O médico Drauzio Varella me consagrou hoje na Folha de S. Paulo, em artigo que trata da indústria do fumo. O famoso cancerologista me consagrou não apenas porque alimentou uma bateria de paralelismo entre o incentivo matreiro ao consumo dessa fonte destruidora da saúde e os falsários que ao longo dos tempos fingiram tratar da regionalidade do Grande ABC.
Drauzio dá ao artigo um tom de irritabilidade, exasperação, indignação e revolta semelhante ao que aqui expresso no meu canto ao tratar de questões que influenciam o futuro de quase três milhões de habitantes.
O que quero dizer no fundo de minha alma ao dizer que Drauzio Varella me consagrou tem o seguinte significado: se ele, um homem calmo, diplomático, atencioso, perde a linha quando trata de assunto tão importante, por que este jornalista, pessoalmente um homem de paz, de tranquilidade, não pode, como profissional, exasperar-se diante das nulidades que encontra no ambiente do Grande ABC?
COMPARAÇÃO PROCEDENTE
Vou fazer o seguinte para que o entranhamento entre regionalidade e indústria do fumo seja mais efetivo à compreensão dos leitores: reproduzirei o artigo de Drauzio Varella (entre parênteses e em negrito), intermediado por algumas colocações sobre a regionalidade marota do Grande ABC. Combinado?
O título do artigo de Drauzio Varella na Folha de S. Paulo de hoje é: “Continuam o mesmos”. A linha fina e complementar diz o seguinte: “A indústria do fumo comete o maior crime do capitalismo desde a Primeira Guerra Mundial”.
Caso o texto que estou produzindo fosse levado à equiparação com o material de Drauzio Varella, seria mais ou menos o seguinte: “Continuam os mesmos”. E a linha fina: “A indústria da regionalidade é uma farsa do Estado Municipal incompetente e procrastinador”.
Vamos então intercalar o artigo de Drauzio Varella e algumas novas considerações deste jornalista sobre regionalidade. Repito: há uma identidade irreparável entre uma coisa e outra quanto ao tom crítico, ao inconformismo, à indignação. Repito outra vez: Drauzio Varella me deu um novo fôlego a continuar essa saga de regionalidade legítima nos pressupostos que canso de apresentar, contrário a esse modelo de trambicagem metodológica que estamos vivendo.
(Pasmem senhoras e senhores, a indústria do tabaco está preocupadíssima com a saúde pública. Depois de décadas ganhando fortunas com a venda de um produto cuja fumaça causa sofrimento e milhões de mortes, agora está interessada em vender cigarros eletrônicos como estratégia de redução de danos. Dá para acreditar? Em entrevista à Folha, o CEO da Philip Morris, fabricante do Marlboro, teve a desfaçatez de afirmar sobre os eletrônicos: "Esses produtos precisam ser adotados por fumantes adultos, e essas pessoas precisam migrar para eles a fim de criar a equação de redução de danos do tabaco. Então, agora temos a ciência, temos o produto, temos a vontade". É preciso muito cinismo para dizer que os fumantes adultos precisam migrar para os eletrônicos quando ele está cansado de saber que os eletrônicos se disseminam entre crianças e adolescentes, muitos dos quais jamais fumariam cigarros comuns).
Perder a paciência com o rumo da regionalidade no Grande ABC é meu esporte favorito, por mais contraditório que a frase possa sugerir. Já estou acostumado a levantar cedo e, jornais de papel, jornais digitais, encontrar barbaridades em forma de omissão ou ação. Na safra atual de prefeitos regionais, ou seja, prefeitos que estão no Clube dos Prefeitos, não sobra um, um ao menos, que me estimule a acreditar numa toada diferente do que assisto há mais de duas décadas. Fizeram muito barulho nos primeiros dias de prefeitos municipais, autoproclamando-se diferenciados como prefeitos regionais, e o que temos além do cronograma de atividades é uma cada vez maior conversão ao municipalismo. Nenhuma novidade nesse comportamento negacionista ao que tanto propagaram. Não é a primeira vez nem será a última que prefeitos municipais desistem de postura de prefeitos regionais.
(Que ciência é essa à qual ele se refere? A uma pesquisa sobre tabaco aquecido patrocinada pela própria Philip Morris, que há décadas se empenha em arregimentar multidões de dependentes de nicotina. Não foi à toa que o Comitê Europeu de Controle do Tabaco concluiu: "Pesquisas independentes mostram que os produtos de tabaco aquecido emitem níveis substanciais de nitrosaminas cancerígenas específicas do tabaco, bem como substâncias tóxicas e irritantes e potenciais carcinogênicos". O CEO prossegue: "A ciência hoje mostra que produtos de nicotina sem combustão são uma alternativa muito melhor do que cigarros...". É mentira, não existe um só estudo prospectivo, randomizado, que tenha feito essa comparação.)
O mais lamentável mesmo e que me faz repensar o quanto é melhor a omissão do que a ação regionalista é que quando abrem a boca para falarem do suposto entrosamento entre os sete municípios, mais aprofundam o buraco entre perspectivas concretas e propagandismo ufanista. Tanto é verdade que há mais de seis meses essa turma está no Clube dos Prefeitos e a rotina do passado inútil foi severamente preservada. Ou seja: o que temos é uma nova etapa de inutilidade. Vender a regionalidade com fraseologias demagógicas mais que manjadas pelo distinto público é um permanente ato de lesa-região, porque sugere que soluções viriam e o que vem de fato são problemas. Quando alguma coisa acontece na avenida de realizações, depois de longa jornada de espera, fazem estardalhaço. Não têm os prefeitos regionais autocrítica e conhecimento recomendável a estarem na linha de frente de decisões. E não contam com retaguarda técnica de gente qualificada. A distribuição de cargos obedece a critérios de compadrismos e partidarismos. A intensidade com que essa gente se dedica a especulações e promessas corre a mesma raia do oportunismo inócuo.
(Diz ainda que os atuais fumantes de eletrônicos consomem produtos ilegais: "Esses produtos não são controlados, não têm controle sanitário, não têm controle de qualidade, não têm controle comercial”. Esse senhor deve pensar que está falando com imbecis. Controle de qualidade de um produto tóxico, cancerígeno, que causa a mais avassaladora das dependências químicas? Seguindo esse raciocínio enviesado, deveríamos entregar a produção e o comércio de outros produtos tóxicos causadores de dependência, como cocaína, crack e K9, para a empresa em que ele trabalha produzi-los com qualidade superior? A estratégia da indústria do fumo é antiga. Desde a Primeira Guerra Mundial essa gente vem cometendo o maior crime da história do capitalismo mundial (excetuada a escravidão). Enquanto lhes foi permitido, usaram os meios de comunicação de massa para associar ao cigarro a imagem de um "hábito charmoso" adotado pelas mulheres mais lindas do cinema e por homens como o cowboy do Marlboro —que, aliás, morreu de câncer de pulmão).
Não sei até que ponto esticarei a corda do evangelismo da regionalidade. Afinal, não encontro na praça, na mídia da praça, um único exemplar de parceria. É uma luta solitária porque conta com pelo menos duas ramificações.
A primeira é que, infelizmente, não temos mesmo gente da mídia que conheça vetores essenciais da disciplina de regionalidade. Segundo porque gente da mídia em larga escala da mídia não quer se opor aos grupos políticos e econômicos que exercem o controle da sociedade que se imagina livre e democrática. O controle social por um grupo reduzido de mandachuvas e mandachuvinhas entorpece a potencial capacidade de reação da sociedade que, os números são mais que comprovados, perde qualidade de vida a cada nova temporada. Ou seja: o Grande ABC está entregue a gentes sem qualquer interesse coletivo, exceto na busca de votos cada vez mais doutrinados a seus próprios umbigos imperialistas.
(Desde a década de 1950 os cientistas sabiam que o cigarro causava câncer, mas a informação não chegava à sociedade porque a indústria controlava a imprensa a peso do ouro, que era investido nas campanhas publicitárias. A relação do fumo com ataques cardíacos, AVCs e outras doenças cardiovasculares foi escondida até os anos 1990. Se eles agora reconhecem que o cigarro é um produto tóxico, é preciso ser primeiro colocado em campeonato de ingenuidade para acreditar que seria em benefício da saúde pública. Na verdade, as campanhas de esclarecimento realizadas por organizações governamentais, pelos meios de comunicação e, especialmente, pela TV reduziram o cigarro ao que ele realmente é: um vício cafona, que causa dependência química e dá hálito repulsivo e mau cheiro no corpo, nas roupas e nos cabelos das mulheres. A educação fez a prevalência do fumo cair na maior parte do mundo. Entre nós, os resultados obtidos são considerados um exemplo pela Organização Mundial da Saúde. Nos anos 1960, quando comecei a fumar, a prevalência do cigarro em pessoas com mais de 15 anos era cerca de 60%, número que hoje beira 10%).
O sentimento de orfandade regional não é um departamento ligado à subjetividade sensorial. É realidade de fato, mensurável e constatável. Não existe enrolação. O persistente desmonte da riqueza regional na esteira de uma indústria fugidia e de um setor de serviços sem valor agregado somente poderia encontrar obstáculos se houvesse uma atmosfera de inconformismo, de combate aos obstáculos, mas isso não interessa a quem tem cartas nas mangas de como reinar em meio ao desastre. O pensamento crítico no Grande ABC é punido severamente com perseguições. Os medíocres tomaram conta do barraco estatal e também em inúmeros organizações sociais. A submissão ganha frondosas raízes porque cálculos simplórios indicam que é melhor ceder a enfrentar. Dessa forma, todos estão no mesmo barco furado quando o futuro é a linha de chegada.
(O que o CEO não confessa na entrevista é a razão pela qual seus patrões querem que a Anvisa aprove os eletrônicos. Para melhorar a saúde da população? Não sejamos ridículos. Uma indústria que até hoje vive à custa da dependência de nicotina e de disseminar as piores doenças que a medicina conhece de repente vai lutar pela saúde dos fumantes que ela mesmo estimulou a cair nas garras da nicotina desde a infância? Não se iluda, caríssima leitora, o que essa gente pretende é viciar seu filho, é utilizar a rede de vendas que expõe maços de cigarros em todos os botequins dos quatro cantos do país).