O Diário do Grande ABC afirmou na edição de sábado, em Editorial, que não existe correlação intestina entre Grande ABC, ou particularmente São Bernardo, e o berço do Partido dos Trabalhadores. Vou repetir para não que não exista dúvida do leitor: Grande ABC como berço do PT é balela histórica. O Diário do Grande ABC refuta todo o acervo do Diário do Grande ABC e da mídia nacional e internacional. É por conta disso que escrevo hoje sobre o assunto.
A questão é muito mais ampla que uma simples escorregadela (escorregadela ou algo mais grave?) manifestada pelo Diário do Grande ABC em haraquiri informativo e analítico. Trata-se de oportunidade mesmo que tangencial para colocar em ordem a prateleira de importância do PT nas políticas públicas da região.
Duvidar, quando não negar, que o PT tem origem em São Bernardo, com o movimento sindical iniciado ainda nos anos 1970, próximos dos anos 1980, equivale a afirmar que Cabral não descobriu o Brasil e tantas outras obviedades que qualquer criança do Ensino Fundamental conhece de cor e salteado.
Segue a fórmula que encontrei para esclarecer uma situação que dispensaria qualquer tipo de contraditório, mas que, paradoxalmente, se apresenta como oportunidade de ouro como ponto de partida em direção a algo que parece estar cuidadosamente escondido e que merece atenção. Tudo parecer convergir para o andar da carruagem da regionalidade de um Grande ABC que jamais ou quase nunca honrou as calças de integração para valer. Dividi o Editorial do Diário do Grande ABC em vários compartimentos entremeados por intervenções. O Editorial do Diário do Grande ABC segue abaixo do título “Berço petista?” – e as respectivas contraposições.
DIÁRIO DO GRANDE ABC
A ideia de que o Grande ABC seria o berço petista ainda persiste no imaginário nacional, apesar de não refletir a diversidade política da região há bastante tempo.
CAPITALSOCIAL
O enunciado do Diário do Grande ABC é um descalabro histórico porque agride o passado e o presente e, mais que isso, renega os arquivos do jornal que, ao longo dos tempos, centenas de vezes, repetiu o bordão “berço petista” ao se referir ao Partido dos Trabalhadores e particularmente a São Bernardo como espécies de almas siamesas político-trabalhistas.
Temos um caso de demência editorial explícita a merecer do jornal, a bem da história do próprio jornal, um pedido de desculpas no mesmo espaço com chamada de primeira página para que se esclareça de vez a barbeiragem. Talvez uma sessão de psiquiatria editorial, com a participação de pelo menos meia dúzia de especialistas, desse resposta cirúrgica à loucura cometida.
Qualquer busca na Internet, e não é precisa esforço algum, registrará às dezenas matérias e editoriais do Diário do Grande ABC avalizando – nem poderia ser diferente – uma verdade de domínio público. Mais que isso: não existe mídia brasileira ou mesmo internacional que, ao se referir ao nascedouro do Partido dos Trabalhadores, não remeta a origem ao Grande ABC e, particularmente, a São Bernardo.
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De fato, o movimento sindical que impulsionou a criação do Partido dos Trabalhadores nos anos 1980 encontrou solo fértil nas sete cidades, especialmente em São Bernardo, onde lideranças trabalhistas ganharam projeção. No entanto, associar a identidade local exclusivamente a uma corrente partidária é um reducionismo.
CAPITALSOCIAL
Quem reduz a identidade de São Bernardo ou do Grande ABC como um todo exclusivamente a uma corrente partidária é o Diário do Grande ABC, contrariando integralmente o Diário do Grande ABC do passado. De fato e historicamente jamais o reconhecimento óbvio de berço petista na algibeira do sindicalismo cutista sugeriu a quem quer que fosse que São Bernardo e o Grande ABC só contavam ou contam com uma única corrente partidária ou ideológica. Fosse assim, tanto no campo político quanto partidário não haveria organizações que disputam cada voto com intensidade e compõem com o PT uma arquitetura continuada de democracia.
O avançar do petismo no Grande ABC como um todo foi eleitoralmente mais lento que na vizinha Diadema, por exemplo, mais vermelha que o vermelho de São Bernardo e dos demais municípios. Diadema foi a primeira cidade da região e do Brasil a consagrar um prefeito petista. E reina quase absoluta ao longo de quatro décadas. Mas os demais municípios, exceto São Caetano, contaram com gestões petistas em proporções quase iguais a dos demais partidos ao centro ou à direita.
O Diário do presente cometeu um equívoco estrondoso ao se embaralhar na tentativa de refugar os efeitos políticos em nome de uma suposta falsa hegemonia petista. O fato de ser reconhecidamente o berço do petismo não faz do Grande ABC (e particularmente de São Bernardo) uma região completamente vermelha. E, muito menos, como afirmou o Diário do Grande ABC de sábado, uma região não petista e falsamente dominada pelo petismo. De fato, o Grande ABC quase inteiro, exceto São Caetano, é uma cidadela historicamente dividida entre o vermelho petista e o azulado tucano, até mesmo por influência do governo do Estado, dominantemente azulado, ou partidos que já viraram pó, como o PTB de Newton Brandão em Santo André.
Portanto, o reconhecimento de que tucanos e aliados circunstanciais dominaram a cena política estadual ao longo de três décadas, inclusive na ocupação média dos municípios da região, não os qualificam como participantes exclusivos nas lutas políticas e partidárias, embora fossem mais prevalecentes do que os petistas na região, inclusive em São Bernardo.
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Tal conduta, mais do que leitura histórica, tornou-se um rótulo que vem sendo usado para dificultar a articulação do bloco com esferas superiores do poder quando o partido em questão não está no comando dessas instâncias.
CAPITALSOCIAL
Esse trecho do Editorial do Diário do Grande ABC de sábado provoca labirinto interpretativo. É uma mal-ajambrada interseção de palavras e sentidos que parece não levar a lugar algum.
Por isso, talvez mesmo o melhor seja tentar entender o conjunto de palavras chamando a atenção à periculosidade interpretativa. Sugere-se, pretensamente, que a atual governança regional em forma de Clube de Prefeitos estaria encontrando obstáculos nas instâncias superiores de poder para desenvolver articulações.
Entretanto, como o prefeito Marcelo Lima, prefeito dos prefeitos do Clube dos Prefeitos, tem ido constantemente a Brasília e sempre volta com sorrisos e boas notícias de potenciais investimentos, além de frequentemente flagrado com petistas de carteirinha, inclusive com lideranças sindicais, sobrepõe-se, agora sim, uma interrogação mais que legítima.
Ou o Editorial do Diário faria referência a eventuais dificuldades de Marcelo Lima na relação com o governo do Estado que, também, pelo andar noticioso das relações, estaria em plena forma positiva? Repeti a leitura do trecho acima do Editorial do Diário do Grande ABC e não encontrei saída senão a especulação.
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Essa leitura simplificada não encontra respaldo na realidade política das últimas décadas. Desde o início dos anos 2000, o PT não ocupa, de forma majoritária e simultânea, os Executivos Municipais. Em seu auge, o partido administrou cinco das sete cidades, mas por curto intervalo. Hoje, governa apenas uma, Mauá. Posteriormente, o PSDB chegou a governar quatro prefeituras ao mesmo tempo – sem que, por isso, a região passasse a ser chamada de tucana. Essa comparação evidencia a inconsistência do estigma. A rotulagem parte de critérios seletivos que ignoram a alternância de poder característica do Grande ABC, onde diferentes grupos políticos disputam espaço democraticamente.
CAPITALSOCIAL
O raciocínio do editorialista do Diário do Grande ABC é mais uma vez manquitola, porque insiste equivocamente em tomar a parte pelo todo para construir uma fantasia. A parte é a realidade irrebatível de que a região é o berço do PT. Qualquer sociólogo mais ou menos competente sabe disso. O todo é extrapolar essa realidade ao conjunto do quadro político-partidário da região. Fosse assim, as eleições municipais seriam dispensáveis.
Uma leitura ainda mais atenta para desembaralhar o novelo de contradições do Editorial coloca a bomba da criação desse suposto fantasma petista a atrapalhar a vida dos adminit5adores municipais (é disso mesmo que se trata, ou não?) em sentido inverso. Ou seja: há tantas provas de diversidade do ambiente político-partidário na região que qualquer sugestão que veja o PT por todas as partes como fonte maligna não passa de alucinação. Talvez a medicina chame isso de paranoia, no caso uma paranoia seletiva no tempo de exposição e de pretenso e aparentemente enigmático apontamento de uma fonte responsável e por isso mesmo potencial objeto de caçada editorial.
Já o critério municipalista de negação e desqualificação da participação dos petistas da região é dissolvido instantaneamente pela matriz mais confiável de aderência ideológica de disputas federais, que concentram a atenção dos eleitores. Vou explicar.
Disputas municipais reúnem grau menos detectável de influências ideológicas porque temáticas locais têm peso superior na grade de avaliação decisória dos eleitores. O PT sempre foi exceção na região, principalmente, dada a origem nos chãos de fábrica com os movimentos trabalhistas. Disputas federais são cada vez mais definidoras do ambiente político-ideológico nacional. Um petista menos convicto pode votar em candidato conservador para prefeito ou outro cargo municipal. Já na disputa nacional, é improvável que o faça com a mesma flexibilidade. A polarização do País já há vários pares de ano prova isso.
Nesse ponto, entre o resultado geral para a presidência da República no Grande ABC que começa com a vitória de Lula da Silva em 2002 e termina com a vitória do mesmo Lula da Silva em 2022, o PT do Grande ABC perdeu numa comparação ponta a ponta 16% dos votos, mas se manteve majoritário no resultado final de cada uma das seis eleições, menos na derrota de Fernando Haddad. E os resultados foram acima dos números médios do Estado de São Paulo e do Brasil como um todo.
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A consequência desse estigma é o afastamento de investimentos e políticas públicas essenciais. Ao ser percebido por alguns setores como alinhada a determinado partido, a região corre o risco de ter interlocução comprometida com gestores estaduais e federais de orientações distintas. Esse tipo de leitura sectária desconsidera a relevância econômica e social das sete cidades e perpetua ideia que prejudica seu desenvolvimento. É hora de superar simplificações e reconhecer o Grande ABC como território plural, estratégico e merecedor de tratamento institucional isento de preconceitos. Não cabe mais etiquetar bloco tão diverso com rótulos que restringem sua atuação e limitam seu protagonismo.
CAPITALSOCIAL
Agora sim, nos trechos finais, o Editorial do Diário do Grande ABC sai da casamata da incompreensão ou da abertura de brechas a interpretações variadas para ingressar no mar revolto da perplexidade. Afinal, o que parece expor como linha avaliativa do quadro político regional é a suposição de que o histórico protagonismo compartilhado com os azulados de várias matizes tornaria o berçário petista um estorvo de natureza diplomática.
É difícil explicar com clareza o que é sobretudo turvo como matéria-prima, no caso o Editorial. A margem de manobra é estreita e tanto pode levar à garantia de um acostamento argumentativo seguro quanto à ribanceira de uma pixotada avaliativa. Mesmo assim o Editorial do Diário do Grande ABC de sábado está recomendando um desfecho inacreditável para quem lida com fatos.
O que quer afinal o Editorial do Diário do Grande ABC de sábado que nega uma história inteira do Diário do Grande ABC e de tantas outras publicações nacionais e internacionais?
Ora, o Diário do Grande ABC do presente quer que se rasgue e jogue no lixo não só o passado documentado e provado como também o presente documentado e provado de que há múltiplas forças político-partidárias na região que, tanto no passado quando no presente, desembocaram em duas vertentes de blocos em busca de manter ou de chegar ao poder.
Antes da polarização nacional eram petistas contra o resto. Agora, com a polarização, é petistas versus bolsonaristas, como dose muito mais acirrada de competição. Se não encontrei o fio da meada desse negacionismo hilariante talvez seja porque devo estar com desarranjo cognitivo. Ou o leitor, consumindo o que consumiu ao ler o Editorial do Diário do presente em oposição ao Diário do passado encontrou algo que pudesse dirimir dúvidas sem dar conta de que a porta escancarada da contradição e da idealização ingênua não é a primeira e única explicação?
Para completar, não custa lembrar que a dar vazão ao novo arbitramento do significado do PT no Grande ABC, negando-se o berçário sindicalista e tudo o que se viu ao longo dos anos, o Editorial do Diário do Grande ABC nega outro fato histórico. Trata-se do seguinte: peguem os últimos 50 anos da região e de todos os municípios locais e verifiquem que o período mais próspero (por motivos que não cabem repetir) se registrou durante os oito anos dos dois primeiros mandatos de Lula da Silva em Brasília. O Grande ABC recuperou parte da fortaleza industrial destruída durante os oito anos anteriores do presidente Fernando Henrique. Mas, a bem da verdade e também em consequência do governo de gastança de Lula da Silva, a sucessora Dilma Rousseff lançou a região no período mais tétrico da história. Já quanto aos governos tucanos, o Grande ABC sofreu o pão que o diabo amassou durante três décadas. Tudo comprovado nas estatísticas. A pior das heranças econômicas chama-se Rodoanel Mario Covas, que deslocou o eixo de Desenvolvimento Econômico já mambembe da região em direção à Grande Osasco-Barueri.
Conclusão das conclusões: o Grande ABC é o berço do Partido dos Trabalhadores, o Partido dos Trabalhadores continua fortemente representado no xadrez político-eleitoral e contempla sucessos e insucessos econômicos e sociais tanto quanto os partidosconservadores com os quais divide a cena regional pós movimento sindical.