que participava do Fórum sabia que mais dia menos dia a questão político-partidária iria aflorar. Política é um vírus presente em toda a sociedade. Não podemos pensar em isolá-la simplesmente. O Fórum errou quando tentou tapar o sol da participação política com a peneira da satanização de quem se dispusesse a romper o pacto de não-candidatura. Aliás, o Fórum cometeu um amontoado de erros. Entre os quais, cito ainda, a proibição de as empresas terem representação no quadro de associados. Representantes de entidades empresariais poderiam participar, empresas individualmente, não? Uma tremenda bobagem. Sem dinheiro, o Fórum poderia ter no engajamento empresarial os recursos de que sempre precisou. E não tinha por que temer a presença supostamente maligna dos empreendedores porque o estatuto é sagrado, ao qual todos têm de se submeter”.
“Dizem que você bate forte sobre o esvaziamento econômico da região. Mas tem gente que garante que passamos apenas por um processo de reestruturação produtiva. Afinal, onde estamos?”.
“Num mato sem cachorro, Débora. Perdemos indústrias demais nos últimos 20 anos. Nosso PIB desabou. Nosso ICMS desceu ladeira abaixo. Nosso potencial de consumo mergulhou. Basta um número sobre isso para você sentir o drama: perdemos US$ 2,5 bilhões de riqueza acumulada, que é o critério de Índice Potencial de Consumo, entre 1991 e 2001. Se somar o que perdemos antes, então, Deus me livre. Sabe o que significa esse montante monetário todo? Exatamente o potencial de consumo de Santo André. Débora, tudo o que você ouvir por aí que não combina com esses dados pode descartar. Não passa de baboseira. De gente querendo enganar. Nossos municípios estão caindo sistematicamente no ranking do ICMS, que é um dos melhores medidores de riqueza. São Bernardo perdeu a histórica vice-liderança e já está em quarto lugar”.
“Você escreve sobre isso com essas palavras?”.
“É claro que não, Débora. Tenho respeito pelos leitores. Mas não acho que se escrevesse literalmente assim estaria sendo deseducado. É melhor ouvir uma verdade ácida do que uma doce mentira”.
“Tem luz no final do túnel, Daniel?”.
“Difícil, difícil. Somos uma região fragmentada institucionalmente, politicamente, economicamente e socialmente. Tudo isso junto. Nosso grau de cidadania é baixíssimo”.
“Baixíssimo? Mas não foi aqui a revolução sindical do Lula e seus rapazes? Alguns acadêmicos escrevem que aquilo tudo foi prova de que temos uma sociedade comprometida com as causas sociais”.
“Nada disso, Débora. Passa essa. O Lula mesmo disse outro dia, em entrevista à revista do Sindicato dos Químicos do Grande ABC, que o movimento sindical por ele liderado foi uma ação corporativista. Ele disse o que já cansamos de escrever. Foi sem dúvida um movimento legítimo, importante, mas seus efeitos se concentraram do ponto de vista institucional nos interesses financeiros e trabalhistas dos próprios operários e, na sequência, serviram de instrumentalização política externa, isto é, fora do âmbito regional. Aliás, Débora, por mais paradoxal que possa parecer, o movimento sindical do Lula agiu como espécie de anestésico na sociedade regional. Anestésico em parte, porque da mesma maneira que transmitiu a impressão de que tínhamos uma comunidade engajada nas questões sociais, dividiu essa mesma sociedade, que não era de chão de fábrica, em irritadiços adversários dos sindicalistas. Estabeleceu-se, diria, uma nova fragmentação na região, agora de caráter social. Somente nos últimos anos temos percebido manobras de aproximação que ainda carecem de amadurecimento.
“Mas Daniel, como reagiram os formadores de opinião da região que não estavam alinhados aos sindicalistas?”.
“Da pior maneira possível. Permaneceram no seu cantinho, construindo guerrilhas abstratas, opondo-se às necessidades de participar das transformações, inclusive para conhecimento mútuo. Para ser sincero, praticamente todos se comportaram com o mesmo espírito corporativo dos sindicados dos trabalhadores: cuidaram de seus respectivos territórios institucionais e deixaram a região, como um todo, a ver navios. Para radicalizar, somos um Titanic social, um Titanic cultural, um Titanic institucional e, se bobear, viramos um Titanic econômico”.
“Você não está sendo muito negativista?”.
“Talvez esteja, talvez não. O problema é o seguinte, Débora: com o otimismo conservador e conivente que as classes dominantes construíram o Grande ABC, chegamos aonde chegamos. Estamos tomados pela exclusão social que avança. Nossos índices de criminalidade já superam os da explosiva Baixada Fluminense. Empresas de seguros estão fugindo da região ou estabelecendo graus de riscos que elevam mais o chamado Custo ABC, que já é uma tragédia. Então, se os chamados otimistas não foram capazes de pelo menos diagnosticar os problemas, que os eventuais pessimistas projetem nossas impurezas crônicas e exponham nossas vísceras sociais a todos que têm o poder econômico e político nas mãos. Se a sociedade fosse mais crítica, mais combativa, a história seria outra. Mas o que fazer se carregamos todos os vícios da colonização portuguesa, que coloca o governo central como senhor das ações”.
“Com tudo isso que você fala dá a impressão de que está doidinho para sair do Grande ABC”.
“Tem uns caras por aí que juram que amam a região, que propagam fantasias sobre a região, mas estão tratando mesmo é de arrumar as malas devagarinho, de fugir devagarinho. Outros assumem publicamente que não vêem a hora de ir embora. O que sei sobre mim é o seguinte: tenho um produto que precisa crescer e como o Grande ABC reúne uma economia praticamente inelástica, isto é, que não oferece muita consistência de saltos de crescimento, porque continua em queda gradual, então tenho de construir mecanismos externos para que o produto local siga em frente. Daí o fato de ter criado a edição estadual da revista. Acho que mudar da região é uma atitude complexa demais para quem tem tantas raízes, tantos compromissos. Mas que já pensei nisso, ah!, com certeza. A cada novo assalto que sofro, volto-me para o Divino e penso: será que chegou a hora de me mandar?”.
“Você não acha que a linha editorial da revista pode atrapalhar os interesses financeiros da própria revista?”
“Débora, Débora e Débora! Não engrosse esse coro que está restrito a algumas pessoas que não enxergam patavina de jornalismo e de empreendedorismo. E muito menos de ética nos negócios. Quantas e quantas publicações surgiram no Grande ABC ao longo das décadas sob a encomenda da bajulação, da politicagem, e acabaram se afundando? Quantas também não estão aí no mercado com dificuldades entre outras razões porque se omitem nas questões graves que nos abalam como comunidade? Quantas também, como nós, não têm dificuldades enormes para se manter no mercado não porque bajulam, não porque criticam, mas sobretudo porque o mercado regional de publicidade, que é nosso sustento, acompanhou a curva descendente da economia?”
“Então, Daniel, vale a pena ser independente de fato?”
“Não só vale a pena, Débora, como vale o sono. Nossos leitores fiéis, inclusive aqueles que arrebanhamos para o boletim eletrônico Capital Social, conhecem de cor e salteado a alma editorial e filosófica de nossa revista”.
“Você falou em boletim eletrônico e quase me esqueci de perguntar, porque já ouvi falar sobre isso. O que é de fato?”
“É uma invenção nossa. Achávamos que existia intervalo muito largo entre a circulação da revista regional que é mensal e a revista estadual, que também é mensal e circula igualmente na região. Isto é: a cada duas semanas temos uma nova LIVRE MERCADO na praça do Grande ABC, mas isso ainda é muito tempo para aumentar nossa força de comunicação. Costumo dizer que a revista faz a cabeça dos leitores, torna-os mais reflexivos, enquanto os jornais mobilizam. É da natureza de cada veículo. Entretanto, com o boletim eletrônico, via Internet, mudamos um pouco essa relação. Nossos emeiados, como identifico nossa audiência, têm participado cada vez mais. É o veículo mais democrático e informal do mundo. Quem quiser participa. Além disso, transformou-se em importantíssima pauta de reportagens da revista impressa”.
“Tecnicamente, como funciona o boletim eletrônico?”.
“Simples, simples, Débora. Temos hoje perto de quatro mil emeiados no Grande ABC. Cadastrados por nossa equipe e também voluntariamente. Todos recebem o Capital Social de segunda à sexta-feira e, conforme seus interesses, participam com mensagens. Virou uma mania. Onde vou, me procuram para entregar o cartão de apresentação para receber o boletim. O bate-bola diário está-se tornando fantástico e elucidativo. Acho que lá por volta do ano 2010 vai soar óbvio esse tipo de veículo propositivo, porque é provável que muita gente nos copie, e isso é bom para a democracia da informação, mas hoje, começo do novo século, garanto, esse instrumento é absolutamente revolucionário. Quem sabe a nossa revista do futuro seja inteiramente eletrônica. Essa é a tendência. A revista impressa seria mantida, provavelmente com edições especiais”.
“Daniel, vamos voltar à economia propriamente dita. Você fala muito em necessidade de investimentos, mas há quem argumente que não temos espaços físicos para absorver novas empresas”.
“Quem fala não entende nada do riscado. Só de galpões industriais desocupados, o que encontramos na região é um atentado. Principalmente em Diadema, que se industrializou a toque de caixa, a evasão industrial abriu verdadeiras crateras em termos de galpões vazios. Nenhuma administração pública se deu ao trabalho de fazer um inventário minucioso do acervo de áreas desocupadas. Se fizeram, não divulgaram de vergonha. Mas só em Diadema, segundo corretores de imóveis, cerca de 40% a 50% dos 1,2 mil galpões estão às moscas”.
“O que não entendo, Daniel, é por que uma região que tem logística, tem consumo, tem infra-estrutura, tem mão-de-obra reciclada e preparada, por que perdeu tantas indústrias?”
“São vários os fatores, Débora. Vários e complicados. Nossa infra-estrutura viária, dentro de uma Grande São Paulo sufocada, virou um imbroglio difícil de consertar. A política restritiva de ocupação do solo, forjada num período de ambientalismo exacerbado, tornou o preço da terra para novas indústrias absolutamente proibitivo. Além disso, outro tipo de ambiente, o ambiente de negócios, viveu turbulências terríveis com o movimento sindical, que já comentamos. Adicione nisso tudo, aos custos trabalhistas, aos custos imobiliários, aos custos institucionais, a política do governo estadual de descentralização produtiva e a sanha da guerra fiscal. Não é à toa que o Interior do Estado já tem um PIB maior que a Região Metropolina de São Paulo, invertendo uma equação historicamente favorável na base de 70% contra 30%”.
“Puxa, você falou num fôlego só e faz tempo que não toma sua água. Acho que vou pedir outra cervejinha, Daniel”.
“Peça porque embalei. Tem mais coisas sobre a fuga industrial. Por exemplo: nossos administradores públicos, nossos legisladores locais, jamais se preocuparam em estabelecer políticas econômicas municipais, quanto mais regionais. Viveram das riquezas que vieram tão espontaneamente para cá quanto a chuva. Não tivemos até a virada dos anos 80 para 90, quando nosso barco começou a fazer água, sequer um homem público capaz de pensar na virada do século. Se a série de workshops que têm sido realizados no Grande ABC nos últimos três anos para debater o futuro da região tivesse sido promovida nos anos 70, o presente regional seria outro. Agimos como o cara que ganha na loteria e acha que o dinheiro será eterno. Quem não se lembra do Dudu Varella, um dos maiores ganhadores da Loteria Esportiva, que acabou na miséria? Ainda não chegamos a esse ponto, porque uma cidade, uma região, não é um cidadão, mas o caminho da recuperação será muito mais lento do que a corrida do rebaixamento econômico e social”.
“E quais são as melhores saídas para a recuperação econômica do Grande ABC. Você tem a fórmula mágica?”
“Nem eu nem ninguém. Mas é preciso trabalhar. Dependemos historicamente demais da indústria automotiva e de autopeças. O Grande ABC está sobrerrodas desde que o governo federal comandado por Juscelino Kubitschek implantou a indústria automotiva aqui. Num segundo plano, principalmente em termos de emprego, temos o setor químico/petroquímico, impulsionado pelo Pólo de Capuava. Tanto as montadoras quanto o pólo petroquímico foram diluindo a importância relativa na economia nacional com a descentralização dessas atividades, mas se mantêm indispensáveis para o que o Grande ABC tem de equalização econômica. A trilha que está sendo seguida pela indústria automotiva para outros pólos é a mesma que a petroquímica já cumpriu e agora está aperfeiçoando: produção cada vez maior relativamente ao número de trabalhadores. O enxugamento é inexorável. Quem continuar empregado formalmente na região vai integrar o clube seleto dos incluídos. Quem estiver fora desse nicho, vira excluído sem dó nem piedade. Temos hoje, segundo estudos anunciados pela Agência de Desenvolvimento Econômico, nada menos que um terço da PEA (População Economicamente Ativa) formada por agentes que vivem praticamente na informalidade. Um contingente quase todo fora do sistema de Previdência Social. Diria que outro terço do Grande ABC é formado por trabalhadores e empresários de relativo poder aquisitivo, isto é, um capitalismo de segunda classe contra o capitalismo de terceira classe dos informais. Já o terço restante, de primeira classe, seguramente será quantitativamente cada vez menor. No futuro teremos apenas uns 20% do Grande ABC digno de primeira classe. Não é à toa que hoje, ano 2001, o sistema público de saúde de São Bernardo atende 80% da população. A classe média desabou. Nem plano de saúde paga mais. Antes, o empregado contava em larga escala com várias mordomias das empresas, conforme acordos trabalhistas. A mina secou para muitos.
“Diante desse quadro, Daniel, o que fazer então?”.
“Planejamento centralizado, projetos centralizados, ações centralizadas, monitoramento centralizado, querida Débora. Você pode perguntar, então, que isso é simples, é bola na rede, mas não é assim. Nossa fragmentação territorial é uma porcaria. Cada um quer puxar a sardinha para sua brasa, não tem jeito. Talvez a união de fato só ocorra mesmo quando a vaca estiver mais atolada ainda no brejo, porque quem não aprende com o amor, aprende com a dor”.
“E os políticos, não têm força para organizar essa bagunça institucional, Daniel”?
“Que nada. Alguns sim, a maioria não. Você já viu autoridade pública pensar no conjunto de uma sociedade que não seja aquela que lhe interessa diretamente? O Celso Daniel, prefeito de Santo André, foi quem mais se lançou nos projetos de integração regional. Apostou nisso. Aliás, atendendo sugestão nossa, através da revista, criou a Secretaria de Desenvolvimento Econômico assim que assumiu o segundo mandado, em 1997. Os outros prefeitos foram atrás. Tempos depois da recomposição do Consórcio de Prefeitos e da Câmara Regional, o Celso Daniel percebeu que estava fazendo papel de otário regional e perdeu o romantismo. Tratou de cuidar de seu espaço municipal. Aí, querida Débora, foi a debaclè total do conceito prático de regionalismo. É verdade que alguns projetos de programas sobrevivem, mas estão longe das efetivas necessidades da região”.
“Você disse há pouco, se não me engano, que só em 1997 o industrializado Grande ABC passou a contar com Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Ouvi bem ou será que já bebi demais?”.
“Ouviu bem, Débora, ouviu muito bem. Aliás, costumo dizer que essa é a maior prova do desinteresse com que foi tratada a economia regional ao longo de décadas. Ninguém se importou com o dia seguinte. O dia seguinte em que, em vez de fluxo industrial, teríamos refluxo industrial. Credito ao Celso Daniel a liderança de apoiar uma iniciativa que foi nossa, cobrada insistentemente pela revista, como tantas outras coisas”.
“Que mais a revista tem defendido com insistência?”.
“Tanta coisa, tanta coisa. Por exemplo: a necessidade de metropolização jurídica do Grande ABC. Estamos engolfados pela Região Metropolitana de São Paulo, que reúne 38 municípios tão semelhantes regionalmente quanto a Carla Perez e a Zezé Mota. Temos que nos separar estrategicamente desse amontoado de cidades que jamais foram contempladas com políticas públicas sistêmicas. Para dizer a verdade, a Região Metropolitana de São Paulo é uma ficção. E a Região Metropolitana do Grande ABC também será, se vier a ser constituída, se não houver um amálgama envolvendo Poder Público, sociedade e empreendedores. Precisamos, enfim, nos valorizar juridicamente como território metropolizado, que de fato somos, distinguindo-nos do restante da RMSP, como, aliás, está ocorrendo com a Baixada Santista e a Grande Campinas, menos metropolizáveis do que o Grande ABC.
“Ainda não falamos de minha área, da universidade. Onde estamos nessa história?”.
“Na sala de aula, sempre na sala de aula. Agora, para dizer a verdade, há alguns movimentos isolados de colocar escola, Poder Público e empresas no mesmo saco. Descobriram a pólvora. Menos mal. Mas ainda temos muito para construir. A classe de professores do Grande ABC, de todos os níveis, não se envolve efetivamente com os problemas do Grande ABC. Preocupa-se com seu próprio gueto. Aliás, como todas as outras classes profissionais. Os donos das escolas, em larga escala, também cuidaram só de seu quintal, sem ir até as empresas perguntar que tipo de mão-de-obra precisavam ou como estabelecer parcerias para pesquisas e inovação tecnológica. O distanciamento histórico entre sociedade, escola, Poder Público e empresas ajuda a explicar por que somos o que somos. Olhamos sempre para um quarto mal iluminado pelo buraco de fechadura, achando que conseguiríamos identificar objeto por objeto”.
“Bem, Daniel, acho que o tempo passou e a gente não percebeu. O que tenho já dá para reunir a minha turma na escola, ligar o gravador e mostrar o meu trabalho”.
“Ótimo, ótimo. Você nem imagina como vai facilitar a minha vida daqui por diante porque uma cópia desse bate-papo vai parar na revista e no livro de que lhe falei. No ano que vem a gente se encontra de novo. Agora vou dar minha corrida diária. Veja a camiseta que vou molhar de suor. Leia os dizeres, que fazem relação fantasiosa de suposta candidatura política. Foi gozação de uma amiga. Política, tô fora! Garçom!, garçom, a conta por favor!
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