A década dos anos 1990 foi institucionalmente o período mais fértil da história do Grande ABC. Eram os Anos Dourados. Houve uma combinação de fatores e decisões que confirmam a importância da mobilização de parte da sociedade. Pena que tudo se dissolveu na sequência.
A revista LivreMercado, lançada em março de 1990 com o pioneirismo de tornar Desenvolvimento Econômico pauta central, a criação do Clube dos Prefeitos, em dezembro também de 1990, sob a liderança do prefeito Celso Daniel, eleito pela primeira vez antes de completar 40 anos de idade, e o despertar regionalista do Diário do Grande ABC, então sob o comando editorial do jornalista Alexandre Polesi, tornaram possível um ambiente institucional transformador.
Esse capítulo especial da Barcaça da Catequese é seguramente indispensável à compreensão do passado anterior àqueles anos 1990 e também do futuro que virou presente após aquele mesmo período. A ascensão e a queda do Fórum da Cidadania são cortes especiais na trajetória da regionalidade do Grande ABC. Jamais – e isso precisa ser repetido à exaustão – existiram anos tão efervescentes, e desanimadores. Tudo tendo como pano de fundo o esquartejamento econômico do Grande ABC, negado persistentemente por formadores de opinião e tomadores de decisões. Enfrentamos oponentes de diversos calibres. Mas não desistimos de alertas que, nesta série, serão expostas no devido tempo.
MAIOR FATO DO ANO
Na edição de dezembro de 1997 a revista LivreMercado, com tiragem média de 30 mil exemplares, consagrou o Fórum da Cidadania o fato mais importante da temporada. A consolidação do Fórum da Cidadania do Grande ABC se contrapôs ao fato mais negativo, no caso a falta de ações para recuperação do sistema viário da região, sobretudo os acessos pela Avenida dos Estados e Via Anchieta.
A escolha dos acontecimentos mais positivos e negativos da temporada coube aos 18 membros do Conselho Consultivo de LivreMercado. E virou Reportagem de Capa da publicação. Cada consultor recebeu cópia da pesquisa. Reiterava-se o aspecto sigiloso do trabalho e estipulavam-se regras de gradação. Cada consultor escolheu os três fatos mais positivos e os três mais negativos da temporada.
Dos 180 pontos possíveis, a consagração do Fórum da Cidadania alcançou 76, ou seja, 42,2% do total. Uma superioridade residual sobre o segundo fato mais significativo, a instalação da Câmara Regional do Grande ABC, que atingiu 74 pontos, ou seja, 41% do total. A disputa pelo título de acontecimento mais relevante do ano também envolveu o lançamento da campanha em favor de crianças e adolescentes, liderada pelo prefeito Maurício Soares, de São Bernardo, que alcançou 71 pontos, com 39,4% das indicações.
O Grande ABC fervilhava naquela segunda metade dos anos 1990. O Fórum da Cidadania foi lançado em 1994 para, inicialmente, incrementar o voto regional. Deu certo. Foram eleitos 13 deputados, entre estaduais e federais.
O item da pesquisa que mais recebeu pontuação como fato positivo depois do Fórum, da Câmara e da campanha Criança Prioridade 1 foi a criação de Secretarias de Desenvolvimento Econômico, com 53 pontos. Com 49 pontos, o quinto acontecimento mais relevante apontado pelos consultores foi a reconstituição e revitalização do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, o Clube dos Prefeitos, como batizei mais tarde a reunião dos sete prefeitos.
FATOS NEGATIVOS
Com 39 pontos, o sexto lugar foi garantido por novos investimentos comerciais na região. A política seletiva de impostos para incremento de variadas atividades e atração de investimentos alcançou 34 pontos e se classificou em sétimo lugar entre os temas mais significativos. Os outros três assuntos listados — convênio entre Estado, Prefeitura de São Bernardo e iniciativa privada para reativação da Vera Cruz, privatização do sistema de transporte coletivo em Santo André e São Bernardo e constituição do Fórum Permanente de Vereadores — não receberam votos.
Entre os fatos desabonadores da temporada — também expressos numa lista de 10 pontos –, a falta de ações para recuperar o sistema viário da região, sobretudo os acessos pela Avenida dos Estados e Via Anchieta, recebeu maciça adesão dos consultores de LivreMercado. Do total máximo de 180 pontos, foram alcançados 89, o que representou índice de 49,4%. Seis dos consultores apontaram a saturada malha viária como o mais problemático desafio da região.
A segunda maior votação entre os fatos negativos, com 74 pontos, referiu-se ao ritmo das reformas fiscais no Grande ABC, sem a sintonia fina com as transformações e ameaças que ocorriam nas montadoras de veículos. Dois consultores colocaram o assunto na ponta de preocupações. Outro assunto bem votado, com 58 pontos: o descuido das administrações públicas locais pela não prioridade do governo do Estado às obras do Rodoanel.
CIESP DIVIDIDO
Com 54 pontos cada, a demora e timidez nos ajustes estruturais e financeiros das Prefeituras do Grande ABC e a falta de atuação marcante dos deputados da região na Assembleia Legislativa e na Câmara Federal dividiram posição no ranking dos fatos negativos. Outro assunto que despertou relativo interesse dos consultores, e que representou 37 votos, referiu-se à não efetivação da Região Metropolitana do Grande ABC, ao contrário do que aconteceu com a Baixada Santista.
A lentidão do Grande ABC em estabelecer metas e ações para exploração do potencial turístico da região (com 15 pontos), a manutenção do divisionismo estratégico-institucional das diretorias regionais dos Ciesps (10 pontos) e a centralização administrativa do prefeito Luiz Tortorello, com domínio em várias organizações do Município (5 pontos), foram os outros temas que caíram em descrédito segundo os consultores. Apenas um assunto não recebeu voto — a manutenção da deficitária empresa de transporte coletivo de Diadema, provavelmente porque se tratava de tema estritamente municipal.
INSTITUIÇÃO TRANFORMADORA
Um workshop realizado no Sesi de Santo André, no início de novembro de 1997, procurou acrescentar faróis de milha às luzes do Fórum da Cidadania. Depois de três temporadas de atuação, quando iniciou rumorosa revolução político-institucional na região, a ponto de revitalizar o moribundo Consórcio Intermunicipal, de provocar o surgimento da Câmara Regional e de estimular a reativação do Fórum Permanente de Vereadores, o Fórum da Cidadania vivia situação paradoxal: estava em gradual processo de fortalecimento, mas a maioria das entidades que o compunham continuava tão frágil em representatividade como antes da iniciativa.
Esses elos quase todos fracos de uma corrente vanguardista como modelo de representatividade social precisavam se reciclar, como bem lembrou o jornalista Alexandre Polesi, diretor de redação do Diário do Grande ABC e integrante do Conselho Consultivo do Fórum.
Alexandre Polesi fez rápida e precisa retrospectiva histórica do Fórum da Cidadania, numa intervenção que serviu sobretudo para inocular a cultura da instituição nos representantes de entidades recém-filiadas. As novas filiações ao Fórum da Cidadania — quase 100 entidades e o coordenador-geral Marcos Gonçalves pretendia engrossar a lista com mais 200 — exigiriam sistemática pregação em favor da continuidade das decisões consensuais, espécie de cláusula pétrea que os novatos demoravam a compreender.
Tanto que foi preciso que o Fórum escalasse seus mais antigos colaboradores para discursar em favor das decisões unânimes. Os argumentos eram tão consistentes que os poucos focos de dissidência foram debelados rapidamente.
CLÁUSULA PÉTREA
A consensualidade estava para o Fórum da Cidadania como a polêmica para o Congresso Nacional. Só para que se possa compreender bem a questão, os objetivos eram distintos. Enquanto no Congresso, ou em qualquer Legislativo, a representatividade é fragmentada por interesses difusos, conflitantes e muitas vezes improdutivos, no Fórum só havia lugar para temário que atendesse indistintamente a todos os grupos corporativos e sociais que o constituam.
O conceito de consensualidade, entretanto, não vinha sendo utilizado de forma a permitir conveniências. Eventuais encaminhamentos de interesses específicos eram detectados de imediato pelos heterogêneos sensores das plenárias. A estabilidade de emprego do funcionalismo público não era privilégio que passasse pelo crivo do Fórum, por mais que o autor da proposta argumentasse. A campanha pela recuperação da Avenida dos Estados e o programa de arrecadação de 1% do Imposto de Renda para crianças e adolescentes, abraçado pela Câmara Regional, constituíam bandeiras do conjunto das entidades e como tal não encontraram dificuldades de aprovação.
Essa particularidade tornou o Fórum da Cidadania laboratório de democracia que só quem o frequentava com regularidade conseguia compreender. Não foram poucas as tentativas de inclusão de interesses específicos de uma categoria no selo de representatividade do Fórum. Não se poderia, entretanto, catalogar essas estocadas como oportunismo e má-fé deliberados. A melhor justificativa era que os vícios do corporativismo de um País forjado em guetos afloravam até mesmo em ambientes imunizados pela consensualidade.
RELAÇÕES TORMENTOSAS
O relacionamento do Fórum com os poderes constituídos ou informais, casos das Prefeituras, das Câmaras Municipais, do Consórcio Intermunicipal e da própria Câmara Regional, era tão confiável quanto a solidariedade entre corintianos e palmeirenses. A convivência estava geneticamente ameaçada. A matéria-prima do Fórum da Cidadania era o consenso, o suprapartidarismo, enquanto aquelas instituições, todas com envolvimento político-partidário, dependiam de votos para manter seus titulares.
A rivalidade e o cooperativismo compunham, dessa forma, uma sinfonia de ambiguidade intrínseca entre o Fórum e os setores públicos. O Fórum da Cidadania só existia no organograma informal de representações da região porque se descobriu, 40 anos depois da avalanche de investimentos econômicos a partir da indústria automotiva, que a classe política do Grande ABC viveu a mesma situação da moça triste da música de Chico Buarque de Holanda: ficou na janela, vendo a banda passar.
A banda do esvaziamento econômico e do embrutecimento social passou sem que as ufanistas autoridades públicas de plantão ao longo desse período se dessem conta de que uma bomba-relógio fora acionada. E o Diário do Grande ABC integrava essa partitura de descuidos. A Barcaça da Catequese e o Gataborralheirismo do Grande ABC se davam as mãos.
ÂNCORA INSTITUCIONAL
O Fórum da Cidadania era visto como espécie de âncora institucional do Grande ABC. A permanente sombra sobre os administradores públicos ganhava a forma de espada a ameaçar cabeças ainda reticentes à integração regional. A ciumeira que o Fórum da Cidadania provocava em determinados homens públicos era um sentimento contraditoriamente benéfico. Afinal, mexia com os brios de quem, por estar investido do cargo através de voto popular, se sentia ultrajado por ter que dividir os holofotes de temas sociais e econômicos com agentes informais. Daí, a reação de agir administrativamente para não dar espaços a críticas. Exatamente o que as lideranças do Fórum mais comemoravam.
Os três primeiros anos de Fórum da Cidadania foram centrados principalmente na atuação dos políticos, sobretudo dos Executivos municipais. O então coordenador-geral, Marcos Gonçalves, assegurava que outros gargalos seriam atacados. Durante o workshop naquele 1997, Marcos Gonçalves citou especificamente o Judiciário e as Polícias Militar e Civil como instâncias que precisariam ser igualmente observadas.
Marcos Gonçalves bateu forte numa instituição reconhecidamente aquém dos anseios da população, mas cometeu o equívoco de particularizar. Ou seja: ele cantou a música que a plenária do Fórum da Cidadania aprovou de imediato, mas errou no ritmo.
REAÇÃO CORPORATIVA
Essa interpretação acabou sufocada por estridente reação nas páginas do Diário do Grande ABC. O juiz e diretor do Fórum de São Bernardo, Alex Tadeu Zilenovski, entendeu como generalizadas as afirmações de Marcos Gonçalves O coordenador-geral do Fórum da Cidadania disse literalmente: “Os representantes do Judiciário ainda não foram contaminados pela necessidade de modernização, prestando serviço de péssima qualidade, de forma lenta e morosa, além de receber salários que estão além da realidade brasileira”.
O magistrado de São Bernardo contestou. Disse que faltou fundamentação a Marcos Gonçalves. “Esse senhor desconhece a realidade dos juízes, pois ninguém ganha muito”. E completou: “Um juiz paga Imposto de Renda, paga escola para os filhos, paga plano de saúde e paga carro como qualquer outra pessoa. Ou seja, não existe diferença entre os juízes e as demais profissões. Fico chateado com informações vazias”.
O juiz e diretor do Fórum de Santo André, Ricardo Pessoa de Mello Belli, também fez contestações a Marcos Gonçalves. “Ele deveria procurar se inteirar sobre inúmeras dificuldades estruturais que enfrenta esse Poder de Estado, pese o desempenho da maioria de seus componentes. Verificará assim, até por informações de entidades que integram o Fórum da Cidadania, que o Judiciário tem conhecimento de suas deficiências e que muito faz para superá-las” — afirmou.
REAÇÃO INTERNA
Até mesmo um representante do Fórum da Cidadania, o advogado Antonio Carlos Cedenho, presidente da subseção de Santo André da Ordem dos Advogados do Brasil, engrossou o coro de vozes discordantes contra Marcos Gonçalves. “O comportamento do coordenador foge ao espírito do Fórum” — diz um dos trechos de documento enviado ao comandante do Fórum da Cidadania.
Marcos Gonçalves pode ter sido precipitado, mas também foi corajoso porque tocou em feridas que estão abertas há muito tempo. Num artigo publicado no mesmo Diário, de 16 de novembro, 10 dias depois do bombástico workshop do Fórum, João Antunes dos Santos Neto, juiz de Direito em Santo André, listou série de problemas que o Poder Judiciário enfrentava e que justificariam, com sobras, o envolvimento da sociedade organizada.
O Fórum da Cidadania estava prestes a ingressar no quarto ano de atividades. Tudo começou em 28 de julho de 1994 na Fundação Santo André. Durante o lançamento do Manifesto do Grande ABC, um fortíssimo puxão de orelhas na classe política regional, o Fórum começou a se consolidar como nova instância de representatividade da região.
A caracterização como instituição só ocorreu em 16 de março de 1995, quando uma plenária de 64 entidades da sociedade civil decidiu formalizar a continuidade da mobilização pelo Vote no Grande ABC, iniciada exatamente um ano antes.
VOTE NO GRANDE ABC
A transformação do Vote no Grande ABC em Fórum da Cidadania, em julho de 1994, foi a salvaguarda encontrada contra as armadilhas de desmobilização embutida na intermitência da campanha em favor de votação nos candidatos da região, projetada para se repetir apenas quatro anos depois, exatamente em 1998.
Marcos Gonçalves era em 1997 o terceiro coordenador-geral eleito pela plenária do Fórum da Cidadania. Ele assumira o cargo em março e deveria ser substituído igualmente em março de 1998. O mandato era de apenas um ano e não comportava reeleição. O empresário e médico Fausto Cestari, diretor-titular da Regional do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) em Santo André, foi seu antecessor. O executivo privado Wilson Ambrósio da Silva, então presidente da Acisa (Associação Comercial e Industrial de Santo André), e executivo do Diário do Grande ABC, foi o primeiro coordenador-geral eleito pela plenária.
A eleição de Wilson Ambrósio e sua sucessão por Fausto Cestari obedeceram a sincronismo natural. Afinal, Wilson Ambrósio foi um dos líderes do movimento que culminou com o Vote no Grande ABC. Em 1993, ele se reuniu com outros presidentes de Associações Comerciais e Industriais da região, no caso Valter Moura (São Bernardo), Filipe dos Anjos Marques (Diadema) e Flávio Rodrigues de Souza (São Caetano), para debater inicialmente temários comuns das entidades. Sobressaia a questão da representatividade político-institucional, historicamente frágil.
ESPAÇO PARA TODOS
Foi o passo que faltava para deflagrar medidas de extensões que nem eles mesmos imaginavam. Fausto Cestari também acabou se envolvendo no movimento; nas reuniões seguintes foram sendo recrutados novos atores sociais e econômicos. Inclusive sindicalistas.
A região vivia momentos delicados. O esvaziamento econômico era latente mas pouco admitido. O sindicalismo não dividia a mesma mesa de reuniões com representantes do capital. O secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Carlos Alberto Grana, foi um dos primeiros a apoiar o movimento de integração. Profissionais liberais também foram requisitados.
O Fórum da Cidadania reunia 11 grupos de trabalho: Articulação Política, Educação, Meio Ambiente, Justiça, Planejamento Urbano, Criança e Adolescente, Desenvolvimento Econômico e Micro Empresas, Saúde, Cultura e Patrimônio Histórico, Segurança, Esportes Lazer e Turismo.
A relação de atividades era extensa. Ia da participação no Movimento Imigrantes Livre, contra a cobrança de pedágio nos acessos da Rodovia dos Imigrantes, ao seminário O Papel das Universidades no ABC, realizado no Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano).
As profundas mudanças nos então últimos 40 meses no Grande ABC, exatamente a partir do Fórum, levariam as lideranças da instituição a programar novo workshop no início do ano seguinte. A programação estaria fixada numa minuciosa reavaliação da Carta do Grande ABC, documento que traçou as linhas-mestras da atuação do Fórum.
ENFRAQUECIMENTO E SUMIÇO
Agora vem o estrago geral. O Grande ABC jogou na lata do lixo da imprevidência e do egocentrismo o maior movimento social de sua história. Mesmo sem ramificar-se profundamente na sociedade, o Fórum da Cidadania viveu trajetória singularmente incompreensível. Deixou escapar a nobreza dos primeiros anos e, nos estertores, desapareceu nas brumas do patético.
Apesar da disposição dos soldados que ficaram, a realidade era inegável: tratou-se de movimento que se descompôs, de um batalhão de esforçados combatentes sem armas contra o inimigo mortal da depauperação da qualidade de vida no Grande ABC.
Houve um abismo entre os recursos financeiros disponíveis e as prioridades específicas e genéricas impressas no documento assinado pelas entidades que lhe deram vida em 1994, ou porque sobreavaliou o poder político sempre mirrado de uma região historicamente marginalizada pelos governos estadual e federal. A pauta de prioridades listadas pelo Fórum da Cidadania, fruto de consulta às entidades inicialmente filiadas, combinava paixão pela utopia e desprezo pelo absolutamente necessário.
VÍTIMA DO SUCESSO
O Fórum da Cidadania foi vítima do próprio sucesso inicial. O lançamento da instituição em 1994, num momento em que o Grande ABC estava institucionalmente órfão, detonou transformações nos agentes políticos. O Clube dos Prefeitos , fundado em 1990, transmitia a sensação de que só esperava um buraco aberto para ser enterrado de vez. Os prefeitos eleitos em 1992 e que não participaram da fundação da entidade pouco se interessaram pela instituição.
A chegada do Fórum da Cidadania em 1994 mudou o ambiente institucional na região. Enciumados, os prefeitos Walter Demarchi, Newton Brandão, Antonio José Dall’Anese, Valdírio Prisco, José Carlos Grecco, José Teixeira e José de Filippi Júnior renegaram relações com lideranças de um movimento que os hostilizava. O Fórum da Cidadania incomodava.
Exatamente porque havia evidente grau de antagonismo com prefeitos majoritariamente conservadores, o Fórum da Cidadania das duas primeiras gestões, de Wilson Ambrósio da Silva e Fausto Cestari, se apresentou como paladino da regionalidade.
MAIS QUE METALÚRGICOS
A agitação em torno da nova entidade, principalmente nos dois primeiros mandatos, assegurava que a mobilização dos metalúrgicos liderados por Lula da Silva no final dos anos 1970, início dos anos 1980, perderia internamente em importância para a ressonância do Fórum da Cidadania.
Afinal, enquanto os metalúrgicos construíram história revolucionária nas relações entre capital e trabalho que, entretanto, não ultrapassava os limites corporativos da classe, o Fórum da Cidadania se apresentava como extracorporação, voltado ao conjunto da sociedade.
Não deixava de ser um paradoxo o fato de o Fórum da Cidadania romper os grilhões do corporativismo arraigadamente exclusivista. A situação contrariava completamente o conceito de que lideranças corporativas jamais deixariam de pensar e agir — afinal — corporativamente.
O deslumbramento do Fórum da Cidadania foi erro capital. Sem gerenciamento profissional recomendado a movimentos que se pretendam perenes porque voluntarismo é emocionante mas imprevidente, a entidade começou a sentir escapar pelos dedos a onda de catalização das lideranças.
A substituição anual do coordenador-geral, aplicando-se a democracia rotativa e demagógica de contemplar líderes de diferentes atividades, fragmentou a trajetória que se exigia fosse contínua. Principalmente porque o Fórum abdicou dos primeiros tempos de controle das plenárias exercido por um grupo de formuladores do projeto e caiu na gandaia de um democratismo improdutivo.
EXCESSO DE PAUTA
O transatlântico de representações corporativas que se enquadraram no formato dos projetos do Fórum da Cidadania começou a afundar em meio a tempestades de múltiplas demandas temáticas, geralmente pontuais. Como se fosse dotado de superpoderes e contasse com infraestrutura material e humana de uma grande empresa privada que costuma planejar e executar seguindo cronograma específico, o Fórum da Cidadania avocou para si problemas os mais variados. Com isso, enredou-se numa teia de compromissos sem a contrapartida de realizações.
Da pretendida reforma do Judiciário até o Banco de Ideias, passando por tantas outras propostas às vezes megalomaníacas que jamais foram convertidas em práticas, o Fórum da Cidadania esqueceu a lição de casa de recorrer à releitura da Carta do Grande ABC e à série de propostas para reconstruir uma região que já dava sinais de exaustão. Quis salvar o País e se esqueceu de suas próprias obrigações diante da realidade à vista de todos.
Com aval editorial do Diário do Grande ABC até por volta do ano 2000, o Fórum da Cidadania perdeu a sensibilidade de identificar falhas na arquitetura teórica e prática das propostas. As discordâncias sobre o modelo de concepção do Fórum da Cidadania eram abafadas. Não convinha expor publicamente, especialmente por agentes políticos, o quanto o Fórum da Cidadania causava de inquietação como possível instrumento político-eleitoral paralelo.
NOVOS PREFEITOS
As hostilidades entre integrantes do Fórum da Cidadania e os prefeitos eleitos em 1992, entretanto, mal se disfarçavam. Tanto que no lançamento da entidade nenhum chefe de Executivo participou da festa. A ideia de que o Fórum da Cidadania era a oitava maravilha do mundo se solidificou nos dois primeiros anos. O roteiro começou a se alterar a partir de 1997. Novos prefeitos passaram a ocupar os Paços Municipais. Especialmente Celso Daniel, Maurício Soares e Luiz Tortorello que, em 1988, eleitos prefeitos pela primeira vez, construíram coletivamente o Clube dos Prefeitos, oficialmente Consórcio Intermunicipal. Eles voltariam para revitalizar o Consórcio, incomodados pelas pressões do Fórum da Cidadania.
A competição institucional se instalou no Grande ABC. O Fórum da Cidadania fez o Clube dos Prefeitos ressurgir com toda força. A criação da Câmara do Grande ABC em 1997 — espécie de associação entre Consórcio de Prefeitos e Fórum da Cidadania com a participação tripartite do governo do Estado — moldava um Grande ABC dos sonhos. Anos férteis se previam.
A derrocada do Fórum da Cidadania que começou com o deslumbramento precoce vinculado ao voluntarismo gerencial alcançava um terceiro vértice: a perda do sentido de criticidade. Isso aconteceu a partir da aproximação incontida de suas lideranças e de vários liderados dos agentes políticos e assessores técnicos da Câmara Regional e do Consórcio de Prefeitos.
O Fórum da Cidadania perdeu a modéstia de entender que seu peso como instrumento de pressão se esfacelaria na medida em que, a título de colaboração, se juntasse aos tomadores de decisão. Ao deixar a função animadora do processo de transformações para juntar-se à operacionalidade prática, o Fórum da Cidadania submergiu. Sobretudo porque não contava com peças de reposição para manter acesa a chama e mesmo a independência nas assembleias. Antes disso, entrou no desvio da quantidade acima da qualidade.
Elevou excessivamente o número de associados. Foi assim que o Fórum da Cidadania perdeu de vez o foco já pouco luminoso. As assembleias eram torres de Babel.
COOPTAÇÃO GERAL
Como desgraça pouca é bobagem, vários representantes de importantes entidades acabaram se afastando das plenárias, irritados com a falta de resultados que já se pronunciava e também porque acabaram seduzidos pelos novos prefeitos para exercer atividades públicas. Sem contar aqueles que se dispersaram ao encontrarem barreiras para ascenderem na hierarquia informal.
O gradual esvaziamento das plenárias nos tempos de Marcos Gonçalves — paradoxalmente motivado pelo excesso de participantes e também pelo esgarçamento temático — foi acentuado na gestão seguinte do arquiteto Silvio Pina não apenas pouco habilidoso em administrar conflitos como pródigo em industrializá-los.
Não foi só. Ao Fórum da Cidadania também faltou jogar limpo a questão político-eleitoral. Trabalhou-se o tempo todo nas assembleias que o movimento era suprapartidário e que a discussão político-partidária não teria espaço porque feriria o regulamento. Quando Marcos Gonçalves e Fausto Cestari anunciaram candidaturas a deputado federal e deputado estadual em 1998, uma bomba caiu na cabeça de muitos associados. Eles se sentiram traídos por duas lideranças que sistematicamente negavam qualquer interesse pelas urnas partidárias.
SENTIMENTO DE TRAIÇÃO
Certamente o efeito seria outro se o Fórum da Cidadania, que nasceu esmurrando a classe política, fizesse da transparência mandamento sagrado. Se já havia um coquetel de razões para a entidade provocar desconfianças, o sentimento de traição se tornou letal. Nem Marcos Gonçalves nem Fausto Cestari se elegeram. Pior: ficaram muito distantes dos votos necessários para conquistar cadeiras de parlamentares.
Daí derivou outra constatação desagradável aos deslumbrados que acreditavam nos poderes miraculosos do Fórum da Cidadania: o movimento não conseguiu enraizamento social que permitisse acalentar o sonho de ter representantes no Legislativo estadual e federal.
Dois anos depois o também ex-coordenador Silvio Pina decidiu testar a popularidade ao candidatar-se à Prefeitura de Santo André. Celso Daniel recebeu mais de 250 mil votos, o forasteiro Celso Russomanno chegou a 80 mil e Silvio Pina a míseros 15 mil.
Na edição de fevereiro de 1999, escrevi para a revista LivreMercado análise sobre o Fórum da Cidadania com o título “Um pato que vai voltar a ser fera?”. Tudo porque pato anda, pato nada, pato voa, pato corre, mas não executa nenhuma dessas tarefas com competência porque troca o foco pela dispersão.