Peguei uma bucha de canhão em julho de 2004 ao assumir a direção de Redação do Diário do Grande ABC em meio às disputas eleitorais municipais. Especialmente a disputa em Santo André. A candidatura do ex-prefeito Newton Brandão, 14 anos à frente do Executivo, opunha-se à do prefeito João Avamileno, que em 2002 herdou o cargo de Celso Daniel, de quem era vice-prefeito.
Como se sabe, Celso Daniel foi assassinado por bandidinhos pés-de-chinelos. Esse era um ingrediente incandescente na corrida pelo Paço Municipal, A temporada em busca de votos foi temperada de guerrilhas. A versão de crime vinculado a propinas no Paço Municipal foi exaustivamente utilizada pela oposição ao petista João Avamileno. Diferentemente do ambiente estadual e nacional. PT e PSDB fizeram um acordo e as campanhas eleitorais omitiram a morte do prefeito. Já expliquei as razões que levaram a esse encontro de águas interesseiras. João Doria, mais tarde, acabou com o Teatro de Tesouras.
Os conservadores de Santo André queriam tomar o Paço Municipal a todo custo. Na disputa anterior, em 2000, quando Celso Daniel foi eleito com recorde de votos que se mantém até hoje, o desespero por um resultado diferente era tão escandalosamente explorado que a chamada Frente Andreense importou a candidatura do deputado federal Celso Russomanno.
DISPUTA ACIRRADA
O paulistano midiático que fez fama em nome de consumidores enganados e que enganou a Lei Eleitoral com uma farsa de domicilio eleitoral maroto, perdeu o rumo e o prumo diante de um Celso Daniel que vivia naquele 2000 auge da forma intelectual e administrativa.
Celso Daniel foi o prefeito mais exuberante da história regional. Um ponto completamente fora da curva. De uma curva de múltiplas tranqueiras.
Santo André fervia de interesses variados. Havia um jogo jogado de situação e oposição que, fosse traduzido a um campo de futebol, lembraria um desses clássicos imperdíveis. Bem diferente, portanto, dos últimos tempos, em que o jogo tem sido disputado por apenas uma equipe. A outra não passa de protocolo legal. E chamam isso de democracia. É preferível a polarização nacional do que o imperialismo local.
O que os leitores vão ler em seguida são dois textos que preparei durante o segundo turno das eleições em Santo André naquele 2004. Foram textos publicados na coluna que assinava no Diário do Grande ABC. Jamais aceitei deixar de escrever frequentemente, ocupasse ou não cargo de direção. Jornalista de redação de jornal e revista que não escreve regularmente não é jornalista. É um burocrata editorial.
DOIS TEXTOS ALEGÓRICOS
Lancei mão de alegorias para levar aos leitores o ambiente da disputa. A Redação do Diário do Grande ABC passou a ser o palco eleitoral. Não faltavam advogados da campanha de Newton Brandão a interferir no processo editorial. Sobretudo por conta de pesquisas eleitorais que o jornal publicava regularmente. Havia recorrente intervenção ao impedimento dos resultados. A campanha de Newton Brandão obstou vários resultados. Só não impediu que os resultados pesquisados se refletissem nas urnas.
Quando assumi a Redação do Diário do Grande ABC 20 anos depois de ter ocupado cargo semelhante no mesmo jornal, e 14 após ter criado a revista de papel LivreMercado, encontrei o contrato de pesquisas eleitorais sob a responsabilidade do Instituto Brasmarket. Se chegasse antes, teria recomendado que o contrato fosse assinado também.
Por mais que já desconfiasse de pesquisas eleitorais, aquelas pesquisas eleitorais da Brasmarket sempre me pareceram confiáveis. Bem mais confiáveis que os argumentos fajutos da campanha de Newton Brandão para melar a publicação das rodadas eleitorais. O único reparo que fiz aos dirigentes do Instituto Brasmarket é que os resultados de cada rodada fossem entregues diretamente a mim e que mais ninguém, inclusive da diretoria, recebesse o material. Havia um espalhamento de resultado reais e falsos a cercar cada publicação. Talvez por essa razão, também, a turma jurídica de Newton Brandão estivesse tão acesa.
SENTENÇA DEFINIDORA
O resumo da ópera do que você vai ler em seguida é o seguinte: não permiti, juntamente com minha equipe mais próxima de definições editoriais, que a campanha de Newton Brandão conseguisse o que tanto pretendia: no domingo da disputa do segundo turno, 30 de outubro, o Diário do Grande ABC estamparia como manchete de primeira página uma decisão do juízo eleitorais local que praticamente definiria o resultado da disputa.
A sentença, em forma de notícia, mas seguindo à risca o teor da sentença, era uma decisão condenatória em primeiro grau que não resistiria a um sopro sequer de segundo grau, mas, publicada no dia do segundo turno, transformaria a corrida eleitoral em fraude democrática. Afinal, induziria o eleitorado que ainda não se definira ou se definira sem convicção por um determinado candidato a bandear-se de mala de votos e cuia de urnas ao beneficiário da manchetíssima do jornal.
A decisão de enfrentar a Justiça Eleitoral foi minha, sem consultar qualquer diretor ou acionista da empresa. Até porque não os tinha naqueles momentos decisivos como parceiros de deliberação. Possivelmente eles confiavam no meu taco de resiliência. Ou preferiram largar a bomba em minhas mãos?
Estava defendendo a publicação na essência da credibilidade a ser preservada e também a honra da Redação. Não admitia passar para a história do jornal como o diretor de Redação que capitulou diante de invasores. Sei que entrei de gaiato de jornalismo no navio de atravessadores políticos e jurídicos impetuosos. Não havia outra saída. Ou os enfrentava ou consumiria para o resto da vida um sentimento de patetice.
JORNALISMO SALVO
Sei que sei que tempos depois me chegou uma correspondência informando que a Justiça Eleitoral me cobrava uma senhora multa por ter feito o que fiz. Não sei o que deu aquela encrenca. O endereçamento era equivocado. Não havia delito a provocar a multa pretendida e também não respondia juridicamente pela empresa. Estava simplesmente cumprindo uma obrigação profissional, ética e moral.
Aquela decisão em primeira instância na Justiça Eleitoral de Santo André não passava de uma pedra deliberadamente colocada no caminho para interferir no resultado de maneira delituosa.
João Avamileno ganhou a disputa por seis pontos percentuais. Com a manchetíssima do Diário do Grande ABC no domingo do segundo turno, seguindo determinação provisória da Justiça Eleitoral, o resultado seria outro. Vinte anos atrás a força do jornalismo de papel era completamente outra. Sobretudo numa edição domingueira. Aquela pretendida manchetíssima favorável à campanha de Newton Brandão derrotaria o PT de João Avamileno. Muito mais importante que isso: derrotaria o jornalismo.
Seguem os dois textos denunciatórios que escrevi na coluna que mantive durante aqueles 11 meses de comandante de Redação do Diário do Grande ABC. Os textos foram produzidos após o primeiro turno e antes da votação final do segundo turno.
FAZENDA RAMALHO (1)
DANIEL LIMA - 17/10/2004
Há mais de 600 mil animais na imensa e traumatizada Fazenda Ramalho. A disputa entre o doutor e o operário é para saber quem vai gerenciar tantas cabeças. E tributos também.
A polêmica instalada na Fazenda Ramalho por causa da votação que vai decidir a sorte daquela imensidão de território é a assiduidade com que é proibida a divulgação de soldagem estatística da votação inicial a que terão acesso somente os graduados entre galos e galinhas, elefantes e leões, cavalos e jegues, gatos e macacos, marrecos e dinossauros, pintassilgos e hienas, entre outros, sem contar os avestruzes.
A Fazenda Ramalho está na definição do mandato entre o operário apoiado pelas cabeças vermelhas e o doutor de cabeças amarelas. A ordem constitucional determina que o controle não pode passar de quatro anos num primeiro mandato, e de outro tanto num segundo e último. O operário herdou há dois anos um cargo de um intelectual morto. O doutor já comandou o território por 14 anos.
O operário de cabeça vermelha não se incomoda com quem vai recrutar especialistas para proferir a sentença provisória, sujeita à reformulação no dia do juízo final das urnas. Por sentença provisória se entenda as pesquisas, através da metodologia resumida na concepção de que basta experimentar uma colherada de sopa para conhecer o sabor do prato.
O doutor é raposa e está cercado de guerrilheiros eleitorais. Já mandou fazer essa tal de pesquisa e se deu mal, porque contrariou o ritual sagrado de quem não quer queimar a própria língua. Em vez de contar os animais que julgava encabrestados na Fazenda Ramalho e, depois, conforme o resultado obtido, decidir pelo registro ou não, preferiu oficializar antes da sondagem. Aí a justiça Eleitoral determinou a exposição pública dos números que favoreciam o operário. Um desastre de 11 pontos.
Quem se divertiu com a trapalhada foi um outro instituto de pesquisas que, tolhido no direito de fornecer dados estatísticos ao jornal mais representativo do território, teve motivos de sobra para festejar uma vingança que jamais conseguiria perpetrar com tamanha eficiência.
Dizem que o doutor está mal acompanhado. Contaram-lhe que o melhor negócio eleitoral da temporada era fazer-se de vítima dos supostos poderosos de plantão, principalmente o jornal da região. Seria algo como um brizolismo retardatário na briga com a TV Globo.
O doutor teria acreditado no sucesso da empreitada, mas acabou envolvido numa enrascada. A suposta TV Globo da vez não trocou os pés pelas mãos de exagerar na argumentação. Os animais da Fazenda Ramalho têm senso crítico e sabem distinguir informação de perseguição. O doutor teria ficado apreensivo, principalmente quando uma pesquisa revelou que 80% da Fazenda Ramalho, informada sobre o impedimento de divulgação de pesquisa entre amarelos e vermelhos, condenaram a medida.
Enquanto o operário assiste a tudo de camarote, o doutor é assediado por gente do bem que o orienta sobre a insensatez de impedir que a Fazenda Ramalho seja esquadrinhada de forma científica para revelar quantos são amarelos e quantos são vermelhos. O instituto de pesquisa proibido de divulgar números continua frequentando ruas, avenidas e vielas. Ouve galinhas e galinhos, patos e patas, marrecos e marrecas, cães de todas as raças. Nem beija-flores escapam da consulta. Dizem que de vez em quando têm de enxotar uns gambás metidos a espantar a freguesia. Não faltariam também cobras criadíssimas que, ao sinal de que há gente contando as cabeças amarelas e vermelhas, correm para artificializar o resultado.
Pressionado pela turma do doutor, o instituto de pesquisa e o jornal que o contratou para anunciar os números sofrem cada vez mais restrições do judiciário eleitoral. Há recomendações expressas para se esquecer qualquer coisa que resvale em numerais. Nem supostas metáforas podem ser esgrimidas. Qualquer coisa que lembre pesquisa eleitoral na Fazenda Ramalho poderá significar muitas dores de cabeça. O advogado de instituto de pesquisas disse que a legislação é um entulho autoritário, dos tempos da ditadura.
A turma do doutor não gostou que a declaração constasse de matéria de primeira página do jornal e da reportagem da página três. Entraram com ação na Justiça Eleitoral. Só não tiveram o direito de resposta impresso exatamente na edição de disputa do primeiro turno porque uma turma do jornal resistiu bravamente. Uma semana depois, a mesma Justiça Eleitoral, agora em São Paulo, deu ganho de causa ao jornal.
A Fazenda Ramalho respira com tranquilidade nestes dias e noites, mas nem por brincadeira se pode cantar um bingo. A turma do doutor vai dizer que é mensagem cifrada para soprar a diferença de pontos percentuais que separaria os dois finalistas. A Fazenda Ramalho é uma grande piada de deboche à liberdade de Imprensa e à democracia de informação. Pintam e bordam um sete ruborizado em suas fronteiras.
FAZENDA RAMALHO (II)
DANIEL LIMA - 24/10/2004
São leões-de-chácara jurídicos os assessores do doutor candidato a gerente da Fazenda Ramalho. Jamais se viu ou se tem notícia na história da política nacional, qualquer que sejam os tempos, tanta vocação a entupir a agenda do judiciário eleitoral, quando não criminal. E uma vocação masoquista de se expor a perder todas as demandas contra as informações prestadas pelo jornal.
O sucessivo impedimento de publicação de pesquisas eleitorais que tomem o pulso dos representantes com direito a voto dos 600 mil animais da Fazenda Ramalho é café pequeno perto da força-tarefa implementada para atazanar a vida do jornal.
Passam de duas dezenas as medidas judiciais. Qualquer informação supostamente ácida é tratada a porretadas jurídicas. É provável que, tivesse esculpido uma ilha artificialmente democrática, nem Fidel Castro recorreria tanto ao amordaçamento pretendido pelos leões-de-chácara do doutor que concorre com o operário à direção da Fazenda Ramalho.
O corpo de advogados do doutor parece ter recebido incumbência semelhante à dos cabos eleitorais: trabalhem, trabalhem e trabalhem sem parar, porque o importante é ganhar o jogo. Um direito que lhes assiste, é claro.
Uma pena que, em vez dos leões-de-chácara, um quadro de assessores técnicos reconhecidamente qualificados não tivesse sido preparado para disseminar as propostas de um plano de governo que colocasse em perspectiva uma Fazenda Ramalho exequível ao enfrentamento das dificuldades sociais e econômicas.
Nem de longe se pretende estigmatizar a candidatura do doutor como clonagem dos tormentosos anos do governo federal de sua sigla partidária que comandou o País por oito anos até 2002. Como se sabe, não faltam oportunismo, personalismo ou marketing quando se decidem as cores que determinados concorrentes ostentarão numa disputa eleitoral. Seja na Fazenda Ramalho, seja na Fazenda Bernardo. Mais ainda na Fazenda Caetano, onde o gerente atual em fim de mandato, faz gatos e sapatos do compromisso partidário.
O doutor tucano, portanto, não pode ser acusado deliberadamente de pertencer à mesma plumagem genealógica do ex-presidente tucano que fez a Fazenda ABC perder quase 40% da riqueza industrial. Até porque, como se sabe, eles frequentaram ambientes diversos nos tempos da chamada ditadura militar.
O professor universitário que virou exilado político e mais tarde presidente da República sempre militou na esquerda. É verdade que apagou na prática tudo que escreveu como teórico. O doutor navegou nas águas plácidas da Arena, o partido sempre em marcha sincronizada com o regime militar que o concebeu.
Talvez esteja aí a melhor explicação para a diarreia jurídica dos leões-de-chácara. Como se explicaria então a correnteza de ações judiciais sempre contra o mesmo jornal? Ah, sim, se explica porque além do viés autocrático de cerceamento ao direito de informação, o doutor dos eleitores amarelos da Fazenda Ramalho quer criar um fato político que o catapulte à condição de vítima. Pretenderia o doutor que o jornal, em represália à voracidade judicial, repetisse o radicalismo de seus leões-de-chácara e abrisse manchetes seguidas de combate à sua candidatura.
Bobagem. O jornal respeita e é respeitado pelos eleitores amarelos e vermelhos. Uma pesquisa encomendada na semana passada constatou essa verdade que só alguns burros desgarrados pretendem solapar. E exatamente em deferência aos eleitores amarelos e vermelhos o jornal não será protagonista das eleições na Fazenda Ramalho. A responsabilidade de somar ou perder votos é dos candidatos, o doutor e o operário.
É muito provável que outros jornais agissem diferentemente à tentativa análoga de intromissão em sua linha editorial. Aliás, por muito menos, bem menos, jornais paulistanos tradicionais que se arrogam a fina flor da democracia, fizeram campanhas biliares contra políticos que lhes opuseram algum tipo de fanfarronice.
O jornal da Fazenda Ramalho está ganhando todos os recursos interpostos pelos leões-de-chácara do doutor amarelo no âmbito de integridade editorial porque não troca os pés pelas mãos. Nem aceita provocações. A Justiça Eleitoral sabe distinguir liberdade de expressão de táticas de opressão.
Na única vez em que a Justiça Eleitoral foi mais condescendente com os leões-de-chácara jurídicos do doutor amarelo, o jornal formou uma barricada e resistiu bravamente ao sangramento da Lei de Imprensa. Não havia outra saída. Era vencer ou vencer. Em nome da credibilidade que os eleitores amarelos e vermelhos lhe conferem ao abrir as páginas quase cinquentenárias.
A disputa eleitoral na Fazenda Ramalho não vai se deslocar do foco dos vermelhos e dos amarelos. Se falta serenidade, respeito e sensibilidade a determinado grupo para compreender que os eleitores querem informação, o que resta agora é esperar.
Quem sabe a febre intervencionista dos leões-de-chácara encontre um outro doutor mais sábio entre os amarelos a sugerir a medicação salvadora de respeito ao direito à informação. A Fazenda Ramalho de vermelhos e amarelos agradeceria.