As montadoras de veículos, bem como o parque de autopeças que as abastecem, sem contar agregados de valores que se espalham pela economia regional como um todo, são uma preocupação editorial constante deste CapitalSocial, extensão da revista de papel LivreMercado. Há três décadas e meia cuidamos disso. É nossa obrigação social manter os leitores atualizados permanentemente. E esta é mais uma edição nesse sentido.
O que se segue é uma operação intervalada. Construí vários parágrafos dando conta de uma situação que está posta na região há muito tempo, e que se resume na dificuldade cada vez maior de sustentar o poderio automotivo da região. Vamos entremeá-los com análise publicada ontem no jornal Valor Econômico.
O propósito deste jornalista é objetivo: vamos contrapor ao quadro internacional o que se registra no Grande ABC. Talvez assim seja possível entender melhor o mundo regional que vivemos. A ideia é mostrar aos leitores que estamos distantes anos-luz do imperativo de buscar alternativas para sair do sufoco que se intensifica a cada nova temporada.
A participação relativa da produção de riqueza industrial na região caiu à metade neste século, com variáveis entre os municípios que não significam qualquer possibilidade de correção de rota. Cresceram excessivamente os setores de serviços e de governança pública municipal, áreas de baixa produtividade. Sobretudo a área de Serviços, dominada por atividades de baixo valor agregado. Tecnologia de ponta, consultorias, hotelaria, entretenimento, tudo isso e muito mais não estão no território regional.
Vamos, portanto, ao troca-troca de avaliações entre uma nova análise deste jornalista e o que escreveram dois especialistas. E quem são esses especialistas? Antônio Jorge Martins é engenheiro com pós-graduação e mestrado e atuação como coordenador da FGV, diretor financeiro e consultor empresarial. Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID.
Eles escreveram o artigo “Os desafios da revolução no setor automotivo mundial”. Feitas as apresentações, vamos ao que interessa.
VALOR ECONÔMICO
O setor automotivo vive um momento de transformação sem precedentes, movido por avanços tecnológicos, novas demandas de consumidores e pressões postas pela agenda ambiental. Nesse contexto, a busca por competitividade e a criação de valor se tornam essenciais para a sobrevivência das empresas, especialmente no Brasil, onde desafios locais se somam às dinâmicas globais.
CAPITALSOCIAL
O Grande ABC vive tempos de preocupação institucional acima da média do passado de fracassos. Afinal, está prestes a trocar várias mãos no comando de prefeituras. Cinco dos novos prefeitos a partir de janeiro do ano que vem serão novatos, sem experiência executiva e praticamente sem conhecimento pleno da dramática situação econômica. Os antecessores, exceção a Celso Daniel, morto em 2002, jamais se preocuparam para valer com o futuro que sempre chega. Os atuais e os próximos também são pouco aderentes a pautas substantivas. Preferem o varejismo de efeitos especiais. O que esperar desse conjunto de mandatários num mundo em transformação e no qual a principal atividade econômica da região segue sob virulentos choques? Esse é o desafio do passado que permanece no presente e ao que tudo indica se agravará no futuro.
VALOR ECONÔMICO
Como consequência da pandemia, o mercado mundial de automóveis se reduziu, com uma queda de 97,4 milhões de veículos em 2017 para 77,6 milhões em 2020, segundo a Organização Internacional dos Fabricantes de Automóveis (OICA). Em 2024, os números ainda não retornaram aos níveis pré-pandemia, em um contexto no qual diversas montadoras enfrentam desafios contínuos para se manter competitivas. O cenário mundial vem passando por relevantes transformações, com a China despontando como o maior mercado mundial de veículos, alcançando 30 milhões em 2023, sendo 25 milhões no mercado local e 5 milhões de exportações, com o total correspondendo a aproximadamente duas vezes o mercado dos EUA. Além disso, as exportações chinesas representam o dobro da produção brasileira.
CAPITALSOCIAL
A sangria automotiva vem de longe no Grande ABC e jamais se condicionou a qualquer tragédia ambiental ou de saúde pública. É incompetência coletiva mesmo. A participação relativa do setor automotivo na construção de riquezas caiu intensamente. A região de sete municípios corre a uma velocidade de apenas 30% da média nacional. Ou seja: o PIB Geral do Grande ABC está numa frequência muito aquém do PIB Geral médio do País, que, como todos sabem, está distante dos melhores endereços internacionais. O Grande ABC ainda cai na conversa de que é o quarto PIB Nacional. Pura bobagem. Quando se consideram conglomerados demográficos assemelhados aos do Grande ABC, comemos poeira. Na Região Metropolitana de São Paulo ficamos atrás da Capital, do Grande Oeste e do Grande Norte.
VALOR ECONÔMICO
O governo chinês incentivou a realização de pesados investimentos no desenvolvimento tecnológico, na produção e internacionalização, fortalecendo as marcas locais em detrimento dos grupos estrangeiros e conquistando espaço no mercado global. A competição global intensificou-se em regiões como Europa, EUA, América Latina e Ásia. A perda de competitividade nos últimos anos fez com que as montadoras coreanas, japoneses, europeias e americanas reduzissem sua participação no mercado chinês, acarretando dificuldades de amortização dos investimentos necessários para suas respectivas presenças no mercado mundial.
CAPITALSOCIAL
O Grande ABC há muito tempo perdeu o domínio da produção de veículos no Brasil. Hoje não representa mais que 10% de tudo que se refere a quatro ou mais rodas no território nacional. Os investimentos e a produtividade, principalmente depois da abertura econômica, colocaram as fábricas locais na rota da modernidade verde-amarela, mas a defasagem no confronto internacional é latente, sobretudo porque os impostos se elevam a mais de um terço do produto final. Quem apontar para o futuro com sobriedade não terá a ousadia de dizer que as fábricas de carros e de autopeças da região estarão garantidas nas duas próximas décadas. Na medida em que se aperta o cerco principalmente na Europa com dificuldades de se proteger ante o avanço chinês, mais as ramificações das corporações automotivas do Primeiro Mundo correrão riscos. O que atinge a Volkswagen na Alemanha de uma forma direta ou indireta vai chegar ao Grande ABC. Uma Ford não sai de São Bernardo sem dar sinais de que o tempo se está esgotando. Outras fábricas que têm o Brasil como rota de produção deixam o Grande ABC no acostamento de prioridade locacional. Planilhas de especialistas em custo-benefício não encontram o Grande ABC como fonte de rentabilidade.
VALOR ECONÔMICO
Além da Tesla com fábrica já instalada e desfrutando de uma competitividade ímpar, a Toyota se destaca como uma das poucas empresas estrangeiras que possui condições de evoluir no mercado chinês. Por meio de entendimentos mantidos com os acionistas de suas duas joint ventures na China, a Toyota busca se fortalecer no mercado local com a estratégia de produzir cerca de 2,5 milhões de veículos/ano nos próximos exercícios. A BYD, em seus 30 anos de existência com a produção acumulada de 10 milhões de veículos eletrificados, vem se destacando no setor automotivo graças à sua estratégia de investimento contínuo em P&D e de verticalização industrial. A empresa controla o processo produtivo total, desde a extração de matérias-primas até a entrega do veículo ao consumidor, garantindo ainda assim custos reduzidos e maior eficiência. Além disso, possui fábricas de baterias, itens de maior custo para veículos elétricos (VE’s), bem como navios próprios para reduzir significativamente os gastos logísticos.
CAPITALSOCIAL
É preciso cultivar muita ingenuidade, como os sindicalistas metalúrgicos de São Bernardo expressaram recentemente, após visita à China, para acreditar que a solução da indústria automotiva da região está nas mãos dos chineses. Se estiver, como poderia sugerir o alinhamento politico do governo brasileiro com os asiáticos, será preciso entender que todo o estoque de conquistas sociais dos trabalhadores da região será implodido. Ou alguém acredita que uma indústria chinesa em território brasileiro vai contrariar a lógica chinesa em território chinês de que a produção de riqueza não tem qualquer parentesco com um regime trabalhista que leve em conta os interesses dos operários? Regime autoritário prioriza o próprio umbigo e ideológico.
VALOR ECONÔMICO
Esse modelo permitiu que a montadora chinesa desafiasse grandes players do mercado mundial ao oferecer veículos elétricos mais acessíveis e com tecnologias de ponta. Por seu turno, a Tesla por meio de suas “gigafactories”, integra todas as etapas de produção em um ambiente automatizado, utilizando inteligência artificial e robótica para monitorar e ajustar cada fase do processo, garantindo eficiência e personalização dos veículos.
CAPITALSOCIAL
A maior ameaça ao parque automotivo do Grande ABC está na eletrificação que mais dia menos dia registrará capilaridade com potencial de provocar mais estragos. Há fartos estudos colocados em prática que dão conta do quanto a indústria convencional, movida a combustão, sofre diante da chegada e da cristalização da produção de veículos eletrificados. Há uma hecatombe na indústria de autopeças com a redução drástica de componentes. Autopeças do Grande ABC se escafederam do Grande ABC ou pereceram durante o período do presidente Fernando Henrique Cardoso, principalmente, por causa de política protecionista às montadoras. A eletrificação vai causar um segundo e contundente abalo, agora atingindo em cheio autopeças quase que totalmente controladas por grandes corporações. Autopeças familiares que sedimentaram a classe média, principalmente de Santo André e São Bernardo, desapareceram nos anos FHC. Como se anteriormente, diante dos sindicalistas, também não sofressem um bocado com políticas trabalhistas insensíveis às diferenças entre grandes, médias e médias de pequenas.
VALOR ECONÔMICO
Por outro lado, os fabricantes de automóveis centenários enfrentam desafios decorrentes de incertezas quanto aos seus sucessores no controle decisório e as decisões voltadas aos seus negócios, enfrentando elevados custos fixos relativos ao número de fábricas e de mão de obra, incompatíveis com o atual ambiente de produção global, impulsionado pela robótica, automação e elevada escala de produção. Como consequência, os preços das ações e as margens de lucro de alguns desses fabricantes europeus de automóveis caíram no período 2022/24.
CAPITALSOCIAL
O Grande ABC automotivo está todo assentado nos fabricantes de veículos centenários. Os desafios são alarmantes. Os resultados nos Estados Unidos e Europa não deixam pedra sobre pedra sobre de uma concorrência acirradíssima. Enquanto os governos dos Estados Unidos e da Europa têm institucionalidades e recursos orçamentários para combater invasores asiáticos, o Grande ABC sempre foi jogado às traças pelo governo federal. Um caso emblemático e presente está à vista de todos: a chinesa BYD está se instalando com todas as vantagens do mundo em Camaçari, na Bahia, numa competição desleal que torna as montadoras tradicionais potenciais vítimas de nova edição de guerra fiscal.
VALOR ECONÔMICO
Outro fator decisivo para a competitividade das empresas é a formação de uma nova cultura voltada para transformação digital. Tecnologias da Indústria 4.0, como robótica avançada, inteligência artificial e semicondutores estão redefinindo a cadeia de valor. Destaque-se que os semicondutores estão se tornando o novo petróleo da indústria automotiva, com a China já priorizando esse segmento. Em 2024, o país investiu US$ 25 bilhões em equipamentos para a fabricação de semicondutores, com a intenção de dobrar esse montante até o final do ano. Esses investimentos são cruciais para o desenvolvimento de veículos mais autônomos e eficientes energeticamente. Os Estados Unidos estão tecnologicamente à frente na disputa por semicondutores, enquanto a China mantém a dianteira adquirida na energia limpa, incluindo aí os VEs, mas liderando a expansão global em capacidade produtiva de semicondutores com 18 novas fábricas planejadas para 2024 e mais de 500 startups, contando com o apoio financeiro robusto do governo. Nesse setor, competitividade e criação de valor são questões estratégicas. As empresas que conseguirem aliar evolução de suas lideranças aos novos desafios estarão melhor preparadas para se posicionarem globalmente.
CAPITALSOCIAL
O cenário traçado e o presente vivido indicam que cada vez mais as montadoras de veículos tradicionais instaladas no Grande ABC vão intensificar estudos e medidas para equacionar as contas dentro de garantias que combinem investimentos e retorno do investido. Não há almoço grátis. O Grande ABC abalado ao longo de décadas com o acirramento da competitividade nacional sempre favorável a territórios de custos tributários, logísticos e trabalhistas mais brandos, se verá diante de novo desafio. Nesse caso, a mobilidade urbana torna o fator logístico ainda mais exigível nas planilhas de custo-benefício na definição de prioridades locacionais. O Grande ABC é muito ruim de logística urbana quando se aplicam preceitos atualizados. A melhor logística há muito tempo deixou de ser a menor distância entre dois pontos e se tornou a melhor distância entre dois ou mais pontos. O trecho sul do Rodoanel é prova disso. O Grande Oeste, de Osasco e Barueri, ultrapassou o PIB do Grande ABC com folga que se alarga a cada novo ano.
VALOR ECONÔMICO
O setor deve sofrer o impacto da rivalidade geopolítica entre os países ocidentais e a China. Além da criação pela União Europeia de tarifas alfandegárias para importação de VE’s chineses, a proibição de componentes eletrônicos de origem chinesa em veículos circulando nos EUA por razões de “segurança nacional” pode contribuir com a elevação de custos e preços dos veículos para os consumidores finais desses continentes, com a consequente elevação dos respectivos índices de inflação. Com um consumidor mais exigente e regulamentações cada vez mais rigorosas, as empresas do setor automotivo terão que equilibrar competitividade, sustentabilidade, inovação tecnológica e criação de valor. O alinhamento desses pilares dentro de uma nova cultura digital será fundamental para se adaptarem às novas tendências não apenas para sobreviverem, mas para prosperarem continuamente.
CAPITALSOCIAL
É tudo isso e muito mais que estão à espera do futuro do Grande ABC. Um Grande ABC sem preparo organizacional para um enfrentamento que vai além dos limites do próprio território também na articulação de agentes públicos e privados que ditarão o roteiro com omissão ou participação incessante.